De lenda a isca de bagre, o drama do boto

OESP, Vida, p. A25 - 13/05/2012
De lenda a isca de bagre, o drama do boto
Matança de espécie-símbolo da Amazônia, cuja carne é usada para atrair peixe apreciado na Colômbia, coloca golfinho em risco de extinção

GIOVANA GIRARDI

Uma das espécies-símbolo da Amazônia, o boto-vermelho - ou boto-cor-de-rosa - está sendo sistematicamente morto por pescadores da região para ser transformado em isca para a pesca de um tipo de peixe muito apreciado na Colômbia. A matança vem diminuindo tanto as populações do mamífero que já coloca a espécie em risco de extinção.
Dois estudos conduzidos de modo independente em localidades diferentes na Amazônia dão uma ideia do problema e permitem fazer uma estimativa de sua abrangência. Um deles, realizado no entorno da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) de Mamirauá, a 600 km de Manaus (AM), calculou que ali ocorre uma redução de 10% ao ano no total de animais.
O outro, conduzido em comunidades de pescadores na região de Santarém (PA), previu que até 2060, se o ritmo da matança continuar, a espécie poderá estar em vias de extinção.
Os primeiros relatos científicos desse tipo de morte datam do final dos anos 1990, mas a situação se agravou nos últimos anos. O principal motivo, acreditam os pesquisadores, foi o apetite colombiano por uma espécie de bagre conhecida como mota por lá e piracatinga, por aqui.
Mais recentemente, esse peixe, por semelhança de sabor e textura, apareceu como substituto de outro - o capaz -, que habitava o Rio Madalena, mas foi consumido até seu esgotamento.
Os pesquisadores estimam que milhares de toneladas do peixe sejam pescadas por ano. Faltam, porém, estudos com o animal, seus hábitos, possíveis iscas alternativas, ou mesmo quanto ele poderia ser pescado por ano.
"Não duvidamos que ele possa entrar em colapso de tanto que é pescado", afirma a bióloga Vera Silva, do Laboratório de Mamíferos Aquáticos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que coordena os trabalhos em Mamirauá.
Ela, no entanto, está preocupada com o boto - espécie protegida por lei que teria de ser preservada. "Ele foi sempre muito abundante na região, porque tinha uma distribuição ampla e ninguém mexia muito com ele porque não tinha valor, não era visto como recurso direto. Só aconteciam mortes acidentais ou por conta das lendas em torno do animal (mais informações nesta página)," conta.
Urubu d'água. A situação mudou quando se percebeu que ele poderia servir como uma excelente isca para a tão desejada piracatinga. No Brasil, o peixe nunca havia despertado muita atenção justamente porque tem uma característica não muito bem-vista por ribeirinhos - ele gosta de carne morta, daí ter ganhado o apelido "urubu d'água". No princípio, carne de jacaré era usada como isca. Mas, com cheiro bem mais forte, o boto se mostrou sua iguaria favorita.
O problema é que esse mamífero aquático não se reproduz a uma taxa rápida o suficiente para atender à demanda, explica Vera. O animal demora a atingir a maturidade sexual (fêmeas a partir dos 7 anos e machos a partir dos 10), tem baixa taxa reprodutiva, a gestação dura quase um ano e a fêmea amamenta o filhote por dois anos ou mais, o que faz com o que intervalo entre filhotes seja de cerca de três anos.
"Quando a retirada é maior que a reposição e os animais mais afetados são aqueles que ainda não se reproduziram ou são fêmeas com filhote, o impacto é muito maior", diz.
Segundo levantamento publicado em 2010, compilando trabalhos de vários pesquisadores e organizações em defesa do animal (o Plano de Ação para Golfinhos de Rio da América do Sul), a matança ocorre de Manaus a Tabatinga, ao longo de toda a calha do Rio Solimões, e no entorno de Santarém.
Foi na região do oeste do Pará - onde a equipe do biólogo português Miguel Migueis, da Universidade Federal do Oeste do Pará, vem trabalhando com comunidades de pescadores em dez municípios próximos a Santarém - que foi feita a estimativa de que os botos estão em rota de extinção caso nada seja feito.
Cálculo feito em uma comunidade que tem dez matadores de boto estimou que cerca de 7,2 mil animais são mortos por ano. "Isso em só um lugar. Não sabemos em quantos ocorrem, mas já constatamos a prática em pelo menos 16 comunidades. Para toda a Bacia Amazônica deve ser uma coisa brutal", afirma.
O negócio é lucrativo. Um boto inteiro é negociado entre R$ 50 e R$ 100. Um quilo de isca costuma pegar a mesma quantidade de peixe, mas há quem consiga até 4 quilos. E, recentemente, ele já começa a ser encontrado em mercados de Manaus, com o nome de douradinha. O quilo da piracatinga fica entre R$ 0,80 e R$ 1,20 e é vendido no mercado por até R$ 14.


Pescadores têm raiva do animal, diz cientista
Embora dócil e inofensivo, golfinho não é bem-visto por ribeirinhos, com quem disputa peixes nos rios

Ao contrário de seus parentes marinhos, que em geral desfrutam de prestígio e simpatia da humanidade, os golfinhos de rio estão entre as espécies mais ameaçadas do mundo. Na Amazônia, historicamente, nunca foram muito benquistos pelos ribeirinhos.
A raiva em relação ao dócil mamífero, diz o povo, vem das lendas de que o bicho se transformava num formoso rapaz que seduzia as moças. Não foram poucas, por sua vez, que se aproveitaram da crença para justificar uma gravidez antes do casamento.
Tanto que alguns animais sempre acabaram mortos, seja de propósito ou acidentalmente, enroscados em redes de pesca, e seus corpos eram aproveitados para as mais diversas mandingas e como amuleto. "Acredita-se que as 'partes' do animal, como o povo diz, a genitália, e também os olhos, funcionam como atrativos do amor. Fazem o sexo oposto se apaixonar", conta Vera Silva, do Inpa.
Outra crença é de que os órgãos podem trazer cura para várias doenças. "Usam para fazer perfume, espantar mau-olhado, aproveitam a banha do golfinho para tratar o mal do chifre dos bois, uma colher de chá para curar gripe", lembra Miguel Migueis, da Ufopa.
Hoje, no entanto, os pesquisadores que investigam a morte dos botos acreditam que o principal motivo do desamor pelo bicho é bem mais prosaico.
Na prática, esses golfinhos competem com o homem por peixes. Quando pescadores passaram a instalar redes de pesca, começaram os conflitos. "O boto é adaptado para explorar a floresta inundada, mas ele não é bobo. Quando vê alimento farto preso, ele se aproxima para comer, pega os peixes, acaba estragando a rede", afirma Vera. "Por isso, o pescador não gosta dos botos; podendo, ele mata sem dó. Vai além de ser coisa só ilegal, é cruel mesmo."
Tanto que também tem se tornado comum encontrar animais mutilados, com cortes a faca, nomes escritos em seus corpos, cortes nas nadadeiras. "Às vezes o pescador prende o boto a uma árvore, amarrando uma corda em sua cauda, para matá-lo quando precisar pescar. Mas se passa a fiscalização, eles o soltam rapidamente e o animal fica ferido, correndo o risco de perder a cauda e morrer", diz a pesquisadora. "Esses pescadores estão infringindo a lei. E não estamos tendo reforço da fiscalização para evitar isso", queixa-se.
Com a procura pela piracatinga ativando a matança, o mercado da superstição ressurgiu, sendo os amuletos encontrados em locais como o famoso mercado Ver-o-Peso, em Belém.
A forma de capturar o peixe também está se sofisticando, com a criação de outras formas de captura que vão além das caixas de armazenamento, como a construção de "currais" nos rios.
"A estrutura é tão organizada que há pessoas dando cursos sobre as técnicas para matar o boto", relata Migueis. Há toda uma cadeia, na qual os matadores fornecem o boto. Mas, na prática, qualquer pescador pode tentar matar o boto, a custo zero.
Tanto o Ibama quanto o Ministério da Pesca foram procurados pela reportagem para comentar a matança, mas nenhum dos órgãos se pronunciou. / G.G.

OESP, 13/05/2012, Vida, p. A25

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,de-lenda-a-isca-de-bagre-o-drama-do-boto-,872347,0.htm
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,pescadores-tem-raiva-do-animal-diz-cientista-,872352,0.htm
Amazônia:Biodiversidade

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