OESP, Vida, p. A24 - 18/08/2005
Não há clima para parques
Marcos Sá Corrêa
Nada como uma boa crise política para o País se esquecer do resto. Em tempos mais ou menos normais, esse resto é sempre a conservação do território que os brasileiros dividem, em princípio, com bichos, plantas e outros recursos naturais. Logo, não será agora, em época de CPIs, que alguém vai dar muita trela a uma audiência pública para discutir o projeto do deputado Carlos Melles para a Serra da Canastra.
Se tudo correr bem - ou seja, tão discretamente se previa - ela ocorre hoje, quinta-feira, dia 18, sem muita fanfarra. Trata-se de um projeto que até agora tramitou em surdina, para morder dois terços de um parque nacional nas nascentes do Rio São Francisco, em Minas Gerais. É, portanto, coisa grande. Mas, como quase não se ouviu falar da proposta nem da audiência, nada impede que acordemos um belo dia sentindo uma leve coceira na cicatriz do lugar onde nos amputaram quase 130 mil hectares de reserva - assim, sem mais nem menos, como se os hectares também pudessem evaporar em silêncio numa conta qualquer das Ilhas Cayman, enquanto a opinião pública era anestesiada pela bagunça do governo Lula.
Aí, será tarde. Mas tudo já ficou muito tarde para esse parque, que começou a ser implantado há mais de 33 anos e, sem sair definitivamente do papel, carrega em sua história as assinaturas dos presidentes Emílio Médici, Ernesto Geisel e Fernando Collor. De 1972 a 1991, os três mexeram nos limites do parque, sem garanti-los. Geisel ameaçou fazer ali um projeto de reforma agrária. Collor ensaiou a retomada dos processos de desapropriação em seus 200 mil hectares. Mas o fato é que, implantado mesmo, até hoje o parque só está nos 71 mil hectares de onde a Polícia Federal expulsou à força na década de 80, dez anos depois do decreto de Médici, os fazendeiros que criavam bois em campos rupestres, aboletados a mais de mil metros de altitude nas fontes de duas grandes bacias hidrográficas, a do Rio Paraná e a do São Francisco.
No ano passado, o Ibama deveria encerrar a disputa, fechando o placar nos 200 mil hectares originais. Como é de praxe, não encerrou, fosse por falta de dinheiro ou de apetite. E assim o deputado Carlos Melles, que é cafeicultor, mineiro e do PFL, tomou-lhe a frente, defendendo o recuo da unidade de conservação aos 71 mil hectares que pelo menos estão mais ou menos regularizados. Se o governo Lula levasse ao pé da letra aquele projeto do século 19 que rebatizou como "revitalização", ele seria o primeiro a barrar mudanças na Serra da Canastra, porque de lá vem boa parte da água que ameaça desviar do São Francisco. Mas no governo Lula, como o país acaba de aprender, não convém levar nada ao pé da letra. Logo, até segunda ordem, acabam prevalecendo no parque outros interesses, como os da mineração. O garimpo pôs o olho grande ali ainda no século 18. E a serra ainda é lugar de diamantes.
Sob o espesso cobertor da bagunça administrativa, grassa atualmente em Brasília uma verdadeira febre de revisão no sistema de parques nacionais, sempre para menos. Dois deputados do Espírito Santo disputam neste momento a prerrogativa de revogar o Parque Nacional dos Pontões Capixabas, onde um dos últimos retalhos de Mata Atlântica do Espírito Santo disputa terreno com cerca de 400 descendentes de imigrantes pomeranos. Eles se instalaram ali há menos de 50 anos, quando as florestas do Estado estavam sumindo do mapa em ritmo quase amazônico.
Mas levam vantagem na política. Sempre a mata atrapalha o desmatamento, o que não falta é patrono do desmatamento. Nos Pontões Capixabas, isso inclui prioridades sociais, como a criação de búfalos, um bicho que em Guaraqueçaba, no Paraná, em menos de três décadas transformou um litoral quase intacto em charcos arruinados, onde a mata original vai sendo aos poucos replantada penosamente.
Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)
OESP, 18/08/2005, Vida, p. A24
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