Silêncio na floresta

O Globo, Rio, p. 10-11 - 14/01/2018
Silêncio na floresta
Sumiço de macacos na Reserva do Tinguá, onde animal morreu infectado, é investigado

ANA LUCIA AZEVEDO
ala@oglobo.com.br

Na densa mata da Reserva Biológica do Tinguá, pode estar a resposta para o avanço da febre amarela. Vizinhos da área verde não veem ou ouvem grupos de macacos desde outubro.

A tragédia que emudece a Mata Atlântica chegou ao Estado do Rio. Após calar, no verão passado, as florestas de Minas Gerais e do Espírito Santo ao dizimar bugios, os macacos cantores, a febre amarela é apontada agora como a provável razão para o silêncio em que mergulharam as áreas verdes fluminenses, onde foi confirmada a circulação do vírus. No alto de árvores nobres, como jequitibás e perobas, da Reserva Biológica do Tinguá, na Baixada Fluminense, o bugio já não canta mais, sinal do impacto da doença sobre o meio ambiente.
Há consenso no Tinguá sobre o desaparecimento e o silêncio dos bugios, também conhecidos como barbados por causa de sua espessa pelagem ruiva. A chefe da reserva, Virgínia Talbot, os escutou pela última vez no fim de setembro, um som distante, vindo de um lugar chamado Boa Esperança. O último bugio se fez ouvir numa expedição ao Pico do Tinguá, a montanha de 1.600 metros de altura que dá nome à região.
- Provavelmente, morreram todos ou quase todos. Em outubro, foi achado um animal morto. Procurei a Fiocruz, a Secretaria estadual de Saúde. A confirmação só saiu no fim de dezembro. Desde outubro, fiz o que pude para alertar as pessoas das comunidades do entorno. Não é normal macacos desaparecerem assim, de uma só vez. Essa floresta é enorme para os padrões do Rio, ninguém sabe o tamanho do estrago da doença. Pelo silêncio profundo, pode ter sido muito grande - lamenta Virgínia, que gostaria que houvesse mais pesquisas na reserva.
A 16 quilômetros do Centro de Nova Iguaçu e a pouco mais de 70 do Rio, a reserva é uma ilha de biodiversidade no meio do asfalto. Abriga uma das mais bem preservadas e ricas matas do Sudeste e é fundamental para o abastecimento de água da Baixada Fluminense. Andava esquecida até se tornar cenário da chegada do vírus da febre amarela à Região Metropolitana.
Os macacos são os engenheiros da mata. Ao dispersarem sementes, integram a teia de vida na qual se sustenta a Mata Atlântica, um dos mais diversificados e ameaçados biomas da Terra. Por isso, a mortalidade maciça causada pela febre amarela é considerada por primatologistas como Sergio Lucena, diretor do Instituto Nacional da Mata Atlântica, uma das maiores tragédias ambientais da história recente do Brasil.
MORADORES TEMEM VACINA
A voz do bugio atravessa vales e percorre quilômetros. Mas, neste verão, pesquisadores, mateiros, moradores e trabalhadores das bordas de mata da Reserva do Tinguá são unânimes em dizer que ela se calou, sumiu.
- Nunca observamos algo assim. O bugio era comum nessa região. Hoje, você percorre vales profundos, de mata densa, onde antes havia grupos de dezenas, e percebe que todos sumiram - afirma Edgar Martins, gestor do Parque Natural de Nova Iguaçu e responsável pela guarda ambiental do município.
Martins recebeu a incumbência de vacinar contra a febre amarela moradores de casas isoladas das bordas da reserva. Locais onde só se chega a pé, e com dificuldade. Descobriu que, mais difícil do que alcançá-los, é convencêlos a se vacinar.
- Não temem a vacina, mas a agulha. E a maioria acha que não vai acontecer nada. Não entendem que, mesmo que não adoeçam, podem se tornar porta- dores assintomáticos e ajudar inadvertidamente a espalhar a febre amarela para outras pessoas e macacos, já que mosquito transmissor há de sobra - diz Martins.
Na vacinação do ser humano, está a única proteção do macaco. Como é impossível imunizar os animais na mata, a vacinação humana é a forma de tentar bloquear o avanço da febre amarela, destaca o primatologista da Universidade Federal de Goiás Fabiano Melo.
O biólogo André Lanna, cujo doutorado é dedicado à investigação da fauna da Serra do Mar, teme que a febre amarela também tenha dizimado os bugios da Reserva Ecológica de Guapiaçu (Cachoeira de Macacu) e do Parque Estadual dos Três Picos, que abrange a área de Cachoeiras de Macacu, Nova Friburgo, Silva Jardim e Teresópolis, todos com casos de mortes de macacos por suspeita de febre amarela.
- Entro quase todos os dias no interior da mata e não ouço ou vejo qualquer sinal dos bugios. Encontrar as carcaças é difícil porque ficam ocultas no meio do mato ou são devoradas por outros animais. As pessoas precisam se vacinar não só por elas próprias, mas também para impedir que esse desastre se agrave - frisa Lanna.
Quem entra na mata em busca de macacos parece procurá-los em vão. Claudemir dos Santos, da Secretaria estadual de Saúde, que faz vigilância epidemiológica em primatas e mosquitos, só tem encontrado insetos. O Haemagogus eo Sabethes, os dois transmissores da febre amarela silvestre, são abundantes. Mas não há bugios ou qualquer sinal deles, diz.
O silêncio na mata incomoda Teresinha Muri, de 70 anos. Ela se mudou há quatro décadas para Tinguá, o bairro de Nova Iguaçu homônimo, fronteiriço à reserva.
- Você passa quase toda a vida ouvindo os macacos. E, de repente, não há mais nada. Sumiram quando a suspeita da doença chegou. Sempre gostei dessa floresta. Fui a primeira mulher a subir o Pico do Tinguá, e agora vejo uma tristeza dessas. O pior é que caçadores, ignorantes, querem matar os macacos, se houver sobrado algum. Eles acham que a culpa é dos bichos, coitados - lamenta Teresinha.
Virgínia também teme que a ignorância leve pessoas a matarem os macacos sobreviventes, supondo, erradamente, que eles transmitem a doença:
- Temos 150 quilômetros de perímetro da reserva. Impossível para nós cobrir tudo, precisamos da ajuda da população.
Alcides Pissinatti, do Centro de Primatologia do Inea, afirma que o Rio se defronta com um grande mistério.
- Ninguém sabe exatamente quantos bugios havia no estado, por isso, é difícil medir o impacto. E o desaparecimento deles não implica o do vírus, pois este infecta os mosquitos transmissores. Também existe a hipótese de outros animais serem reservatórios, inclusive gambás e cães domésticos que vivem em áreas de mata. Outras espécies de macacos, como o mico-estrela comum, também têm morrido, embora em menor número. Tudo isso precisa ser investigado - explica Pissinatti, um dos mais experientes primatologistas do Brasil.
Para ele, a doença tem avançado pelas florestas, mas não necessariamente só por elas:
- Pessoas que são portadoras assintomáticas e mosquitos se deslocam com mais rapidez e eficiência do que o lento bugio comedor de folhas. O macaco é dizimado por ser mais vulnerável. Para ele, a febre amarela sempre é trágica.
"Ninguém sabe o tamanho do estrago da doença. Pelo silêncio profundo, pode ter sido muito grande" Virgínia Talbot Chefe da Reserva Biológica do Tinguá


Reserva do Tinguá resiste sob proteção de ninfas

Perto do lugar onde alguns dos últimos bandos de bugios foram avistados, no fim do ano passado, ninfas protegem os rios e a floresta como há bem mais de um século. Chegaram da França, importadas por ordem de Pedro II. E ainda são as guardiãs de pedra da estação de captação e tratamento de água do Rio D'Ouro, inaugurada em 1880 e hoje operada pela Cedae, dentro da Reserva Biológica do Tinguá.
Indiferentes à tragédia dos animais atingidos pela febre amarela, as ninfas, meio homem meio mulher, propositalmente andróginas para seduzir ambos os sexos, parecem guardar o tempo. Elas remetem à época em que o Maciço do Tinguá abastecia de água o Rio, então capital do país. Desde 1833, a região tinha status de floresta protetora por sua abundância de água, que motivou a criação do sistema de abastecimento mais antigo do Rio de Janeiro.
A reserva biológica federal foi instituída só em 1989. E, a despeito de ataques como invasões, desmatamentos ilegais e crimes constantes de caçadores e palmiteiros, ajudou a proteger também um patrimônio hídrico e histórico em seus atuais 24.812 hectares, que se estendem por Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Petrópolis e Miguel Pereira. Dentro deles, estão a antiga estrada real do Comércio e as ruínas do povoado abandonado de Santana das Palmeiras
Fonte da melhor água do estado
Perto do fim do império, Tinguá ganhou estações de tratamento que funcionam até hoje. Na reserva há 32 captações ativas. Elas abastecem cerca de dois milhões de habitantes na Baixada Fluminense, explica Silvia Souza, que desenvolve uma tese de doutorado na Uerj sobre a importância hídrica do Tinguá. De lá vem, como nos tempos de Pedro II, a água de melhor qualidade do estado. Tão limpa que dispensa o tratamento químico intensivo pelo qual passa a do Guandu, destaca a chefe da reserva, Virgínia Talbot.
Porém, a partir dos anos 1950, quando a água do Rio passou a vir do Guandu, a região perdeu importância. O ramal ferroviário foi desativado e a estação espera cercada pela mata por um trem que nunca chegará. À exceção de funcionários da Cedae e da reserva, os seres humanos se foram, mas os animais selvagens voltaram.
Um túnel escavado na rocha para levar água de um ponto a outro da montanha se tornou passagem para a fauna. Pegadas de guaxinim acompanham na lama o caminho do aqueduto de pedra. No fim, surgem palmeiras imperiais, sobreviventes do reinado de Pedro II, plantadas como em avenida, hoje para o passeio de ninguém. A pompa e o luxo se foram, mas a fonte de ferro fundido, de autoria do francês Albert-Ernest Carrier Belleuse, professor de Rodin, continua a jorrar água sob a benção das ninfas.
- O Rio D'Ouro tem mais do que história. O vale onde nasce é por si só um tesouro. A floresta é densa como em poucos pontos da Mata Atlântica. Ninguém sabe exatamente que animais e plantas vivem nela. Precisamos de estudos atualizados. Pesquisas são bem-vindas e necessárias - afirma Virgínia.
Uma das pesquisas recentes, de autoria de Leandro Travassos, da ONG Associação Ecocidade, buscou atualizar o inventário de mamíferos. Encontrou 85 das 250 espécies do bioma. Entre elas, o queixada, o maior de nossos porcos do mato, que desapareceu de boa parte da Mata Atlântica. Onças pardas e jaguatiricas caçam em áreas úmidas e fechadas das encostas do maciço. Elas abatem coelhos, pacas e cutias. Há preguiças, tatus e tamanduás-mirins. E havia bugios, comuns até a febre amarela chegar. Uma simulação feita em computador estimou a existência de 17 macacos por 100 hectares, número considerado elevado. Pode ser que o muriqui, o maior e mais ameaçado primata das Américas, ainda viva nos pontos mais isolados, especula o pesquisador. Falta estudar mais. E, claro, combater a caça, que explora um comércio ilegal lucrativo. Travassos atribui a relativa falta de estudos ao estigma de violência que cerca a Baixada.
- Muita gente não imagina encontrar toda essa biodiversidade e riqueza na Baixada. Há o medo e o estigma da violência. Os caçadores e palmiteiros são de fato uma ameaça. Mas eles são uma praga de todas as florestas. O entorno é violento, como em outras partes da Região Metropolitana. Mas dentro da mata é mais seguro do que nas florestas da Pedra Branca e da Tijuca, por exemplo - diz Travassos, cujas pesquisas o levam a incursões semanais na reserva.
Odirlei Fonseca, pesquisador do Setor de Ornitologia do Museu Nacional/UFRJ, também vê no medo da violência o motivo do pouco conhecimento sobre o Tinguá. O último inventário de aves, por exemplo, data dos anos 1980. Listou 296 espécies, elas aves raras, como o gavião-de-penacho. Fonseca agora atualiza esse trabalho. Descobriu, por exemplo, que estamos na época da chegada de uma das mais audaciosas viajantes do planeta. É no verão que busca refúgio no Tinguá a mariquita-azul (Setophaga cerulia). O passarinho de 12 centímetros, que se parece um canário, cruza sozinho as Américas, um migrante solitário. Vem do norte dos Estados Unidos, em fuga do frio.
Aves e mamíferos vivem em meio a uma das maiores diversidades de flora de toda a Mata Atlântica. Um estudo recente do Jardim Botânico do Rio e da Universidade Federal Rural do Rio identificou 563 espécies de árvores, entre elas perobas, jequitibás e canelas. Sem a majestade das árvores gigantes, o bambu Glaziophyton mirabile faz os olhos dos cientistas brilharem pela raridade. Considerado fóssil vivo, só existe numa área de cerca de 50 metros perto do pico do Tinguá e num outro morro, em Petrópolis.
Acesso bastante restrito
Por ser uma reserva biológica, a mais rigorosa categoria de unidade de conservação, Tinguá está fechado ao turismo. A entrada é controlada e restrita a propósitos educacionais e de pesquisa. Coisa que trilheiros conhecedores da região, como Jorge Júnior, monitor ambiental, gostariam que mudasse:
- Discutimos com a prefeitura de Nova Iguaçu e o próprio ICMBio a possibilidade de transformar a reserva em parque nacional, para que mais pessoas possam conhecer esse patrimônio. Acho que um parque também poderia ajudar a organizar o turismo das bordas da reserva, hoje bastante caótico.
Nas partes mais altas da reserva, onde o bugio também costumava cantar, só se ouve agora a saudade. A Tijuca condita, ou saudade-de-asa-cinza, é uma das aves mais raras do Brasil. Chegou a ser considerada extinta, mas foi redescoberta no Tinguá, em 1980. Ambientalistas e cientistas esperam que o bugio possa ter a mesma sorte. E volte a povoar as matas. Quando a febre passar.


O Globo, 14/01/2018, Rio, p. 10-11

https://oglobo.globo.com/rio/sumico-de-macacos-na-reserva-do-tingua-onde-animal-morreu-infectado-investigado-22285686


UC:Reserva Biológica

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