De sem-terra a com-pedra, por conta do Incra

OESP, Vida, p. A22 - 09/03/2006
De sem-terra a com-pedra, por conta do Incra

Marcos Sá Corrêa

Quinze anos atrás, quando chegou ao assentamento Guaicurus, em Mato Grosso do Sul, o baiano Antenor Rocha da Silva tinha 18 cabeças de gado. Pegou a rebarba da reforma agrária em Bonito, aos pés da Serra da Bodoquena, de onde vêm as fontes que instalaram o município na rota do turismo. Mas o mesmo solo calcário que embala cardumes em rios cristalinos aflora, nas terras de Antenor, como fraturas na rocha antiquíssima, formada numa era geológica em que o planeta boiava no caldo primordial.
Em outras palavras, ele comprou um lote onde "não dá nem mandioca", como lealmente avisou o assentado que lhe transferiu o abacaxi a preço de banana.
De lá para cá, Antenor vem tirando "leite da pedra". Plantou as mudas que ganhou de uma ONG, e hoje tem 50 pés de limão para o consumo da família. Produz laranja. Dos 300 cafeeiros que vingaram vem o pó que se toma em casa. E galinha no terreiro. Mas os bois ele foi perdendo até acabar. Tudo por "pirraça da água", diz ele. A que tem, Antenor recolhe da chuva. Não dá nem para lavar roupa. Muito menos, para criar boi. Nas estiagens, o remédio é buscar de carroça água de poço, num bebedouro de animais. Ela vem carregada de doenças contagiosas, cujos nomes Antenor desfia com a desenvoltura de um sanitarista.
Foi a "fauna flebotomínea", por sinal, que botou o Guaicurus no mapa das estatísticas nacionais. Segundo um relatório publicado na revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, o lugar está infestado de insetos que sugam sangue. No ano passado, um teste em 97 cães do assentamento revelou em 23 animais os sinais da leishmaniose, que marca os netos de Antenor com as cicatrizes de feridas tratadas a duras penas em hospital de Campo Grande, a quase 400 km. Na casa não chega eletricidade - os fios ainda não tiveram fôlego para vencer o morro que a separa da antiga sede de fazenda, transformada pela reforma agrária em núcleo de comunidade rural. Culpa da "politiquinha", a única coisa que tira Antenor do sério.
Fora isso, aos 72 anos, ele continua magro e sacudido. Deixou a seca nordestina em Jequié para cair na aridez mato-grossense, depois de décadas em trânsito pelo Brasil. Tocou durante seis anos numa banda em Belo Horizonte. Hoje, anima o coro da igreja e às vezes se apresenta num barzinho. Compôs 17 músicas, entre tangos e dobrados. Não possui quase nada. Mas tem agogô, zabumba, ganzá e bateria. E, quando saca a velha sanfona Universal, com uma tecla faltando nos registros da mão esquerda, abrindo fole com os primeiros acordes de sua composição Sorriso do Meu Sonho, fica instantaneamente combinado que nem o Incra é capaz de reduzir Antenor à miséria completa.
Nem isso podem dizer os outros 500 assentados do Guaicurus, onde em quase 20 anos o único sucesso incontroverso é o do gaúcho Ivo Vanzella, dono da casa com varanda de cerâmica e pomar na porta, que destoa da vizinhança. Pudera. Vanzella vendeu as terras que tinha no Sul, pegou as do Guaicurus de mão beijada, tem três carros em Bonito para transportar turistas, barraca na feira da cidade, a 65 km dali, e recentemente declarou a um pesquisador uma renda mensal de R$ 10 mil.
O resto está roendo o osso da terra, depois de vender os vinháticos e os ipês da mata nativa, que disfarçava a paisagem lunar do assentamento. O que ficou parece pedra pura, incrustada por construções de palha, que até hoje não perderam o aspecto provisório dos barracos que os sem-terra montam em acampamentos. Mas é montado nesse sucesso que o Incra acaba de vistoriar dez fazendas nas bordas da Bodoquena, para levar à frente seus inadiáveis compromissos com a reforma agrária.

Marcos Sá Correa, Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, Vida, 09/03/2006, p. A22
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