Como subverter a desordem no campo

OESP, Vida, p. A22 - 23/11/2006
Como subverter a desordem no campo

Marcos Sá Correa

De onde menos se esperava - o front conturbado da reforma agrária - vem uma boa notícia para o meio ambiente. É uma liminar contra o Incra no Mato Grosso do Sul. Barra um assentamento na fazenda Cachoeira, ao pé da serra da Bodoquena, enquanto o instituto não providenciar seu licenciamento ambiental. E daí? Fazenda na Bodoquena? O que nós temos a ver com isso?

Tudo. A começar pelo fato de que, ali pelo menos, a reforma agrária deixou de ser um assunto que só tem dois lados - o justo, dos sem-terra, e o outro, dos latifúndios improdutivos e patati-patatá. Nessa gangorra o Incra balança, produzindo estragos há muito tempo.

As conseqüências só aparecem depois que baixa a poeira da ocupação. E tarde demais se descobrem assentados caçando na reserva de Poço das Antas como se ela fosse deles, e não dos micos-leões-dourados, ou cortando o mato para produzir pedra pura, como fizeram em Guaicurus, a poucos quilômetros da fazenda Cachoeira.

Guaicurus, sozinha, daria motivos de sobra para tomar cuidado com a reforma agrária naquele pedaço da Bodoquena. É das águas que nascem na serra, dentro de um parque nacional, que vêm os rios cristalinos de Bonito, irrigando os roteiros turísticos que mudaram a cara da região. Em Guaicurus deu tudo errado, depois que os assentados venderam a madeira e passaram a colher leishmaniose.

Mas tudo isso, até agora, parecia tão distante, que só a hipocondria cósmica dos ambientalistas parecia notar contratempos.

Com o despacho do juiz federal Renato Toniasso, o caso da Bodoquena deixa de ser a briga de sempre, com-terra versus sem-terra. Envolve todo mundo. Deveria incluir mais ou menos 187 milhões de brasileiros, se eles estivessem dispostos a se interessar pelo assunto.

Está em jogo o que cada um está disposto a perder na disputa. Água limpa, por exemplo, num rio que corre como aquário azul, com os cardumes nadando sob as copas que se debruçam em seu leito.

Não há respostas prontas para esses dilemas. Mesmo se houvesse, elas certamente não iriam resolver a reforma agrária. Mas, entrando na discussão, pelo menos tornam a conversa mais animada. E, na pior das hipóteses, obrigam o Incra a cumprir a lei, o que nunca esteve entre suas prioridades.

É hora de ouvir o juiz. O que nem sempre se pode, com 600 sem-terra na porteira da fazenda, empunhando bandeiras, foices, facões e outros argumentos coreográficos. Ele proibiu o Incra de dar um passo na Cachoeira - desapropriar o imóvel, indenizar proprietários, investir em melhoramentos ou alojar famílias - se não apresentar o laudo sobre impactos do assentamento na franja do parque nacional, além das medidas que promete tomar para abater o prejuízo.

ANARQUIA INSTITUCIONAL

Em outras palavras, tem que fazer o que manda a lei. Nada demais. Mas uma tremenda novidade nessa história que já começou torta, abrindo o ano eleitoral com sinais de superfaturamento - R$ 9 milhões só numa das 11 fazendas avaliadas para desapropriação. Atropelando prazos, o governo estadual dispensou o Incra de todos os escrúpulos ambientais, na periferia de um parque nacional.

Enfim, como o promotor Luciano Loubet reagia, o governo enviou de Campo Grande uma força-tarefa da Secretaria de Meio Ambiente para multá-lo a 280 quilômetros de distância, numa chácara em Bonito, embora os técnicos não soubessem explicar qual era a infração.

Até aí, portanto, o assentamento seguia normalmente os trâmites da anarquia institucional em vigor. Mas, de repente, o juiz subverte a desordem no campo. A liminar foi provocada por Loubet, em ação civil pública em parceria com dois promotores da região e a procuradora da República Jerusa Burmann Viecilli.

Em Bonito, ele conseguiu em três anos o que o Brasil não fez em cinco séculos. Ou seja, mudar as coisas radicalmente, usando só os instrumentos legais a seu dispor. Com lei e caneta para assinar acordos de ajustamento de conduta, levou 75 proprietários a recuperar 100 quilômetros do Rio Formoso, plantando matas ciliares com 20 mil mudas de espécies nativas e 20 quilômetros de cercas.

Trabalho grande, mas invisível para o resto do país. Agora a liminar joga o caso para cima.É pegar ou largar.

Marcos Sá Correa, Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 23/11/2006, Vida, p. A22
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