Caçadores e extratores de palmito estão entre suspeitos

O Globo, Rio, p.15-16 - 24/02/2005
Caçadores e extratores de palmito estão entre suspeitos
O ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro pode ter sido assassinado por extratores de palmito ou caçadores que atuam na Reserva Biológica de Tinguá. Esses grupos vinham sendo combatidos por Dionísio e por funcionários do Ibama de Tinguá. A hipótese levantada pelos delegados Rômulo Vieira, da Divisão de Homicídios da Baixada, e Roberto Cardoso, titular da 58 DP (Posse), também vem sendo reforçada por funcionários do Ibama, da reserva e por amigos de Dionísio. Segundo o subsecretário de Meio Ambiente de Nova Iguaçu, Hélio Vanderlei, o ambientalista vinha sofrendo ameaças por telefone. A Polícia Federal também vai investigar o caso.
Testemunha viu a vítima ser assassinada pelas costas
Segundo o delegado Roberto Cardoso, está praticamente descartado o crime de latrocínio (roubo seguido de morte). Das seis pessoas ouvidas pelo delegado ontem, duas chegaram a ver o assassino sair do matagal e atirar na cabeça do ambientalista, por trás. As testemunhas contaram que o local era ermo e muito escuro, o que dificulta a identificação do matador.
— Já temos alguns suspeitos, mas não podemos revelar os nomes para não atrapalhar as investigações. O que temos de concreto é que o ambientalista provocava insatisfação de algumas pessoas ao proteger o meio ambiente — disse Cardoso.
Outro fato que chamou a atenção do delegado foi o horário da reunião, já que fugia da rotina do ambientalista:
— O que nos causa estranheza é que a reunião da qual o ambientalista participou foi atípica. Não era comum eles se reunirem à noite numa terça-feira.
A morte do ambientalista mobilizou ainda na madrugada de ontem o secretário de Segurança Pública, Marcelo Itagiba. Ele foi avisado da execução pelo deputado Carlos Minc. Itagiba determinou aos delegados Roberto Cardoso e Rômulo Vieira rigor na apuração do caso.
Uma das últimas pessoas a ver Dionísio com vida contou que a vítima caminhava por uma trilha próximo à reserva. Depois que o ambientalista passou, foram ouvidos tiros. Estava muito escuro e a testemunha chegou a ouvir alguém avisando que ele não deveria ir onde estava o corpo de Dionísio.
O gerente executivo do Ibama no Rio, Edson Bedim de Azeredo, enviou ontem à Superintendência da Polícia Federal um pedido de reforço policial para dar garantias de vida ao chefe da Reserva Biológica de Tinguá, Luiz Henrique Santos Teixeira. Bedin também enviou um ofício à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, pedindo que ela discuta os problemas na Reserva do Tinguá com o Ministro da Defesa, José de Alencar. O objetivo seria organizar ações conjuntas com os governos federal e estadual para reforçar a segurança na reserva.
Polícia diz que ameaças não foram registradas
As polícias civil e federal informaram que nenhuma ameaça a ambientalistas que atuam em Tinguá foi registrada. O delegado Agildo Soares, diretor da Delegacia Regional da Polícia Federal de Nova Iguaçu, determinou ontem instauração de inquérito policial para apurar a morte de Dionísio e crimes ambientais que estejam ocorrendo na reserva. O delegado Marcelo Bartolucci será responsável pelo inquérito. O delegado José Milton Rodrigues, superintendente da Polícia Federal no Rio, disse que a PF vai dar proteção aos funcionários federais que estejam ameaçados de morte.
O Ministério Público federal, por intermédio do procurador Renato Silva de Oliveira, também pediu uma investigação rigorosa. O MP tem inquéritos investigando casos de desmatamentos; de caça e captura de animais para venda; destruição da floresta para o corte de palmito e construção ilegal de imóveis dentro da área protegida.
— O assassinato do ambientalista é uma clara demonstração de que a repressão a crimes ambientais na reserva deve ser intensificada. Embora o homicídio seja uma triste novidade, o que não faltam são ações penais referentes a caça e outros crimes ambientais naquele local — disse o procurador Renato Silva de Oliveira.
Revolta durante ato ecumênico
Em clima de revolta e muita emoção, aproximadamente 150 pessoas participaram ontem à tarde de um ato ecumênico em memória do ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro. A manifestação foi em frente à sede da ONG Grupo Defensores da Natureza (GDN), da qual Dionísio fazia parte e cuja sede fica na entrada da Reserva Biológica do Tinguá.
Vários ambientalistas discursaram e lembraram a luta pela preservação da reserva. O prefeito de Nova Iguaçu, Lindberg Farias, também participou do ato e falou dos dois crimes bárbaros ocorridos no município em dois dias: a chacina na qual sete pessoas de uma mesma família foram mortas e o assassinato do ambientalista.
— Pedimos que o Ministério da Justiça interviesse. Esse caso pede ação exemplar. É preciso mudar a cultura de que na Baixada se resolve tudo a bala — disse Lindberg Farias, que garantiu que a prefeitura acompanhará o caso de perto. — Vamos criar um marco para que fatos como esse não continuem acontecendo.
Ex-companheiros de Dionísio estavam entre os mais emocionados. O agente florestal e presidente de honra do Grupo Defensores da Terra, Márcio das Mercês, estava inconsolável. Márcio consta da lista de ambientalistas ameaçados de morte por denunciar caçadores e exploradores de palmito. Ele definiu Dionísio como um homem austero quando tratava das questões de preservação da Reserva Biológica do Tinguá.
— A lista de inimigos e de quem tinha interesse na morte dele vai desde palmiteiros até grandes empreendedores — disse Márcio. — É preciso que haja uma ação efetiva do governo federal nesse caso.
O ambientalista morto também era conhecido como Seu Júlio. Era assim que a comunidade pobre do entorno da reserva tratava Dionísio, que caminhava por toda a área e conhecia cada um dos moradores. Chorando muito, a dona-de-casa Sueli Conceição de Freitas, de 42 anos, moradora da Comunidade da Biquinha, lembrou da árdua luta que Dionísio travou durante anos para que os moradores tivessem água encanada.
— Acabaram com o Seu Júlio, mas a nossa esperança não vai acabar — disse Sueli.
De mãos dadas, as pessoas rezaram um pai-nosso como o padre Geraldo Lima, da paróquia de Vila de Cava. O padre leu um texto do médium Chico Xavier que fala sobre amizade.
Já o pastor Luiz Soares fez um paralelo entre o assassinato de Dionísio e a morte da irmã Dorothy Stang em Anapu, no Pará.
— Abominamos esse ato covarde, porque durante todos esses anos de convivência aprendemos a amá-lo — disse o pastor.
O líder comunitário Geraldo Fernandes fez um discurso inflamado durante a manifestação e condenou a omissão das autoridades em relação à segurança dos ambientalistas.
— Poderiam prevenir casos como o da irmã Dorothy e o do Seu Júlio — disse Geraldo Fernandes. — Quantas pessoas precisam morrer? Não quero ver o Tinguá manchado de vermelho e sim de verde.
Exploração pode causar extinção de palmeira
O palmito é o broto das palmeiras e é extraído da extremidade superior dos seus caules. A retirada do broto, em alguns casos, significa necessariamente a morte da palmeira. A palmeira juçara, cujo nome científico é Euterpe edulis , é a mais famosa, principalmente pela qualidade superior de seu broto. Mas o palmito também pode ser extraído das palmeiras reais da Austrália, da pupunha e da açaí. A palmeira juçara, no entanto, não rebrota da base e corre o risco de extinção. Suas qualidades incentivam, ainda hoje, sua exploração ilegal e predatória. Em média, o tempo necessário para que um palmiteiro juçara atinja o tamanho comercial é de oito a doze anos.
Cada cabeça de palmito juçara cortada ilegalmente representa uma palmeira, de no mínimo dez anos, derrubada. Estima-se que cada cortador de palmito que age ilegalmente nas florestas extraia em média 200 cabeças. O corte prematuro, feito antes da primeira florada, impede o surgimento de sementes, o que provoca desequilíbrio no ecossistema. Um conselho para não se comprar produtos extraídos ilegalmente é evitar palmito em conserva sem rótulo. Além disso, palmito juçara com diâmetro inferior a 2,5 cm tem grandes chances de ser ilegal, já que a palmeira provavelmente foi cortada precocemente. É importante observar se o rótulo da embalagem traz os registros do Ministério da Saúde e do Ibama.
Mais dez estão marcados para morrer
A notícia do assassinato de Dionísio Júlio Ribeiro despertou a atenção para outros ambientalistas também marcados para morrer. Dionísio é o terceiro ambientalista assassinado no Rio e há pelo menos outros dez sabidamente ameaçados de morte. Entre eles, Gerhard Sardo, de Niterói, do grupo Caminhantes Independentes, que já sofreu pelo menos cinco ameaças durante trabalhos em defesa do Parque Estadual da Serra da Tiririca e de áreas de preservação em Niterói e Angra dos Reis.
— Estar sempre em risco, sob ameaça, é uma situação desagradável, mas a gente acaba se acostumando — contou Gerhard. — Acho que as condições para o trabalho do ambientalista no estado são muito precárias e ele fica muito exposto a situações de conflito.
Outro ambientalista ameaçado é Mário Moscatelli, que chegou a fugir para o exterior para se livrar da pena de morte” decretada por construtores:
— De 89 a 91, eu era chefe do departamento ambiental da prefeitura de Angra e, em dois anos e meio, sofri quatro ameaças de morte. Em junho de 1990 eu tive de fugir para a Alemanha e fiquei lá 45 dias. Eu estava sendo ameaçado por cumprir a legislação ambiental.
O gerente-executivo do Ibama no Rio, Edson Bedim de Azeredo, disse que existem outras áreas no estado onde ambientalistas estão ameaçados de morte por palmiteiros, caçadores, invasores e criminosos que exploram florestas e extraem areia ilegalmente. O problema mais grave é na Serra da Bocaina, onde é mais forte o tráfico de palmito, vendido ilegalmente a comerciantes do Rio e de São Paulo.
— Para combater o tráfico, não bastam as ações do Ibama e da polícia. O comércio, principalmente os restaurantes, deve exigir dos fornecedores de palmito o certificado do Ministério da Agricultura — disse Edson.
Mascarados pelo grande número de mortes da guerra do narcotráfico, do jogo do bicho e da máfia dos caça-níqueis, além dos grupos de extermínio na Baixada, os crimes contra ambientalistas passam despercebidos pela população e pela própria polícia, que acaba não prendendo os culpados.
Em fevereiro de 1999, o fundador da ONG Sociedade Ecológica para a Recuperação da Natureza (Serena), Álvaro Marques de Oliveira, foi assassinado à luz do dia em frente ao Fórum de Angra, por denunciar a destruição de manguezais e outros crimes ambientais. Em 1993, o ecologista Seo Edu foi morto por combater o roubo de areia nas praias de Maricá. Entre os principais alvos de suas denúncias estava a cratera, conhecida como Maracanã, aberta pela extração ilegal de areia na Praia de Itaipuaçu.
Em 1999, a Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Alerj elaborou um Plano de Defesa Ambiental, propondo a criação de um centro de referência de crimes ambientais. Segundo o deputado Carlos Minc (PT), o centro foi idealizado para apurar denúncias e elaborar ações conjuntas com as polícias estadual e Federal:
— Isso nunca aconteceu. O centro chegou a ser criado, mas não tem qualquer articulação com as polícias Federal, Civil e Militar. Na verdade, a Delegacia de Meio Ambiente só funciona para atender a casos de denúncia. Não há trabalho de inteligência.
Apenas quatro fiscais para controlar reserva
Cercada por populações carentes da Baixada Fluminense, de Petrópolis, Miguel Pereira e Paty do Alferes e com incontáveis trilhas de acesso, a Reserva Biológica do Tinguá conta apenas com quatro fiscais do Ibama para garantir sua proteção. Reconhecida pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, a maior reserva do estado fica na Serra do Mar e protege uma amostra representativa da Floresta Atlântica, com recursos hídricos que abastecem 80% da população da Baixada Fluminense.
O presidente em exercício do Ibama, Luiz Fernando Merico, e o gerente executivo do órgão no Rio, Edson Bedim de Azeredo, reconhecem que a reserva necessita de reforço de pessoal e veículos para a fiscalização da área de 27 mil hectares, que sofre com atividades clandestinas de caça e exploração de palmito. Sem saber precisar datas, Edson afirmou que existe um projeto de reestruturação da reserva, que prevê licitação para compra de equipamentos e reforço de pessoal.
Plano de manejo está em fase final
Segundo Luiz Fernando, já está em processo de finalização (ainda sem data acertada) o plano de manejo para a Reserva do Tinguá. Esse plano, que está sob avaliação técnica da equipe de ecossistema do Ibama, vai estabelecer o que será permitido e em que trechos da reserva, como as áreas de visitação e pesquisa, entre outras atividades.
— Lamentamos a morte do ambientalista. Mas essa tragédia não significa uma falência da política ambiental no estado. Pelo contrário, trata-se de uma resposta a essas ações ambientais. Essa tragédia só vem reforçar a luta ambiental no Rio de Janeiro — disse o presidente em exercício do Ibama, acrescentando que o órgão enfrenta atividades de caça e extração clandestinas também em Itatiaia e na Bocaina.
A Reserva do Tinguá abriga o menor anfíbio do mundo já descrito: o sapo-pulga. Grandes mamíferos como a onça-parda e outras espécies ameaçadas de extinção, típicas de Floresta Atlântica, encontram refúgio na região preservada. São antigas as denúncias sobre a atuação de palmiteiros e caçadores na unidade, que há anos também sofre com o desmatamento causado por obras irregulares.
A reserva foi criada em 1989. A área tem um relevo acidentado, com escarpas cortadas por rios. Na área, destaca-se o Maciço do Tinguá, uma montanha de 1.600 metros de altitude. A Reserva Biológica do Tinguá foi criada para proteger a Floresta Atlântica e os recursos hídricos na região. Ela está localizada a 70 quilômetros de capital e a 16 da sede do município de Nova Iguaçu, limite norte da Baixada Fluminense. Cinco estradas permitem o acesso à reserva, através de Vila de Cava, distrito de Nova Iguaçu.
Espécies como jequitibás, sapucaias, guapuruvus, jatobás, quaresmeiras e orquídeas são encontradas na região em abundância. A reserva apresenta uma fauna bastante diversificada, destacando-se dois grupos: aves, com 296 espécies, e anuros (sapos, rãs e pererecas), com 52 espécies.
A região sofre uma grande pressão devido ao uso de lugares de captação de água e das cachoeiras próximas à unidade como área de lazer. Várias piscinas artificiais foram feitas por represamento ao longo do Rio Tinguá. A proteção da reserva, segundo especialistas, é de vital importância para a conservação dos mananciais responsáveis pelo abastecimento de parte do Rio de Janeiro e de quase 80% da Baixada Fluminense.
Chefe da reserva diz que seriam necessários 20 fiscais
Tinguá sofre com a falta de fiscalização. O chefe da reserva, Luís Henrique Teixeira, diz que seria necessário ter uma equipe de pelo menos de 20 homens — em vez dos quatro atuais — para garantir uma boa fiscalização da área.
— Uma maior fiscalização poderia combater os principais problemas enfrentados hoje na reserva, que são a caça, o corte de palmito e a especulação imobiliária — comentou Luís Henrique.
Em Petrópolis, a reserva biológica vem sendo degradada por caçadores e até por excursionistas, especialmente no Rocio. A presença de armadilhas na região vem sendo denunciada há pelo menos um ano pela Associação de Moradores do Rocio. O entorno da reserva também está sendo degradado. Em novembro do ano passado, fiscais do Ibama interditaram um areal clandestino vizinho à reserva, em Caxias. No local foram encontrados duas dragas, um caminhão e um trator.



O Globo, 24/02/2005, Rio, p.15-16
UC:Reserva Biológica

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