Governo planeja nova estrada no meio da Amazônia

OESP - https://economia.estadao.com.br/noticias/geral - 22/11/2020
Governo planeja nova estrada no meio da Amazônia
Continuação da BR-364, rodovia teria 152 km de extensão e ligaria Cruzeiro do Sul, no Acre, até a fronteira com o Peru

André Borges, O Estado de S.Paulo
22 de novembro de 2020

BRASÍLIA - No momento em que o mundo volta as atenções para a proteção da Amazônia, o governo Jair Bolsonaro decidiu levar adiante projeto para abrir uma nova estrada no coração da floresta. O traçado passaria por cima de uma área de proteção integral, o Parque Nacional da Serra do Divisor, na fronteira com o Peru - hoje, dono da maior biodiversidade de toda a região.

O estudo da nova rodovia está em análise pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), órgão ligado ao Ministério da Infraestrutura que cuida das estradas federais. O objetivo é abrir um traçado de 152 quilômetros de rodovia do município de Cruzeiro do Sul, no Acre, até a fronteira brasileira com o país vizinho. Do lado peruano, a rodovia se ligaria à cidade de Pucallpa.

Em defesa do projeto, que daria continuidade à BR-364, uma das maiores estradas federais do País, o governo afirma que esta seria uma nova rota para escoamento rodoviário de produção por meio do Oceano Pacífico. Em setembro, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, participou de um evento para tratar do assunto e disse que o Itamaraty atua para acelerar o plano de integração.

Já existe uma outra rota ligando Brasil e Peru. Em 2010, foi concluída a Estrada do Pacífico, a partir de Rio Branco (AC) e que dá acesso à região sul do Peru. Levantamentos recentes mostram, porém, que ainda é reduzido o fluxo de mercadorias na região.

Para além de acenos diplomáticos, especialistas afirmam que o novo projeto ainda teria de lidar com questões ambientais, a começar pelo impacto a terras indígenas. Há três terras demarcadas pelo caminho. Duas delas - Terra Nukini e Terra Jaminawa do Igarapé Preto - ficam a 32 quilômetros de distância da rota planejada. Há ainda uma terceira, a terra indígena Poyanawa, que se avizinha do próprio acostamento, com apenas 1,5 km de distância do traçado.

Se os impactos diretos aos indígenas forem resolvidos, o projeto precisa, então, obter licença ambiental para derrubar cerca de 130 quilômetros de área coberta por mata virgem e cruzar dezenas de rios. Depois disso, há ainda uma última etapa de mais 22 quilômetros a resolver: passar pelo Parque Nacional da Serra do Divisor, uma unidade de conservação federal de proteção integral, onde, por lei, é proibido fazer qualquer tipo de obra de pequeno ou médio porte. Os estudos mostram que a nova estrada cortaria o parque ao meio, até bater na fronteira com o Peru.

Estudos do Ibama e do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) mostram que a região do parque federal é considerada uma das áreas com maior biodiversidade da Amazônia, com presença de várias espécies raras de árvores, como mogno, louro, virola e cerejeira.

Congresso
Como a construção de uma estrada dentro dessa área é proibida, já corre no Congresso um projeto de lei que tenta mudar a classificação do parque nacional, transformando parte de seu território em uma área de preservação ambiental (APA). Seria um jeito de dar uma categoria bem mais flexível àquele pedaço do território, permitindo o avanço dos tratores.

Relatado pela deputada federal Mara Rocha (PSDB-AC), o projeto 6.024/2019 está parado desde o ano passado. Para o senador Márcio Bittar (MDB-AC), entusiasta da abertura da estrada, outra alternativa seria autorizar a passagem de uma "estrada parque" dentro da unidade federal. Ele afirma que, quando da criação do parque, chegou-se a contemplar a passagem de uma estrada no local, em algum momento. "O Acre é um Estado que nasceu de costas para o oceano correto. Está olhando para a direção errada", disse Bittar, ao afirmar que a rota rumo ao Oceano Pacífico traria melhora social e econômica para os moradores da região.

O Ministério de Infraestrutura não quis comentar o andamento do projeto. O Dnit declarou, por meio de nota, que "trabalha atualmente na elaboração do Termo de Referência para a contratação do projeto". "Portanto, não existe ainda a extensão detalhada da rodovia federal. Ela será definida na fase de desenvolvimento dos projetos básico/executivo."


Projeto de estrada também depende de obras no Peru
Para que nova rodovia na Amazônia dê certo, país vizinho tem de abrir caminho pela floresta até chegar à fronteira com o Brasil

André Borges, O Estado de S.Paulo
22 de novembro de 2020

BRASÍLIA - O desejo dos parlamentares acreanos de prolongarem a BR-364 até a fronteira do Brasil com o Peru não significa, na prática, nenhum acesso imediato às praias do Pacífico. Embora o governo brasileiro defenda que sua meta é ligar a nova estrada à cidade de Pucallpa, a realidade é que o município peruano está a 103 quilômetros distante da fronteira com o Brasil e, assim como ocorre em solo nacional, o caminho do lado de lá também é de mata fechada. O Peru, portanto, teria de ter a mesma inspiração do governo Bolsonaro para abrir sua floresta até alcançar o lado brasileiro.

Na tentativa de tentar driblar o licenciamento federal do projeto, membros de governo do Acre chegaram a questionar se o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) seria, de fato, o órgão responsável por autorizar a obra. Uma consulta formal sobre este assunto está em andamento com o órgão, que é ligado ao Ministério do Meio Ambiente.

A obra em análise pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) teria 152 quilômetros de extensão e cortaria o Parque Nacional da Serra do Divisor - uma unidade de conservação federal de proteção integral, onde, por lei, é proibido fazer qualquer tipo de obra de pequeno ou médio porte.

O Estadão apurou que, apesar de pressões locais para concentrar o licenciamento no Estado, o Ibama já tem convicção técnica de que o processo é federal. A obra não só daria continuidade a uma estrada que é responsabilidade da União, a BR-364, como também teria impacto direto em terras indígenas e, finalmente, avançaria sobre um parque federal. São todos temas de competência federal.

'Lavagem cerebral'
Para o senador Márcio Bittar (MDB-AC), que é o relator do Orçamento federal de 2021, o fato de o licenciamento ficar com o Ibama não é um obstáculo. "O que precisamos é viabilizar essa nova rota. Estamos fazendo um intercâmbio com o Peru", disse Bittar. "Não é simples, nem fácil. Fazer a obra só do lado brasileiro não vai resolver nada. Mas se você não começar, não chegar ao meio do caminho, não vai para lugar nenhum."

Bittar já tratou do assunto diretamente com o presidente Jair Bolsonaro, que mencionou a obra durante uma de suas lives pelas redes sociais. "Tive esses dias com o senador Marcio Bittar, do Acre. Ele agora é o cara do Orçamento, então está muito interessado. Vai botar a mão na massa. É uma rodovia de quase 200 km que liga o Acre ao Peru, onde vamos conseguir, então, por via terrestre, onde a Cordilheira dos Andes está mais baixa, passagem para o Pacífico", declarou Bolsonaro na ocasião.

O senador admitiu que o projeto enfrenta uma série de dificuldades, tanto no Brasil quanto no Peru, mas classificou os obstáculos ambientais como uma "lavagem cerebral" que, segundo ele, afetaria não só o Brasil, mas seu vizinho latino.

Especialista contesta 'ganhos concretos' para o País
Uma das áreas mais bem preservadas da Amazônia, a região do Parque Nacional da Serra do Divisor esconde milhares de espécies de árvores nativas, além de grande biodiversidade de fauna. O plano de manejo do parque cataloga pelo menos 130 espécies de mamíferos, 120 de aves, 50 de anfíbios, 30 de lagartos, três de quelônios e outras 30 de peixes. Há ainda grande quantidade de fósseis.

No início do século 20, foram coletados restos de mastodontes e toxodontes, animais gigantes que habitavam a região há milhares de anos. Em 1956, foram identificadas 30 localidades com presença desses fósseis na área. Outros 17 pontos foram revelados em 1962.

A preocupação de ambientalistas com a abertura de uma estrada numa área como essa é que as rodovias são, historicamente, o principal vetor de desmatamento em todo o País. Seja de terra, cascalho ou asfalto, é por ela que madeireiros costumam avançar, abrindo "espinhas de peixe" nas margens do traçado, para acessar a madeira no meio da floresta.

"Mesmo que o decreto que criou o Parque Nacional da Serra do Divisor, em 1989, tenha autorizado a implantação futura de trecho da BR-364 no interior da unidade de conservação, o País tem de debater muito a viabilidade jurídica e ambiental desse empreendimento", disse Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.

A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, aprovada no ano de 2000, lembra Suely, deixa claro que o objetivo básico das unidades de proteção integral é preservar a natureza. "A área da Serra do Divisor apresenta uma das mais ricas biodiversidades do País, tem mais de 1.233 espécies de animais registradas, e protege a cabeceira de cursos d'água importantes", comenta.

A estrada interceptaria uma região de alta sensibilidade ambiental, com características únicas pela influência andina, explica a especialista. "Quais os ganhos concretos para o País com uma estrada que colocará a proteção ambiental dessa área em sério risco? Quem lucrará com essa estrada no meio desse importante parque nacional?"



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