Caçador agora é caça no Tinguá

O Globo, Rio, p. 20-21 - 15/06/2008
Caçador agora é caça no Tinguá
PF reprime exploração de reserva biológica

Antônio Werneck

A Reserva Biológica do Tinguá, em Nova Iguaçu, a 70km do Centro do Rio, deveria ser uma floresta intocada. Declarada há 19 anos unidade de conservação pelo governo federal, ali só deveriam pisar pesquisadores autorizados e estudantes de escolas públicas em visitas guiadas. O que está longe de ser a realidade. A Polícia Federal do Rio acaba de identificar uma rede formada por cerca de cem pessoas atuando na reserva de forma extremamente predatória, na caça, no tráfico de animais silvestres, na extração de palmito, no corte de madeira e em grilagem de terras. Até mesmo areia tem sido retirada ilegalmente da reserva.
O mapeamento da PF revela ainda que o grupo investigado está dividido em três quadrilhas bem estruturadas, com ramificações em pelo menos seis municípios do Rio. A mais importante delas segue uma cadeia que tem numa ponta o caçador artesanal e na outra, pessoas acima de qualquer suspeita, que pagam caro para degustar carnes exóticas de animais abatidos. O trabalho da PF, a cargo de policiais federais da Delegacia de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico (Delemaph), sediada na Praça Mauá, começou há cerca de um ano.
- Estamos atuando de forma sistemática no combate aos crimes ambientais na Reserva Biológica do Tinguá, enfrentando quadrilhas bem estruturadas. Nosso maior problema é driblar questões culturais. Infelizmente, muitos caçadores herdaram dos pais e dos avós a vontade de caçar. E é nisso que precisamos pôr um fim - afirmou o delegado Alexandre Saraiva.
A presença da PF no Tinguá tem sido tão intensa que o superintendente do Rio, Valdinho Caetano, decidiu ocupar fisicamente a floresta. Até julho está prevista a inauguração de um núcleo dentro da reserva, uma extensão da Delemaph, para servir de braço no combate aos crimes ambientais. Uma equipe formada por agentes e delegados dará plantão 24 horas por dia. Em um ano de ações dentro da reserva, a PF instaurou mais de 140 inquéritos, prendeu aproximadamente 35 pessoas e apreendeu mais de 80 armas. Este ano, as ações dos policiais federais na reserva passaram a ser freqüentes:
- Declaramos guerra aos caçadores e outros criminosos que atuam na floresta. Passamos a pôr cartazes na reserva com um recado direto: caçador na reserva é caça - diz Saraiva.
Mestre em ecologia pela UFRJ, o professor Leandro Travassos, de 29 anos, com a experiência de quem passou mais de um ano estudando a aves e mamíferos na Reserva Biológica do Tinguá, acredita que a baixa população de mamíferos na região é resultado da caça predatória. Na defesa de sua tese, Leandro abordou exatamente a influência da caça sobre populações de aves e mamíferos na reserva biológica.
- Como não existe uma pesquisa anterior sobre o impacto da caça nas populações de animais, concluí no meu trabalho ser muito provável que a caça tenha sido responsável pelo desaparecimento de animais grandes na reserva, como onças e antas. A baixa taxa na presença de algumas espécies de animais pode ser devido à caça - afirma Leandro.
Ambientalista foi morto
O chefe do posto do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Luiz Henrique dos Santos Teixeira, lembra que é preciso equilibrar repressão com ações educacionais. Na sua opinião, há muita coisa boa acontecendo no Tinguá, mas ele reconhece ser difícil para o Ibama combater sozinho os caçadores:
- O Ibama tem hoje na reserva biológica 13 funcionários. Nossa necessidade seria de 40, mais que o dobro. É lógico que a presença da PF na reserva é importante e só vem reforçar o trabalho de parceria que ela tem com a gente.
Uma das motivações para a ocupação física da Polícia Federal na reserva surgiu em dezembro passado: durante uma operação na mata, os policiais enfrentaram uma intensa troca de tiros com caçadores. Três foram presos em companhia de um palmiteiro e de um comerciante que comprava palmito extraído ilegalmente. Há três anos, na mesma reserva, o ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro Júnior, conhecido como Seu Júlio, foi executado a tiros depois de iniciar uma campanha contra caçadores e fazer denúncias da extração ilegal de palmito.
Na semana passada , uma outra operação da Polícia Federal, que começou ainda de madrugada, terminou no início da noite com a prisão dos caçadores Paulo Roberto Pires Clementino, Severino Campos e seu filho, Diego Correa Campos.
Os três foram surpreendidos num acampamento no meio da mata. Com eles os policiais federais encontraram uma paca, um tatu, uma cotia e um porco-do-mato abatidos. Os três estavam num acampamento no meio da mata e foram necessárias oito horas de caminhada até os federais chegarem ao local. Toda a ação da PF, inclusive o momento da prisão, foi filmada.
- O que mais me chamou a atenção foi a estrutura do acampamento dos caçadores.
Eles poderiam passar dias e dias ali. Havia água canalizada, fogão a lenha e beliches improvisados - conta Saraiva.


Santuário natural entre a beleza e o perigo
Caçadores minaram a reserva com armadilhas chamadas trabucos: quem pisar pode até perder uma perna

Antônio Werneck

A Reserva Biológica do Tinguá é um santuário natural encravado na Baixada Fluminense, ao pé da serra. Em suas terras pesquisadores identificaram cerca de 60 espécies de mamíferos, 300 de aves e 52 anfíbios, além de centenas de milhares de insetos.
Nativos da reserva, a onça pintada, a anta e a jacutinga (ave preta de grande porte) são consideradas extintas por ação de caçadores. Há boa notícia também: em 2003 um pesquisador registrou a presença do raro gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus ).
O delegado Alexandre Saraiva, da Delegacia de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente e o Patrimônio Histórico (Delemaph) da PF do Rio, fez um alerta: a reserva está sendo minada pelos caçadores. Segundo Saraiva, existem várias áreas onde há uma acentuada concentração de trabucos, uma espécie de armadilha feita com uma espingarda que espalha chumbo quando acionada:
- O trabuco é uma armadilha para os animais, que morrem ao acionar seu mecanismo.
Os caçadores espalham esse tipo de arma pela floresta e depois voltam para ver se algum animal foi atingido. Mas, para o ser humano, tem efeito semelhante a uma mina terrestre: se você pisar no mecanismo, pode perder uma parte da perna.
Compradores pagam caro por carnes exóticas
Segundo investigações da PF, os caçadores geralmente são ex-policiais, mateiros e pessoas simples, que culturalmente herdaram dos pais o gosto pela caça. São eles os responsáveis pela captura dos animais usando toda espécie de artifício. Há ainda na cadeia a figura do atravessador: quem faz a encomenda e compra a caça. Preferem animais exóticos, abatidos e já limpos. São eles que atendem pedidos de comerciantes.
Na escala dos predadores da Reserva Biológica do Tinguá, a figura considerada mais secreta é o degustador: pessoa considerada acima de qualquer suspeita que paga caro pelo prato. Quanto mais exótico for, mais dinheiro ele estará disposto a gastar. Um tatu, por exemplo, é vendido pelo caçador ao atravessador por preços que variam de R$ 50 e 100. Ainda segundo a PF, uma paca não custa menos de R$ 200. O porco-do-mato, cuja carne é considerada muito saborosa e com pouca gordura, custa abatido R$ 30 o quilo. No ano passado, durante uma operação, os policiais federais encontraram um raro exemplar de veado mateiro (Mazama americana ), sendo esfolado por um caçador.
- O sujeito já tinha tirado o couro, as tripas e preparava o bicho para o corte de peças -- lembrou Saraiva.
Mananciais abastecem o Rio e a Baixada
A proteção da unidade é de vital importância para a conservação dos mananciais responsáveis pelo abastecimento de parte do Rio de Janeiro e de cerca de 40% da Baixada Fluminense, com benefício direto para milhares de pessoas na região.
A reserva foi criada para proteger amostra representativa da Floresta Atlântica e demais recursos naturais e proporcionar o desenvolvimento das pesquisas científicas e educação ambiental. Espécies como jequitibás, sapucaias, guapuruvus, jatobás e quaresmeiras são encontradas, bem como orquídeas em grande abundância.


Uma jóia para os amantes da vida selvagem

Leandro Tavares

Em lugar tão próximo à Região Metropolitana do Rio, é difícil acreditar que ainda existam pumas, porcos-do-mato, jaguatiricas, veados e muitas outras espécies que fariam qualquer produtor de documentários, desses transmitidos por canais por assinatura, babar de inveja.
A Reserva Biológica do Tinguá é um dos remanescentes mais importantes para a conservação da fauna da Floresta Atlântica do Rio. É uma verdadeira jóia para os amantes da vida selvagem.
Atualmente, o único local no estado onde foi registrado o raro gavião-de-penacho (Spizaetus ornatus ) e a única unidade de conservação, da região central da Serra do Mar fluminense, a abrigar uma população do "valente" queixada (espécie de porco silvestre).
Apesar da vida abundante, sua fauna sofre com a ação de caçadores. A caça de grandes mamíferos e aves tem causado extinções em toda a Mata Atlântica. Espécies como a anta, a jacutinga e a onça-pintada foram extintas na região do Tinguá. Reduções na população ou perda de espécies podem comprometer processos ecológicos importantes, como a dispersão de sementes. Além disso, os caçadores concorrem com as onças e outros predadores pelas mesmas presas, ou seja, um caçador na mata pode representar menos chance para os animais carnívoros criarem seus filhotes.
O rápido crescimento demográfico e a urbanização dos bairros que ficam no seu entorno também são preocupantes, já que muitas espécies tendem a se deslocar para as áreas de baixada em períodos de escassez de comida, tornando-se mais vulneráveis à ação dos caçadores.


Corredor ecológico liga áreas de preservação

Tulio Brandão

Isoladamente, a Reserva Biológica do Tinguá já seria fundamental ao Rio: tem um dos maiores índices de biodiversidade do estado, detém importante reservatório de água da Baixada Fluminense e atua como um regulador climático para todo o seu entorno. Nas novas teorias de conservação, que estimulam a criação de grandes corredores verdes formados por várias unidades, Tinguá se torna ainda mais forte. A reserva foi incluída nos dois projetos do gênero em andamento no Rio - o Mosaico Central Fluminense e o corredor ecológico (ou de biodiversidade) Bocaina-Tinguá.
A reserva está entre as mais importantes unidades de conservação formadoras do mosaico. São 22, ao todo, segundo o presidente do conselho do mosaico, Breno Herrera. Por ser uma unidade de acesso restrito, o Tinguá assegura proteção integral a uma parte importante do quebra-cabeça de áreas protegidas.
O presidente do mosaico explica, no entanto, que a conservação do mosaico e da própria reserva depende, curiosamente, de uma pequena faixa de vegetação numa localidade chamada Maria de Lima, em Petrópolis.
Essa mancha verde liga Tinguá à APA Petrópolis e ao Parque dos Três Picos. Para Breno, se o desmatamento avançar nesse bairro, o mosaico - e, por tabela, a reserva - estarão condenados.
A reserva também divide sua importância com o corredor ecológico Bocaina-Tinguá, que foi praticamente fechado esta semana com a inauguração do Parque Estadual Cunhambebe, que ocupa 38 mil hectares de quatro municípios da Costa Verde e do Sul Fluminense. Numa segunda fase, o Instituto Estadual de Florestas vai estimular a ampliação deste corredor até o Parque Estadual do Desengano.
A criação de corredores e mosaicos, de acordo com especialistas em conservação, garante maior proteção à biodiversidade e, especialmente, às grandes espécies da fauna, que só sobrevivem em áreas muito extensas.


A cobiçada fauna da Reserva do Tinguá

A Reserva Biológica
Criada em maio de 1989, a Reserva Biológica do Tinguá tem 27 mil hectares e abrange 4 municípios: Caxias, Nova Iguaçu, Petrópolis e Miguel Pereira. O relevo é acidentado, e o Maciço do Tinguá chega a 1.600 metros de altura. Uma das áreas remanescentes de Mata Atlântica mais representativas do estado, a reserva tem rios, corredeiras, cachoeiras e piscinas naturais, além de ruínas dos séculos XVIII e XIX. É um importante laboratório natural para o desenvolvimento de pesquisas sobre a biodiversidade. Tem ainda grande relevância como área estratégica para o abastecimento hídrico da cidade do Rio e da Baixada Fluminense.

Como atuam as quadrilhas

1 Caçadores
Geralmente policiais, ex-policiais, mateiros e pessoas simples que culturalmente herdaram dos pais o gosto pela caça. São eles os responsáveis pela captura dos animais usando toda espécie de artifícios.

2 Atravessadores
Fazem a encomenda e compram a caça. Preferem animais exóticos, abatidos e já limpos. São eles que atendem a pedidos de comerciantes.

3 Comerciantes
Encomendam a caça, pagando à vista, e contratam o cozinheiro responsável pelo preparo do prato. Têm o contato dos consumidores, normalmente pessoas com recursos para pagar caro pela refeição.

4 Consumidores
Em geral pessoas acima de qualquer suspeita que pagam caro pelo prato. Quanto mais exótico for, mas dinheiro eles estarão dispostos a gastar.

O Globo, 15/06/2008, Rio, p. 21
UC:Reserva Biológica

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Tinguá
  • UC Petrópolis
  • UC Desengano (PES)
  • UC Três Picos
  • UC Cunhambebe
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