A Tarzan do sertão

O Globo, Ela, p.1 - 11/09/2004
A Tarzan do sertão
Arqueóloga e guardiã da Serra da Capivara vive entre o luxo e sua espingarda
Aos 71 anos, em pleno sertão do Piauí, onde trabalha há 34 anos e mora há 12, uma mulher se tornou uma lenda. Trata-se da festejada arqueóloga Niède Guidon. Brasileira de Jaú, interior de São Paulo, ela morou 21 anos na França e retornou definitivamente ao Brasil em 1992 para se tornar a todo-poderosa guardiã do Parque Nacional Serra da Capivara, Niède é uma figura rica em histórias. Todos os dias percorre muitos dos 300 quilômetros do parque em sua caminhonete Nissan em que não podem faltar facões e machados, além de uma espingarda para se defender das ameaças constantes dos caçadores. Se no meio do caminho encontra algum tronco caído impedindo a passagem, a decidida senhora de cabelos brancos desce do carro e com machadadas vigorosas desobstrui a estrada como um autêntico Tarzan” do sertão. Educada numa família burguesa, Niède conserva o requinte nas coisas simples da vida. No meio do sertão, a empregada Isabela serve um cardápio sofisticado em jantares exclusivíssimos nos quais as mulheres são presenteadas com delicadas echarpes de seda estampadas com paisagens rupestres feitas em Lyon, capital da indústria da seda na França. Com uma taça de vinho francês na mão, Niède diz que estamos vivendo em plena Idade Média. E que brevemente o Brasil se tornará um lugar inviável para se viver. Sempre acompanhada das cadelas maltesas Fifalix, Lilimax e Millie, conhecidas como Les Diaboliques (As Diabólicas) e do schnauser Mimo, ela admite que não conhece o significado da palavra desânimo. Tanto que lança, em outubro, uma campanha nacional para levantar fundos (em torno de R$250 mil) para a compra de cerca de dez mil hectares vizinhos ao parque onde estão sítios arqueológicos importantíssimos, de milhares de anos, que correm o risco de desaparecer por causa das queimadas. Com vocês, Niède.

Alvo de admiração e ódio
Matador anunciou em bares que ‘estouraria a cabeça dela com uma bala’
Nascida em uma família burguesa, com hora certa para tudo, Niède Guidon não se conformava com aquela vidinha. Não. Ela tinha sonhos que nem de longe apontavam para um altar cheio de flores como parecia ser o destino das moças do século passado.
Decidida, de temperamento forte, tomou nas mãos as rédeas da própria vida e, depois de um curso de história natural na Universidade de São Paulo (USP), foi para Paris estudar arqueologia na Sorbonne. Morou na França 23 anos e voltou ao Brasil para administrar o Parque Nacional da Serra da Capivara, com 130 mil hectares e cem funcionários.
Engajou-se na cruzada de preservação do parque com centenas de sítios arqueológicos já mapeados, esperando recursos para serem estudados com o cuidado que Niède emprega em seu trabalho. Uma luta que tem muito de espírito desbravador, muito de investigação, muito de paciência.
Quem conhece Niède, a arqueóloga, conhece a outra face desta mulher que no sertão do Piauí serve aos seus convidados verdadeiros manjares dos deuses. É uma gourmet. Assim como garimpa peças antigas, ela é capaz de preparar receitas francesas com o maior requinte e deixar espantados seus comensais. Podem imaginar uns canapês de castanhas da terra torradas ou um pato temperado com ervas regado a um bom vinho?
Foi algo assim que ela serviu há algumas semanas, deixando todos com cara de quero mais. Ao final ofereceu a cada convidado uma echarpe feita em Lyon com motivos rupestres, os mesmos desenhos que ela estuda nas cavernas exploradas no interior do Piauí. Niède só não conseguiu mesmo sensibilizar o governo a comprar uma área de dez mil hectares vizinha ao parque.
Não tem importância. À frente de uma campanha que será lançada em outubro, nacionalmente, ela pretende arrecadar a quantia, preparar um sucessor e, talvez, aposentar-se.
— Eu fiz o caminho inverso ao do presidente Lula. Ele saiu do sertão e hoje ocupa o cargo máximo na hierarquia do país, num caminho político-partidário, e eu saí de Paris para sumir no mapa deste sertão de Raimundo Nonato — brinca.
Tanta determinação fez Niède ganhar o respeito dos seus funcionários e colegas, da população, mas também o ódio dos fazendeiros que gostariam de ver aquela mulher” longe das suas terras. Um grupo de forró local até fez uma música em sua homenagem. O que mostra o respeito popular mas não impede os desafetos. Há duas semanas, um bandido avisou nos bares da cidade Coronel José Dias, que fica no Parque, que estouraria a cabeça dela com uma bala”, tão logo a encontrasse.
O toque dos temperos dando à comida um gosto diferente suaviza o verdadeiro perfil de Niède: uma vontade férrea, uma pesquisadora cheia de determinação que deixou de dar aula na Ècole des Hautes Études para se embrenhar no sertão piauiense, onde estuda os fósseis da megafauna e pinturas rupestres pré-históricas. É uma rotina dura, mas ela gosta porque permite maior convivência com a natureza.
— Aqui, há nove mil anos, corria um rio. Foi a água que trouxe o homem para cá. Havia muitos animais para caçar e plantas para coletar. E as serras davam abrigo. Não havia motivo para ir embora.
Diariamente, bem cedo, com calça e camisa simples, ela sai a bordo de um Nissan cinza-chumbo, tração nas quatro rodas, e percorre os 300 quilômetros do parque, em alta velocidade, passando por estradinhas improvisadas, caminhos de areia, desbravando o mato sempre com um enorme facão à mão, ou uma espingarda, para defesa pessoal. A arqueóloga já foi ameaçada de morte mais de uma vez por fazendeiros (descontentes com a descoberta de novos sítios para escavação) e caçadores (prejudicados pela proibição de caçar animais nos domínios do parque). Sua vigilância é constante e como o Ibama não tem funcionários suficientes, Niède se sente na obrigação de ajudá-lo, já que é responsável pela manutenção do parque e pela preservação das terras, incluindo os animais nativos da região.
A maior preocupação da arqueóloga é manter todo esse patrimônio. Até há pouco tempo, mesmo o combustível dos carros do Ibama era pago pela Fundação Museu do Homem Americano. Porém, com os recursos escassos, a fundação já está sendo obrigada a demitir funcionários. Este ano um pedido de socorro emergencial feito ao governo federal para reparar danos causados na infra-estrutura do parque por chuvas fortes foi negado. Agora, no período da seca, se houver algum foco descontrolado de fogo, pode-se perder tudo.
Niède denunciou esquema de propinas
Niède mora em uma casa confortável e prática onde hospeda pesquisadores do mundo inteiro e gosta de recebê-los sentando-os à volta de uma grande mesa onde degustam seus esplêndidos pratos e podem conversar à vontade. Mas nem sempre é fácil. É preciso achar o caminho do seu coração para que ela vá se soltando aos poucos. Então o papo vai longe. Cada um contando seus casos, dizendo como se iniciaram na profissão. Com Niède, tudo começou com um curso de história natural, depois fez especialização para dar aulas e virou professora em Itápolis, interior de São Paulo.
— Quem normalmente ensinava na cidade era gente local, geralmente advogados. Eu e minhas colegas fomos da primeira turma de professoras formadas e concursadas e o diretor da escola não gostou da mudança. Ele tinha um pacto que viemos a descobrir: ele recebia para não reprovar alunos. Suspendemos então as provas e fomos a São Paulo fazer a denúncia na Secretaria de Educação. Foi um escândalo. Saímos nos jornais, os alunos fizeram guerra contra nós. Nós estávamos certas, mas a Secretaria de Educação achou que não havia clima para voltarmos a lecionar e fui transferida para um museu.
Como era formada em história natural, o diretor, na falta de coisa melhor, mandou Niède para o setor de arqueologia.
— Eu não entendia nada de arqueologia e não queria trabalhar com um assunto que desconhecia. Pedi que me indicasse um curso. Foi assim que fui parar na França aos 28 anos.
Educada com rigidez, indo à missa aos domingos, tendo hora para comer e dormir, foi com alívio que ela se viu sozinha, dona do tempo, estudando e trabalhando. Tornou-se especialista em pré-história e, pesquisando, ficou impressionada com os lugares onde os homens pré-históricos viviam e, reconstituindo mentalmente o ambiente, surpreendeu-se com a qualidade de vida, com a liberdade que possuíam:
— O homem podia estar aqui hoje e amanhã ir para outro lugar. Não carregavam pesos. Não tinham propriedades que os prendessem. Eram leves e livres — observa.
Segundo a pesquisadora, o homem hoje precisa comer, dormir, movimentar-se como o homem primitivo, mas a mudança foi radical. Só que para comer ele vai ao supermercado e compra.Vai ao restaurante e paga pela refeição. Depois vai a uma academia malhar.
— Se os homens de hoje caçassem ou coletassem a própria comida, não precisariam de academia. Nós criamos uma vida que na realidade não é nossa vida. Vivemos para manter todo um sistema, para mantermos as firmas que fabricam remédio e comida. Nós pagamos por tudo e de tal maneira que perdemos o senso do que é uma vida natural.
Com isso, lembra Niède, o homem conseguiu passar dos limites da reprodução diferentemente das sociedades pré-históricas que não cresciam muito, porque a comida disponível, aquela que você pegava com as mãos, era limitada.
— Eles tinham os filhos que podiam sustentar. Já nós, criamos uma sociedade na qual o homem tem de trabalhar e pagar para viver. Estamos cada vez mais impregnados da organização social. Somos completamente reféns e escravos. E trabalhamos para quê? Para pagar imposto.
Por princípio, Niède não tem propriedades. De seu, gosta de dizer que tem apenas quatro cachorros e uma coleção de 300 CDs. É uma alma livre. Pode ir para onde quiser, mas diz que, atualmente, está chumbada no Parque Nacional, porque sabe que depende dela a sobrevivência do local com as suas inúmeras escavações e pesquisas em andamento.
— Não posso sair daqui até resolver os problemas atuais.

O Globo, 11/09/2004, p. 1 (Ela)
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