Ameaça à Costa Verde

O Globo, Rio, p. 16 - 29/08/2009
Ameaça à Costa Verde
Decreto permite maior ocupação de áreas e construção de empreendimentos em ilhas

Tulio Brandão

A Costa Verde corre o risco de ganhar um tom mais acinzentado. Um decreto do governador Sérgio Cabral, publicado sem alarde em junho deste ano, flexibilizou as regras de ocupação da Área de Proteção Ambiental (APA) de Tamoios, que se estende por 93 ilhas e parcéis da Baía da Ilha Grande e ao longo de 81 quilômetros de faixa litorânea no continente. A mudança foi feita na Zona de Conservação da Vida Silvestre (ZCVS) da unidade: o decreto original da APA, de 1994, previa que nessa zona apenas os proprietários com área já construída poderiam ampliar em 50% suas edificações até o limite de 20% do terreno.

Agora, com a nova regra de Cabral, o benefício da construção foi estendido a todos os que têm terreno dentro de ZCVS, inclusive aqueles que não tinham qualquer edificação. Desde junho, os donos podem construir em 10% do terreno.

A medida afeta especialmente as cerca de 70 ilhas consideradas de conservação da vida silvestre, onde poderão ser construídos desde residências até grandes empreendimentos turísticos. O decreto já provocou uma corrida do ouro: segundo o Instituto Estadual do Ambiente, desde que o ato foi sancionado, no dia 22 de junho, mais de 20 proprietários cujos pedidos tinham sido indeferidos voltaram ao órgão para tentar novo licenciamento.

O decreto de Cabral, respaldado pela Secretaria estadual do Ambiente, determina que a área usada dentro da ZCVS esteja "comprovadamente impactada" e indica como referência fotos aéreas de 2005. Ou seja, o que estiver degradado na foto poderá ser ocupado. Especialistas consideraram a ressalva inócua:
- Essa é uma prática comum de empreendedores: destruir lentamente a mata, para, mais tarde, descaracterizála como zona de conservação. A medida é também um prato cheio para fraudes - disse o presidente do Comitê de Defesa da Ilha Grande, Alexandre de Oliveira.
Secretária: 'Era uma restrição descabida
Para o advogado Rogério Zouein, especialista em direito ambiental, não faz sentido usar como base fotos de 2005 11 anos depois da regulamentação da APA, quando vários proprietários, irregularmente, já desmataram seus terrenos.

- A descaracterização da vegetação é uma prática muito comum. Para funcionar, as fotos deveriam espelhar a realidade da criação do plano de manejo, de 1994.

A secretária estadual do Ambiente, Marilene Ramos, alegou que os critérios de ocupação da APA de Tamoios inviabilizavam qualquer licenciamento na região:
- Era uma restrição descabida e sem suporte técnico. Seguimos a limitação de 10% existente em outras APAs, como a de Massambaba e a do Pau-Brasil, na Região dos Lagos. O critério da unidade de Tamoios era quase uma excrescência. Tínhamos vários procedimentos de licenciamento parados em função disso, e muitos proprietários estavam recorrendo à Justiça. Queremos permitir apenas ocupações viáveis.

Ambientalistas consideraram a decisão do governo ainda mais grave por ter sido tomada sem o conhecimento do Conselho Consultivo da APA, contrariando a regra do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), que recomenda a consulta aos conselheiros para mudanças no zoneamento.

- O decreto abre um precedente para esse tipo de prática autoritária, traz um constrangimento para o setor ambiental do governo e deixa o caminho praticamente livre para a degradação das ilhas preservadas - lamentou Alexandre.

Nem a chefe da APA, Mônica Nemer - que é funcionária do governo estadual -, foi informada na ocasião do decreto. Marilene Ramos reconheceu não ter comunicado ao conselho consultivo a decisão: - O conselho está participando de todo o processo, mas essa foi uma questão técnica, exclusiva. Queríamos que fosse tomada com celeridade.

Não seria possível de outra forma.

A chefe da APA explica que a área conservada de todas as ilhas da Baía da Ilha Grande acima da cota 20 ou 30 (dependendo da ilha) é considerada ZCVS. A zona em questão, diz ela, é intermediária entre a Zona de Ocupação Controlada (ZOC) e a Zona de Vida Silvestre (ZVS, que não pode ter qualquer uso). Para Mônica, a decisão vai provocar a ocupação das ilhas.

- Há propriedades grandes nas ilhas. A ocupação de 10% será sentida. Tecnicamente, essas áreas deixarão de ser ZCVS para se tornarem Zonas de Ocupação Controladas.

Hoje, praticamente nenhuma ilha chega a 10% de ocupação.

O diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Inea, André Ilha, acredita que a restrição em relação à permissão de construção apenas em áreas impactadas segundo fotos de 2005 ajudará a conter o avanço imobiliário.

- As imagens têm bom nível de precisão, na escala de 1 para 10.000.

É preciso lembrar que, quando a construção for autorizada, o empreendedor terá a obrigação de conservar os outros 90%. E, se tiver mais de 10% degradado, terá que recuperar a mata restante


Paraíso já sofre com a degradação

Agora ameaçadas, as ilhas da Baía da Ilha Grande preservam algumas da últimas manchas de Mata Atlântica da região de Angra dos Reis e Paraty. Não à toa, a região, considerada paradisíaca, sofre constante pressão da indústria imobiliária e frequentemente é alvo de degradação. Não são raras as denúncias de ocupações irregulares, construção de marinas e helipontos irregulares.

O descontrole é ainda maior no continente. Angra tem sofrido há anos com a favelização das encostas, a ocupação desordenada da faixa litorânea e até com a privatização de praias. Em abril de 2008, O GLOBO mapeou 39 praias nos 90 quilômetros de litoral entre Mangaratiba e Angra. Apenas 11 delas tinham acesso completamente liberado. Do total, 14 eram completamente fechadas para uso de condomínios e hotéis. E, em outras dez, a frequência era controlada por seguranças e, às vezes, até mesmo cobrada.

Tanta pressão gerou inúmeras denúncias de corrupção.

Há dois anos, a Polícia Civil deflagrou na região a Operação Cartas Marcadas, prendendo desde fiscais da extinta Feema (atual Inea) até o ex-secretário de Obras de Angra dos Reis.

O Globo, 29/08/2009, Rio, p. 16
UC:APA

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Tamoios (APA)
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.