Restinga na justiça

O ECO - 18/04/2008
Caso raro entre as unidades de conservação do Brasil, o Parque Estadual de Acaraí está em dia com o planejamento. Criado em 23 de setembro de 2005 e situado no município de São Francisco do Sul (SC), o local passou dois anos em fase de transição, período usado para desenvolver a logomarca, base cartográfica e alguns eventos de educação ambiental. Em outubro de 2007, foi dada a largada nos estudos de seu Plano de Manejo, que deveria ficar pronto em junho. Deveria, pois na última sexta-feira (dia 11/04), uma liminar da justiça federal de Santa Catarina ordenou que os trabalhos sejam paralisados até que sejam realizados estudos sócio-culturais e econômicos da região pela Fundação do Meio Ambiente (Fatma).

Reconhecida por sua beleza cênica e importância biológica, a unidade de conservação tem uma área aproximada de 6.667 hectares e o mais importante remanescente contínuo de restinga no sul do país. Em sua extensão, um cordão de dunas realça o valor da área: ele é o responsável pela barreira natural que impede a invasão do mar na área continental. Vale lembrar que uma das maiores cidades do estado, Joinville, fica muito próxima dali e poderia sofrer com os fortes ventos carregados do extremo sul brasileiro. Além disso, há no entorno do parque uma porção do rio que lhe deu o nome e já sofreu com a pesca predatória. A outra parte fica fora dos limites da UC.

O complexo hídrico do terreno, habitat de diversas espécies endêmicas da região, tem ainda as nascentes do rio Perequê e lagoa do Capivaru. "O Acaraí é uma planície litorânea que, há dez mil anos, viveu as mais recentes variações de níveis do mar e começou a se formar. O resultado disso é que tem praias, dunas, 16 km de restinga extremamente conservada, floresta de terras baixas (que nascem em cima das lagunas), manguezais e toda composição de ecossistemas", diz Carlos Cassini, chefe do parque.

Fora a função de berçário da vida marinha, o espaço protegido também conta com diversos animais ameaçados de extinção. Entre as aves, estão a garça Real, o Martim-Pescador-Grande e o Pica-Pau-de-Banda-Branca. Com sorte, um passeio pela unidade de conservação pode permitir a observação de uma jaguatirica ou o gato do mato pequeno, cada vez mais incomuns nas florestas nacionais. Isso sem contar o belo tapete de bromélias e a variedade de orquídeas. E, caso o Plano de Manejo seja aprovado, novos exemplos de fauna e flora podem pintar por aí. "Iniciando-se os estudos científicos, os técnicos dizem que muitas outras espécies serão encontradas", diz Marise Grankow, presidente da Associação Movimento Ecológico do Carijós (Ameca), uma das organizações que mais lutaram para ver o parque decretado.

Todas estas características, no entanto, não foram suficientes para convencer o Ministério Público Estadual e Federal da necessidade de criar uma unidade de proteção integral. Depois de participarem das audiências públicas para a criação do parque e pedirem novos estudos sócio-culturais e econômicos da área, a promotora da comarca de São Francisco do Sul, Simone Schultz, e o Procurador da República do MPF de Florianópolis Eduardo Barragan decidiram entrar com uma ação civil contra o órgão ambiental do estado. "Tentamos um acordo com a Fatma várias vezes para que fizessem os estudos necessários no local. Mas não houve consenso", disse Schultz.

Direitos

O MP reclama, basicamente, que os direitos das comunidades tradicionalmente acostumadas a usar os atrativos naturais da região foram violados. De acordo com Barragan, o órgão ambiental catarinense não realizou todas as pesquisas exigidas para determinar o status da unidade de conservação que seria criada posteriormente. "É preciso haver investigações prévias para dizer qual UC pode ser feita na região e, neste caso, não houve. A questão biótica deve ser protegida, mas há também outros valores culturais, como as comunidades. Aliás, foram elas as responsáveis por manter o patrimônio físico preservado como está", diz.

O seu argumento ganha reforço nas palavras da promotora. "Queremos, é claro, que o espaço continue protegido. A importância natural é enorme. Mas precisa se adequar ao que existe ali. Caso se torne uma unidade de uso sustentável, por exemplo, servirá apenas para os grupos que sempre a usaram e não para especulação imobiliária. O aspecto biótico é maravilhoso, mas o cultural também", diz.

Um dos principais pontos que levaram o MP a formar sua posição diz respeito à pesca efetuada no rio Acaraí há algumas décadas por famílias do entorno. Este argumento encontra forte oposição de Marise, da Ameca. Segundo ela, não faz qualquer sentido conferir o status de uso sustentável para os quase sete mil hectares, já que a área terrestre não tem nenhum tipo de exploração comercial e nem produção agrícola. Além disso, como informa Cassini, há apenas cerca de quatro caseiros morando dentro da unidade para proteger três grandes propriedades que serão desapropriadas e devidamente indenizadas. Os recursos, inclusive, já estão separados.

Sobre o uso do rio, a ambientalista é enfática. "Só poderá pescar na porção do rio que cabe ao parque as pessoas reconhecidas como tradicionais. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) garante esse direito a eles. Como eles têm essa garantia, não sei o que estão temendo", afirma. Para completar sua posição, ela diz que esse estímulo pode, também, aumentar o pescado no entorno, já que acabaria a extração predatória de peixes e permitiria uma maior reprodução.

Mesmo assim, no último dia 11, o MP conseguiu uma liminar emitida pelo desembargador Domingos Paludo, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Ela determina que os trabalhos do Plano de Manejo, praticamente finalizados, sejam interrompidos imediatamente. A vitória foi obtida após derrota em primeira instância, quando o juíz Mauro Ferrandim, de São Francisco do Sul, indeferiu a Ação Civíl Pública impetrada por Shultz e Barragan.

Dúvida

"Nós acompanhamos o cuidado que a Fatma teve para fazer levantamentos prévios por amostragem das comunidades que vivem no entorno e suas práticas culturais. Houve estudos, sim. Não aprofundados, mas eles foram feitos", diz Marise. "O conselho está sendo constituído, os estudos antropológicos estão sendo realizados e já fizemos levantamento antopográfico. O próximo passo é pagar a indenização", continua Carlos Cassini.

Não é o que pensa o Eduardo Barragan. "O parque continua criado, mas a ação foi para suspender a confecção do Plano e obrigar a Fatma a realizar as análises de caráter cultural, social e econômico. Depois, se a resposta indicar, deve-se pensar na criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, por exemplo", afirma.

O despacho do desembargador Domingos Paludo aponta exatamente na direção exposta pelo Procurador da República. "Estes parques jurídicos, em que o Poder Público dispõe do que lhe não pertence, por decreto, cerceando direitos de toda ordem, invadindo propriedades alheias, em nome de um meio ambiente que não quer, efetiva e materialmente proteger, na realidade atentam contra a moralidade pública", escreve, para depois completar. "Ainda bem que marchamos para o progresso nessa interessante área, pois já era hora de compatibilizar esses santíssimos interesses sociais".

Nesta quinta-feira à noite, as entidades de São Francisco do Sul que participaram ativamente da criação do Parque Estadual de Acaraí se reuniram. O encontro, que deveria ser o penúltimo antes do anúncio do conselho consultivo da unidade, ganhou outros contornos. O tempo foi usado para escrever uma carta ao desembargador que deu ganho de causa ao MP e questionar a decisão. Na visão dos ambientalistas do município, a liminar não tem qualquer sentido.
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