A polêmica sobe as dunas

O Globo, Rio, p. 11 - 14/11/2014
A polêmica sobe as dunas
Presidente de comissão ambiental pede exoneração por divergência de licença em Cabo Frio
Motivo estaria ligado à flexibilização do licenciamento de resort, que passou a permitir construções a dez metros das dunas, em vez de 50 metros

Emanuel Alencar

RIO - A polêmica subiu as dunas do Peró, em Cabo Frio, na Região dos Lagos, e abriu uma crise na área ambiental do estado. Uma conturbada reunião sobre o processo de licenciamento do empreendimento Resort Costa do Peró - que prevê a construção de seis hotéis e diversos loteamentos numa área de 400 mil metros quadrados junto às dunas - terminou com o pedido de exoneração do presidente da Comissão Estadual de Controle Ambiental (Ceca), Antônio Carlos Gusmão, na última terça-feira. No centro da discussão, estaria a flexibilização da licença, que passou a permitir construções a dez metros das dunas - antes, eram exigidos 50 metros.
Alegando "extremo cansaço", Gusmão disse ao secretário estadual do Ambiente, Carlos Portinho, que a decisão é irrevogável. Funcionário de carreira da área ambiental fluminense - entrou na Feema como estagiário em 1975 -, o químico e advogado se aposenta em um mês. Gusmão ocupava a presidência da Ceca desde janeiro de 2007, quando Carlos Minc, hoje deputado, assumiu a Secretaria do Ambiente.
Ao GLOBO, Antônio Carlos Gusmão afirmou que a reunião foi apenas a gota d'água, e que a decisão já estava tomada há semanas. Mas admitiu que "nos últimos meses" vinha enfrentando uma "avalanche de problemas". Na quarta-feira, o homem forte dos licenciamentos ambientais no estado entregou um ofício formalizando a decisão a Portinho. Conhecido na área ambiental por conduzir intrincadas audiências públicas com grande habilidade e pelo equilíbrio nas decisões, Gusmão se irritou com a forma com que o processo de licenciamento do empreendimento - que fica dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) do Pau Brasil - vinha sendo conduzido. A Ceca é um órgão deliberativo, formado por representantes do poder público e da sociedade civil. A presidência da comissão é um cargo de confiança, de nomeação voluntária do secretário.
O caldo entornou quando Portinho declarou, na reunião, aceitar a proposta dos empreendedores de erguer as edificações em trechos distantes apenas 10 metros das dunas - como aprovado em licença anterior - sem a necessidade de ouvir mais pesquisadores, como defendia Gusmão. A mudança no limite ocorreu no início do ano, quando um conselho do Inea revogou termos da licença de instalação do resort, concedida um ano antes, estabelecendo que o empreendedor teria de respeitar uma faixa de 50 metros das dunas para construir.
Na derradeira reunião, o presidente da Ceca apresentou ofício no qual Carlos Minc, atual presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa, pedia cautela na deliberação sobre o assunto. Portinho retrucou que a decisão de autorizar os 10 metros já havia sido tomada por ele terça-feira. Ato contínuo, Gusmão abandonou a sala.
- Eu já tinha decidido sair, pois me aposento em 20 dias. Acatei um pedido da família. Já estou cansado, comecei a ter problemas de saúde. Ao longo de oito anos, foram 109 audiências públicas. Era um conflito atrás do outro. Os últimos dois meses foram de pressões absurdas. É um momento triste, mas vou embora sem mágoa de ninguém - disse Gusmão.
O processo de licenciamento do Resort Costa do Peró nasceu envolto em controvérsia. Fincado na Estrada do Guriri, entre Cabo Frio e Búzios, o empreendimento teve a licença prévia (LP) concedida pela então Feema (atual Inea) em 2007. Em dezembro de 2012, saiu a licença de instalação (LI), autorizando o início das obras. No início deste ano, porém, após uma minuciosa avaliação de técnicos do Inea, foi aprovada uma averbação, modificando a licença, subindo o limite para 50 metros. Em fevereiro, a empresa Costa Verde Participações entrou com recurso em que anexava um parecer do geógrafo Dieter Muehe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apontando que o afastamento de 10 metros "é suficiente para a manutenção daquele ecossistema".
O ambientalista André Ilha, ex-diretor do Inea, lamentou o episódio. Ele argumenta que o parecer de Dieter não pode ser o único argumento para amparar uma decisão importante:
- Como outros pesquisadores da UFRJ se manifestaram de forma diferente do professor Dieter Muehe, acho uma temeridade que o órgão ambiental venha apreciar uma licença dessa importância sem ouvir outras opiniões. A APA do Pau Brasil é um patrimônio geológico. A licença havia sido reformada garantindo 50 metros de distância.
Uma das pesquisadores contrárias à proposta é a geóloga Kátia Leite Mansur, também da UFRJ:
- Caminhões circulam num vaivém incessante pela estrada, enquanto escavadeiras arrastam as dunas de um lado para outro. Isso começou antes da decisão final sobre a licença. O limite de 10 metros é absurdo - alerta.
Diretor da Servec Ecologia e responsável pela gestão ambiental do empreendimento, Paulo Pizão argumenta que o resort seria inviável com a fixação do limite mínimo de 50 metros e garante que o empreendedor seguiu todas as exigências do Inea.
- Desde a primeira licença, de 2007, foram abordadas todas as questões ambientais. Nenhuma notificação até hoje aponta qualquer irregularidade. Depois de a licença ter sido concedida, o Inea feriu de morte o empreendimento. A partir daí, algumas pessoas, lamentavelmente, começaram a fazer pressões políticas contrárias - diz Pizão, preferindo não citar nomes. - É o nosso maior projeto da América Latina, vai mudar a cara de uma região que vive do turismo de baixa renda. Cabo Frio terá renda adicional de R$ 100 milhões por ano. Vamos gerar 10 mil empregos diretos e indiretos.
Em nota, a Secretaria do Ambiente ressaltou que Antônio Carlos Gusmão votou favorável aos 10 metros de distância em duas ocasiões, "no início do licenciamento, sete anos atrás, e agora, no recurso impetrado pelo empreendedor". A pasta não opinou sobre a saída do técnico. Questionado sobre o fato, Gusmão não quis entrar em detalhes, mas não contestou a informação.

DUNAS: PROTEGIDAS POR LEIS FEDERAL E ESTADUAL

Protegidas pelo artigo 268 da Constituição do Estado do Rio e pelo Código Florestal, as dunas têm o papel importante de preservar o lençol freático e servir de barreira natural contra as ressacas do mar. Estudiosos costumam lembrar que o famoso Aquífero Guarani - que abrange partes de territórios de Uruguai, Argentina, Paraguai e Brasil - foi, no passado geológico, um campo de dunas em um deserto. Para pesquisadores, a presença de construções pode barrar a movimentação da areia, provocando mudanças em suas formas e velocidade de deslocamento.
As dunas do Peró, em Cabo Frio, abrigam algumas espécies raras e outras ameaçadas de extinção, como o formicivora litoralis (pássaro endêmico e ameaçado de extinção), o Mimus gilvus (sabiá da praia, também ameaçado), Leolaemus lutzae (lagartixinha branca da praia, na mesma situação), Jacquinia brasiliensis (idem) e a orquídea Rodriguezia sucrei Braga (endêmica, ou seja, que só existe naquele ambiente).

O Globo, 14/11/2014, Rio, p. 11


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