A lei do gatilho

Veja, p. 44-45 - 02/03/2005
A lei do gatilho
Enquanto a polícia investiga o assassinato da freira Dorothy Stang, outro ambientalista é morto no Rio de Janeiro

João Gabriel de Lima e Leonardo Coutinho

Três tiros de espingarda de caça mataram, na terça-feira passada, o ambientalista carioca Dionísio Júlio Ribeiro Filho, de 61 anos. Ele era um dos fundadores da ONG Grupo de Defesa da Natureza, a GDN, do município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. O ex-policial Dionísio era um especialista em organizar patrulhas voluntárias para ajudar o Ibama a fiscalizar crimes ambientais na região do Tinguá. O Tinguá, a maior reserva biológica do estado do Rio de Janeiro, reconhecido pela Unesco como patrimônio da humanidade, é alvo de companhias clandestinas de extração de palmito e de caçadores especializados em contrabando de animais silvestres. Por causa de sua atividade, Dionísio havia sido ameaçado de morte várias vezes. Na sexta-feira passada, o caçador Leonardo de Carvalho Marques, de 21 anos, confessou o crime. Em depoimento à polícia do Rio de Janeiro, disse ter matado Dionísio porque o ecologista denunciava com freqüência a atividade ilegal de caçadores. Ele próprio chegou a ter armas apreendidas em casa. Além de sofrer com os contrabandistas de animais, o paraíso ecológico do Tinguá é vítima dos caçadores esportivos, já que lá é possível encontrar onças e macucos, animais-fetiche dos praticantes da atividade. "Leonardo disse ter agido por conta própria, mas ainda estamos investigando para saber se ele estava ligado a algum grupo organizado", informa o secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Marcelo Itagiba.
A morte de Dionísio foi o segundo homicídio relacionado com crimes ambientais num espaço de dez dias. Na semana passada, a Polícia Federal prendeu três dos acusados pelo assassinato da freira Dorothy Stang, no município de Anapu, no Pará. Em seu depoimento, os pistoleiros de aluguel Clodoaldo Carlos Batista e Rayfran das Neves Sales confessaram o crime e disseram ter sido contratados pelo capataz Amair Feijoli da Cunha, por 50.000 reais mais dez cabeças de gado. Amair, que também está preso mas nega participação no crime, é o braço-direito do fazendeiro goiano Vitalmiro Bastos de Moura, que se encontra foragido. A arma do crime foi encontrada na propriedade de Vitalmiro, e os pistoleiros o apontam como mandante. Em agosto do ano passado, o fazendeiro havia adquirido uma área de 1 200 hectares do agiota Regivaldo Pereira Galvão, que responde a processo por envolvimento nas fraudes da extinta Sudam. Regivaldo era um dos principais financiadores das campanhas do ex-deputado Jader Barbalho. No ano passado, a irmã Dorothy encaminhou carta às autoridades acusando Vitalmiro e Regivaldo de desmatar ilegalmente centenas de hectares de floresta. Ambos já haviam sido multados pelo Ibama, respectivamente por exploração de trabalho escravo e por provocar incêndios na mata. Nunca pagaram um centavo sequer. "Eles estavam revoltados porque era a freira quem os denunciava ao Ibama", diz o pecuarista Júlio César Ferreira, morador da região.
Há diferenças entre as duas regiões nas quais ocorreram os crimes. A região de Anapu é uma zona conflagrada por disputas de terras envolvendo grileiros, e a situação se agrava com a atuação de mineradoras e madeireiras clandestinas. No Rio de Janeiro, crimes ligados à ecologia são residuais, já que o grande problema de segurança do estado é o narcotráfico. Guardadas as proporções, é possível tirar duas lições partindo dos assassinatos das últimas semanas. A primeira é que a atividade de ambientalista, outrora envolta em aura romântica, está ficando cada vez mais perigosa. "Sofrer ameaça de morte passou a ser rotina, pois os alvos de nossas denúncias cada vez mais têm dinheiro e armas e se voltam contra nós", diz o ambientalista Rogério Rocco, amigo de Dionísio, fundador da ONG Os Verdes e ex-secretário do Meio Ambiente da cidade de Niterói.
A outra lição é que não dá para combater crimes ambientais apenas com patrulhas voluntárias formadas por ONGs e fiscais do Ibama com bloco de multa na mão. "Madeireiros que derrubam árvores ilegalmente, contrabandistas de animais silvestres e mineradores clandestinos não são bandidos triviais", avalia Jorge Barbosa Pontes, chefe da Divisão de Repressão a Crimes Ambientais da Polícia Federal e o maior especialista brasileiro no assunto. "Eles formam grandes máfias, semelhantes à do narcotráfico, faturam em torno de 100 milhões de dólares por ano e, com esse dinheiro, eliminam facilmente quem quer que cruze o seu caminho." Combater crimes ambientais é atribuição da Polícia Federal estabelecida pela Constituição, mas apenas em 2001 o órgão criou uma divisão especializada na área - a qual, por sua vez, só começou a funcionar a pleno vapor em 2003, com a instalação de delegacias regionais. Estamos atrasados algumas décadas em relação aos Estados Unidos, onde o US Fish and Wildlife Service atua desde os anos 70, e até na comparação com países latino-americanos, como a Argentina, que criou sua División de Repressión a Delitos Ecológicos em 1996. Na semana passada, Jorge Barbosa Pontes e seus superintendentes regionais participaram de um simpósio com colegas americanos especializados na área ambiental. É necessário que a Polícia Federal se faça cada vez mais presente na luta contra as máfias do crime ecológico, para que assassinatos de defensores da mata como Dorothy e Dionísio não se tornem uma rotina triste como as mortes promovidas pelo narcotráfico.

Veja, 02/03/2005, p. 44-45
UC:Reserva Biológica

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