Em silêncio, governo começa a tocar usinas do rio Tapajós

Valor Econômico, Brasil, p. A3 - 25/05/2012
Em silêncio, governo começa a tocar usinas do rio Tapajós

Por André Borges | De Brasília

O rio Tapajós, artéria principal de uma Amazônia ainda virgem, está no limiar de ter as suas águas liberadas para a construção de um complexo de hidrelétricas. O antigo plano de erguer cinco usinas ao longo desse rio que nasce no Mato Grosso e avança pelo Pará, até encontrar o Amazonas, começou a sair do papel silenciosamente, processo que foi detonado por uma polêmica Medida Provisória editada no dia 6 de janeiro pela presidente Dilma Rousseff. Com a MP 558/2012, o governo alterou os limites de sete unidades de conservação da Amazônia e retirou delas a área que será alagada pelos reservatórios das usinas. Boa parte da redução dessas florestas protegidas por lei tem o propósito específico de desobstruir o caminho para o licenciamento ambiental das duas primeiras hidrelétricas previstas para a Bacia do Tapajós: São Luiz do Tapajós e Jatobá. Para a primeira delas, o resultado da ação governo foi imediato.

O Valor apurou que, de fevereiro para cá, a Eletrobras entregou ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) uma série de pedidos de autorização para coletar os dados que vão basear o estudo de impacto ambiental da usina São Luiz do Tapajós, maior empreendimento do complexo e prioridade máxima do governo.

O Ibama já aprovou os pedidos. Em fevereiro, o órgão ambiental liberou o "plano de trabalho" da hidrelétrica e autorizou a Eletrobras a abrir uma "picada" de um metro de largura em uma extensão de 33,5 quilômetros de mata. No mês passado, foi dado sinal verde para que a estatal faça a captura, coleta e transporte de animais e plantas para concluir seus estudos, o que deve ocorrer até o fim deste ano.

Ambição alimentada há cerca de uma década pelo governo federal, a hidrelétrica de São Luiz tem uma potência estimada em 6.133 megawatts (MW), praticamente duas vezes a potência da usina de Santo Antônio, que está em fase de conclusão em Porto Velho (RO). Só o comprimento de sua barragem alcança 3.483 metros de uma ponta a outra.

O governo defende a tese de que o empreendimento terá um impacto ambiental extremamente reduzido. A previsão, no entanto, é de que a área total do reservatório de São Luiz do Tapajós atinja 722,2 km2, um área muito superior, por exemplo, aos 510 km2 do lago que será formado pela usina de Belo Monte, em construção no rio Xingu, no Pará. Pesa ainda o fato de que Belo Monte está sendo construída em uma área em que parte da mata já foi utilizada para pasto, além de estar próxima de cidades como Vitória do Xingu e Altamira. No caso de São Luiz do Tapajós, trata-se de construção em uma mata intacta, rodeada apenas por famílias de ribeirinhos e aldeias indígenas.

Segundo o Ministério Público Federal no Pará, o complexo das cinco usinas da Bacia do Tapajós deverá inundar cerca de 2 mil km2 de mata, quase duas vezes a extensão da cidade do Rio de Janeiro. "Do ponto de vista ambiental, não há dúvidas de que o estrago ambiental de São Luiz e do complexo do Tapajós é ainda superior ao que será causado por Belo Monte", diz Felício Pontes Júnior, procurador da República no Pará.

O instituto de pesquisas Imazon aponta que todas as áreas excluídas das unidades de conservação pelo governo estão no mapa das regiões prioritárias para a conservação da biodiversidade. Cerca de 80% delas são classificadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) como de prioridade "extremamente alta".

O governo justifica que o projeto é absolutamente imprescindível para garantir a oferta de energia do país e que fará um projeto hidrelétrico revolucionário no coração da Amazônia. A operação para a construção da usina de São Luiz do Tapajós, sustenta Altino Ventura Filho, secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia (MME), vai se basear no modelo inédito de "usina plataforma", inspirado nas plataformas de petróleo que ficam isoladas nos oceanos.

Para construir São Luiz, tudo terá que ser transportado exclusivamente por meio do rio ou por via aérea. Está previsto a construção de um heliporto e, possivelmente, de uma pequena pista de pouso para aviões. Dessa forma, não haverá abertura de estradas para transportar trabalhadores, máquinas ou materiais. Os canteiros de obra serão abertos na margem do rio, mas ficarão absolutamente isolados e não poderão se expandir, como costuma ocorrer com esse tipo de empreendimento. "Se seguíssemos a mesma linha das outras usinas, abriríamos uma estrada para chegar até lá e montaríamos uma vila operária que levaria a um processo de urbanização", diz Altino. "Isso não ocorrerá. Não haverá estradas de acesso, o local não se transformará em objeto de desenvolvimento. Passada a fase da construção, essa estrutura será completamente desativada e tudo será reflorestado, só restando ali poucos funcionários para manutenção e fiscalização da usina."

O plano do governo é que, uma vez concluída, a hidrelétrica de São Luiz seja incorporada a um parque nacional. "Não vamos fazer a usina de forma atropelada. Os responsáveis pela obra ficarão, inclusive, com a responsabilidade de preservar aquela região, protegendo de possíveis invasões e desmatamentos", argumenta Altino.

O leilão de hidrelétricas está condicionado à emissão de licença ambiental prévia pelo Ibama. Conforme o cronograma a que o Valor teve acesso, a Eletrobras pretende concluir o seu relatório de impacto ambiental em janeiro de 2013. O plano do governo é que o Ibama aprove o estudo já em fevereiro para que, no mês seguinte, o estudo de viabilidade técnica e econômica (EVTE) da usina São Luiz passe pelo crivo do Tribunal de Contas da União (TCU). A meta é que as audiências públicas feitas pelo Ibama ocorram em abril do ano que vem, com emissão da licença prévia prevista para junho. Entre junho e o fim de 2013, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) realiza o leilão da primeira hidrelétrica do rio Tapajós.


Redução de área de floresta é inconstitucional, diz procurador

A decisão do governo de usar uma medida provisória para reduzir cerca de 1.500 km2 de áreas de preservação ambiental na Amazônia foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Contrário ao método adotado pelo Planalto para acelerar o processo de licenciamento ambiental de uma série de usinas na região, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, apresentou ao STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), com pedido de medida cautelar para barrar a MP 558/2012. A medida provisória, de acordo com Gurgel, "está repleta de inconstitucionalidades".

O procurador alega que a MP não atende princípios básicos que justifiquem sua publicação. Pela Constituição, argumenta Gurgel, a redução de reservas ambientais só poderia ser feita após audiências públicas com a população, além só poder ser efetivada por meio de lei, isto é, o tema deveria ser objeto de discussão ampla no Congresso. "A MP é temerária e prematura, porque não precedida dos procedimentos legais necessários", diz o procurador-geral, alegando que as determinações causam lesões ambientais que são, com grande frequência, de caráter irreparável. "Diante do princípio geral da prevenção, e tendo em vista que está em jogo nada menos do que a integridade do Bioma Amazônia, a necessidade de medida cautelar se torna irrefutável", diz Gurgel.

A ministra Cármen Lúcia é a relatora da ação (Adin 4.717) que será julgada pelo STF. Apesar de a ministra ter cobrado em seu despacho do dia 29 de fevereiro que a Secretaria Judiciária providenciasse "as medidas processuais com urgência", não há até agora uma previsão muito firme sobre quando o julgamento poderá ocorrer. Isso significa que pode levar dias, meses ou até anos para a Adin ser julgada.

Nos quatro meses que a medida provisória passou pelo Congresso, a Eletrobras tratou de avançar no rito de licenciamento. Na semana passada, o deputado José Geraldo (PT-PA), relator da MP 558 na Câmara, aprovou o texto sem grandes alterações. O parlamentar discorda das alegações feitas pelo Ministério Público Federal e afirma que a MP tem, sim, caráter de urgência para resolver "problemas crônicos".

"Essa interpretação do procurador-geral [Roberto Gurgel] é equivocada. Com a MP, o governo está resolvendo um passivo latifundiário que existe na região há décadas e que sempre foi ignorado", afirma. "Além disso, o Ministério Público do Pará defende uma posição política contra as barragens, não é uma posição técnica. Em vez de se preocupar com algo que realmente seja irregular, ele assume um posicionamento radical. Não querem as usinas, mas esquecem que a região Norte queima 6 milhões de litros de óleo diesel por dia para ter energia."

O mesmo posicionamento é sustentado pela senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM), que assumiu a relatoria da MP no Senado. "Não há nenhuma inconstitucionalidade no ato. Há uma decisão de governo em compensar as áreas atingidas. O Brasil é um exemplo mundial de cuidados com o ambiente", comenta.

A votação do texto pelo Senado tem que ocorrer até o próximo dia 31, data em que expira o prazo da MP. Segundo Vanessa Grazziotin, a medida entrará na pauta da terça-feira. A senadora não acredita em dificuldades para que o texto passe pelo plenário, para então ser sancionado pela presidente Dilma Rousseff. "Não acredito que seja uma votação complicada, porque as áreas afetadas são pequenas. O assunto pode até gerar alguma polêmica, mas estamos conversando com as lideranças. A MP vai passar", diz.

A Medida Provisória 558 alterou os limites das seguintes unidades: Nacional da Amazônia, Parque Nacional dos Campos Amazônicos, Parque Nacional Mapinguari, Floresta Nacional de Itaituba I, Floresta Nacional de Itaituba II, Floresta Nacional do Crepori e Área de Proteção Ambiental do Tapajós. O tamanho original dessas reservas, conforme dados do ICMBio, era de 45.575 km2. Foram retirados 1.051 km2 das unidades e outros 55 km2 foram acrescidos.

Para justificar a edição da MP, o governo alegou que as alterações eram necessárias para excluir áreas das reservas ocupadas por posseiros, com o propósito de fazer a regularização fundiária. Entre as mudanças estão "correções" feitas no Parque Nacional Mapinguari, que terá parte de sua área inundada pelos lagos das usinas de Jirau e Santo Antônio, erguidas no rio Madeira, em Porto Velho (RO).

Na semana passada, o Movimento Tapajós enviou uma nota de repúdio ao Congresso, pedindo que a MP não seja aprovada. O documento assinado por dezenas de ribeirinhos, indígenas e organizações sociais da região deixa claro que defende a regularização de assentamentos pelo Incra, mas critica o viés para liberar a construção de novas usinas. "Essa medida provisória foi assinada com o objetivo principal de abrir caminho para a implantação das megabarragens de São Luiz do Tapajós e Jatobá no Rio Tapajós, sem qualquer consulta prévia junto às populações ameaçadas, e sem estudos obrigatórios sobre a sua viabilidade socioambiental e econômica", diz o texto da nota. (AB)


Cronograma prevê operação em 2017

A construção de usinas ao longo do rio Tapajós expõe, mais uma vez, a difícil equação do país em promover o tão cobiçado "crescimento sustentável". Enquanto ambientalistas acusam o governo de promover um genocídio ambiental na Amazônia, o Planalto sustenta que se trata do caminho menos danoso ao país. Para o governo, as usinas do Tapajós já são tratadas como um fato consumado.

O Ministério de Minas e Energia (MME) não trabalha com a menor hipótese de abrir mão das hidrelétricas previstas para o rio. Os projetos estão listados no Plano Decenal de Energia, um relatório que estima o crescimento socioeconômico do país nos próximos dez anos e projeta qual aumento de energia será necessário para atender essa demanda. Pelo cronograma, a usina de São Luiz do Tapajós tem que iniciar a sua operação já em 2017, chegando à plena carga no ano seguinte.

"É preciso entender que ninguém está inundando a região Norte ou a Amazônia com hidrelétricas", diz Altino Ventura Filho, secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do MME. "Se, por um acaso, houver uma decisão de não aproveitá-las, significa praticamente que o país abandonou a hidreletricidade e desistiu de fazer usinas."

Pelo cronograma do MME, já não haveria sequer mais prazo para recorrer a outras fontes de energia capazes de lançar no sistema elétrico os 6.133 megawatts prometidos só pela usina de São Luiz. "Se desistir, o país vai ter que colocar alguma coisa no lugar, e essa coisa é certamente muito pior do que as hidrelétricas, por mais defeitos que essas usinas possam ter", diz Ventura Filho. "Teríamos que buscar outra solução. E qual seria a saída, a energia nuclear? Não haveria tempo. Vamos concentrar tudo nas eólicas e na biomassa? Impossível, elas são fontes importantes, mas que não têm capacidade de abastecer todo o país. Fazer usinas térmicas? São mais caras e menos favoráveis. Por isso, nem cogitamos outra hipótese."

A previsão do governo é de que as usinas de São Luiz do Tapajós e Jatobá tenham seus estudos ambientais concluídos até o fim deste ano, para que a licença prévia, que é concedida pelo Ibama, seja dada no início de 2013. A partir daí, os projetos ficam livres para ser licitados. O governo quer que ambos entrem no leilão "A-5", realizado para contratar a energia que será entregue em um prazo de cinco anos. Ventura Filho admite que o prazo está apertado, mas ainda acredita que há condições de os dois projetos iniciarem operação até o fim de 2017.

"O rio Tapajós é a última fronteira das grandes usinas do Brasil. Temos mais alguns rios que serão aproveitados na região Norte, mas só de forma complementar. Terminado o Tapajós, praticamente nós esgotamos a parcela dos grandes potenciais hidrelétricos", comenta Ventura Filho. "Por isso a usina de São Luiz é uma prioridade de curto prazo. Não estamos analisando nenhuma alternativa que entre em operação em seu lugar até 2017, até porque ela não existe."

Pelo Plano Decenal de Energia 2011, que calcula o crescimento necessário até 2020, é preciso acrescentar 70 mil MW ao sistema energético nacional, chegando ao fim desta década com um parque instalado de 180 mil MW. Desses 70 mil MW adicionais, mais da metade está projetado para sair de novas hidrelétricas. Os investimentos planejados pela União nesse período alcançam R$ 96 bilhões para gerar 42 mil MW de energia hidráulica, tendo como cenário os principais rios localizados na margem direita do rio Amazonas. São eles: Tapajós, Tocantins, Araguaia, Xingu e Madeira. O interesse deve-se, basicamente, à combinação de grande volume de água e de quedas acentuadas no curso desses rios.

Para minimizar polêmicas, o governo está determinado a fazer com que todas as usinas previstas para esses rios sejam construídas sob modelo de "fio d'água", no qual o aproveitamento energético das turbinas utiliza, basicamente, a força natural da vazão do rio, dispensando grandes quedas, como a de Itaipu. Com essa alternativa tecnológica, não é necessário criar grandes lagos e barragens. "Faremos usinas com o menor impacto ambiental possível, sem grandes reservatórios", diz Ventura Filho.

Há pelo menos 22 usinas projetadas para a Amazônia, conforme balanço do instituto de pesquisa Imazon. Dessas, sete já estão em construção no Amapá, Mato Grosso, Pará e Rondônia. (AB)


Valor Econômico, 25/05/2012, Brasil, p. A3

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