A natureza em jogo

Veja, Página Aberta, p. 76-77 - 26/10/2016
A natureza em jogo
Apesar da vasta propaganda, o governo e os agentes privados ainda tratam o meio ambiente com descaso, procurando brechas para continuar desmatando e realizando queimadas

Maria Tereza Jorge Pádua

O PLANETA SE ENCONTRA numa encruzilhada: os ecossistemas que suportam a economia, o bem-estar e a sobrevivência humana estão entrando em colapso. Foi esse o alerta que permeou as discussões dos cerca de 8 000 participantes do Congresso Mundial da Natureza, que aconteceu no inicio de setembro, no Havaí, e no qual fui homenageada. Entre as alternativas apresentadas para enfrentar o desafio, destacou-se o estabelecimento de áreas naturais protegidas - no Brasil, as Unidades de Conservação (UC). A verdade, porém, é que, por trás de toda a propaganda do governo federal, o país não tem cuidado dessas UC como deveria, pondo em risco os valiosos habitats brasileiros.
Embora não constituam uma estratégia inovadora - os primeiros parques surgiram no fim do século XIX -, as áreas protegidas sempre tiveram e continuam tendo papel fundamental para preservar a biodiversidade e os serviços prestados pela natureza (como o fornecimento da água, das matérias-primas e dos solos férteis que sustentam a agricultura). No entanto, para que cumpra o seu papel de garantir um futuro sustentável, essa iniciativa deve ser ampliada. De acordo com as Metas de Aichi, acordadas na ONU e das quais o Brasil é signatário, pelo menos 17% das regiões terrestres e de águas continentais nacionais, e 10% das marinhas e costeiras, deverão ser conservadas por meio de sistemas de proteção até 2020.
No Brasil, as áreas protegidas são regidas pela lei. de 2000, que prevê o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Esse marco legal define, nas três esferas do governo, as categorias de UC em relação ao seu grau de proteção, aos objetivos específicos de manejo e às possibilidades de uso dos recursos naturais contidos nas áreas. Assim, nasceram dois grupos de UC: o das unidades de uso sustentável (com sete categorias, como a Área de Proteção Ambiental) e o das unidades de proteção integral (com cinco divisões, como o Parque Nacional). Paralelamente, foram determinados os regramentos para a criação, implantação e gestão dessas categorias e divisões.
Estamos longe das Metas de Aichi. Atualmente, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, a Amazônia tem 26% de seu território preservado em UC. O cerrado, a Mata Atlântica e a caatinga têm menos de 10% cada um, e o Pantanal e o pampa não chegam a 5%. A situação mais crítica é a da área marinha, com 1,5%. Todos esses números ainda merecem ressalvas, pois incluem na soma áreas que não requerem desapropriação das terras, estando em mãos de particulares, com atuação limitada do poder público. Ou seja, não são regiões devidamente protegidas. Considerando apenas as UC de proteção integral, que não permitem o uso dos recursos naturais (mas possibilitam pesquisa científica, recreação e educação ambiental), a porcentagem de proteção cai para 6% no continente e, no mar, para 0,1%.
Uma análise rasa dos números permitiria considerar que a situação da Amazônia, em termos de conservação, seria a melhor entre os biomas. De fato, o Brasil ainda é privilegiado por possuir uma enorme mancha de mata tropical. Contudo, corre o risco de deixar a Amazônia ser destruída celeremente, como o foram a Mata Atlântica, o cerrado e a caatinga.
Além de contar com mais UC de proteção integral, a Amazônia tem como prioridade diminuir expressivamente os desmatamentos e as queimadas. Essa redução só será possível se houver uma priorização dos governos, somada à pressão da sociedade, visto que não existem recursos suficientes para garantir a fiscalização nos órgãos ambientais e ainda há incentivos para a implantação de grandes, e danosos, projetos agropecuários. Algumas pessoas acreditam que um primeiro passo foi dado na ratificação pelo Brasil do Acordo de Paris, no qual o país se compromete a reduzir emissões de gases do efeito estufa. Entretanto, a previsão é zerar o desmatamento na Amazônia apenas em 2030. Ou seja, haveria pelo menos mais catorze anos de devastação. É inaceitável.
No Brasil, nos mares e no continente a responsabilidade pela conservação da biodiversidade (ou pela falta dela) é coletiva. Ao setor privado - incluindo a agricultura a mineração e a atividade pesqueira - cabem o cumprimento da legislação vigente e a redução dos impactos ao ambiente. Até porque a destruição é um fator que implica duras perdas econômicas. Isso quando não inviabiliza negócios.
Aos governos, nas três esferas, ainda falta a certeza de que a implementação de um sistema de UC eficiente é uma das principais estratégias para a conservação da biodiversidade e também para tomar os ecossistemas e as sociedades mais resilientes aos impactos da mudança global do clima. Porém, como ocorre com a grande maioria das leis no país, as que regem as UC caíram em descaso. Um exemplo: nem todas as UC estabelecidas estão devidamente regularizadas. Na prática, mais de 50% delas ainda permanecem em mãos de particulares, o que impossibilita o poder público de implantar projetos de infraestrutura. O que fazem, então, as autoridades e os agentes privados? Maquiam a situação, mudando as categorias para permitir a propriedade particular nas UC. Com isso, foram perdidos 5 milhões de hectares protegidos.
Mais uma vez, predomina o velho jeitinho brasileiro. Até a regra de receber compensação ambiental de grandes empreendimentos, que poderia ajudar na implementação do sistema, sofreu modificações por outras normas ou por interpretações legais esdrúxulas. Ademais, o país está nos últimos lugares do mundo em recursos financeiros e em funcionários por unidade de proteção, faltando condições para fiscalizar, proteger e implementar ações.
O que se pode e deve fazer como sociedade é parar com essa postura retrógrada e redobrar os esforços para implementar as devidas leis com responsabilidade, vontade política e participação popular. Nesse cenário, para conquistar o apreço da população, os parques nacionais são fundamentais. Essa categoria de proteção integral, quando bem manejada, é preciosa porque preserva belezas cênicas e possibilita a prática do ecoturismo, aproximando as pessoas da natureza e movimentando economias locais.
Os parques nacionais englobam o que há de mais extraordinário no Brasil, como as Cataratas do Iguaçu, o Pico da Neblina, as chapadas Diamantina, dos Guimarães e dos Veadeiros, e assim por diante. Se esses e outros parques fossem conhecidos e reconhecidos pela população, tudo seria mais fácil. Um pouco de pressão sobre o governo os transformaria em carros-chefe para a valorização das áreas protegidas nacionais, que, por sua vez, seriam convertidas em fatores substantivos do crescimento econômico e do desenvolvimento social, em uma lógica que já se estabeleceu em outros países. Os brasileiros perderam tanto e não há mais que esperar. Já passou da hora de agir e cobrar dos governantes que eles assumam a responsabilidade que lhes cabe e ponham o Brasil em posição de protagonista no cenário internacional de conservação da natureza. Temos de ir além da propaganda.
* Maria Tereza Jorge Pádua é agrônoma e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza

Veja, 26/10/2016, Página Aberta, p. 76-77
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