Desenvolver e preservar é um falso dilema

O Globo, Razão Social, p. 4-5 - 07/06/2011
Desenvolver e preservar é um falso dilema
ONGs conseguem vetar construção no Sul da Bahia

Amelia Gonzalez
amelia@oglobo.com.br

Desde 2003 à frente do Instituto Floresta Viva, ONG que tem como objetivo valorizar a região do Baixo Sul da Bahia, Rui Rocha se tornou um guardião da região e desenvolveu um olhar diferenciado, de quem sabe que em regiões tão ricas em patrimônio natural como aquela, é falso o dilema entre desenvolvimento e proteção ao meio ambiente. Segundo o professor, se o estado der incentivos para os habitantes, eles saberão muito bem se manter dignamente com o que conseguem plantar, colher, pescar. Foi assim que ele se juntou a outras entidades no movimento Sul da Bahia Sustentável e conseguiu que o Ibama negasse a licença para uma empresa de mineração do Cazaquistão (a Eurasian Natural Resources) construir um porto na região. Rui Rocha, no entanto, não comemora, e avisa:
"Nosso objetivo não é barrar projeto de ninguém. Nosso desafio é mostrar ao governo que há outras possibilidades para promover o desenvolvimento local aqui no Baixo Sul da Bahia."

O Globo: Quando vocês tomaram conhecimento do projeto ?

Rui Rocha: Foi no fim de 2007 que o governo do estado anunciou, de uma hora para outra, um projeto muito pesado de mineração, de uma empresa do Cazaquistão chamada Eurasian Natural Resources, para essa região aqui do Sul da Bahia, que tem um potencial incrível para ecoturismo, que tem um parque ecológico, uma área de preservação ambiental. A logística da empresa, que aqui no Brasil tem o nome de Bahia Mineração, teoricamente seria múltipla, oficialmente seria voltada para todo tipo de carga do Centro Oeste mas, na verdade, muito ancorada na exportação de minério com foco em ferro e urânio. É uma grande empresa asiática que opera em vários países e adquiriu essa mina no interior da Bahia em 2006.

O Globo: É um projeto de vulto, motivo de comemoração para muita gente, já que traz desenvolvimento ao local, não?

Rui Rocha: Não somos contra o desenvolvimento local, é claro, mas há outras maneiras de se fazer isso. O fato é que o governo do estado comemorou, sim, e celebrou um convênio para facilitar toda a infraestrutura para a empresa. O pensamento do estado foi correto: potencializar o investimento privado e olhar para o desenvolvimento. O que começou a virar um problema foi a localização que a empresa escolheu para fazer seu projeto, no meio de uma área de alta importância biológica e com uma economia muito mais adequada para a cultura local. Quando se deu um zoom para ver a pertinência do projeto, começamos a ver as externalidades negativas.

O Globo: Como assim, a que tipo de externalidades negativas você se refere?

Rui Rocha: O projeto foi pensado para ser construído em cima dos corais, que são importantíssimos para o equilíbrio dos peixes, e a economia de pesca é muito importante na região. Aquela região também tem muito cacau no meio da floresta, tem ainda uma produção agrícola de alimentos muito forte e muitos pequenos produtores. A área litorânea é cheia de floresta, área de restinga, manguezal, coqueiral. Fora o turismo, já que Ilhéus é um ponto turístico importante, com 500 mil turistas/ano. Só precisa de incentivo do governo para se afirmar.

O Globo: A empresa escolheu justamente um
local tão fora de propósito?

Rui Rocha: Acho que só pode ter havido uma falha técnica. Colocar no meio da praia entre Ilhéus e Itacaré um porto ocupando dois mil hectares, comprometendo alguns quilômetros dessa praia, é inadmissível. Acredito que o estudo deve ter sido feito muito rapidamente para avaliar somente a melhor localização costeira, pensando estritamente na visão portuária, ou seja, o caminho mais curto entre a mina e o litoral.

O Globo Bem, então seguindo a história: vocês do Instituto Floresta Viva decidiram levar adiante essa questão e embargar o projeto?

Rui Rocha: Nós e outras organizações, desde Greenpeace, WWF, até ONGs locais de Ilhéus. É uma coalizão chamada Sul da Bahia Sustentável. No finalzinho de 2007 foi feito o primeiro anúncio oficial do governo e eu só fui tomar conta dessa história no dia 4 de janeiro de 2008. Alertamos o governo: "deve ter havido um engano, melhor fazer um estudo mais profundo". Afinal, a própria legislação brasileira não permitira isso. E começamos a estudar mais a fundo o projeto. Qual a demanda real de logística na Bahia e quais os investimentos necessários? Por que não aproveitar a antiga Ferrovia Centro-Atlântica, que precisa de recuperação, mas funciona? A USP ajudou-nos a fazer os estudos. Fomos conversar com o governo mas não tivemos muita receptividade. Procuramos o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, inclusive para alertar que o projeto seria construído sobre uma Área de Proteção Ambiental (Apa) em cima da Mata Atlântica. O Ibama detectou os empecilhos e negou a licença do Porto nessa área. A empresa agora está buscando uma outra área no município.

O Globo: Vocês comemoraram?

Rui Rocha: Não estamos querendo embargar projetos, não é esse nosso objetivo. Queremos buscar um novo paradigma de desenvolvimento, em que a conservação da natureza seja, de fato, transformada em ativo econômico produtivo, que dê a esse patrimônio natural o valor econômico necessário.

O Globo: Mas diz-se que há um enorme dilema entre o desenvolvimento e a conservação da natureza.

Rui Rocha: Aqui no Baixo Sul da Bahia este é um falso dilema. Porque aqui, desenvolvimento é garantir a manutenção dos sistemas naturais, já que são eles que geram emprego e são eles que podem aumentar a renda. As empresas aumentam renda muito pontualmente e para ficar retida na própria empresa. E tem que botar na conta as perdas naturais graves. As empresas não fazem essa conta. O caminho que o sistema econômico trilha onera cada vez mais a sociedade e o estado, que gera mais impostos e amplia o marco regulatório que fica refém do setor privado. Esse modelo já está esgotado.

O Globo: Qual o maior desafio das organizações que "tomam conta" dessa área do Baixo Sul agora?

Rui Rocha: É mostrar para o governo do estado que existe uma outra logística possível, seja para soja, seja para o minério de ferro, neste local. É preciso levar em conta que 80% da Mata Atlântica do Nordeste estão aqui na Bahia e que esta mata está muito ligada a temas produtivos. O cacau ocupa uma área que hoje produz 200 mil toneladas e pode produzir até 400 mil.

O Globo: Mas é uma região ainda muito pobre.
Por quê?

Rui Rocha: Porque ficou fadada a produção de comoditties. Uma conta simples: o cacau puro vale hoje no mercado internacional R$ 5 mil, a tonelada. Quando você o transforma em chocolate, esse preço vai para R$ 100 mil. O turismo é outra atividade econômica nova que ainda não rende porque não recebe estímulo algum. Os serviços são ineficientes, falta saneamento em Itacaré, Ilhéus. Qual turista que quer vir para cá sabendo disso? O estado está investindo em infraestrutura para o minério de ferro e não investe na infraestrutura local.

O Globo, 07/06/2011, Razão Social, p. 4-5
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