Grande Sertão do parque é bem menor que o do livro

OESP, Vida, p. A18 - 01/06/2006
Grande Sertão do parque é bem menor que o do livro

Marcos Sá Correa

Nos 50 anos de Grande Sertão: Veredas, não custa lembrar que ele não é só o romance de Guimarães Rosa, mas também um parque nacional que, não por acaso, tem seu nome. Mas cuidado para não estragar a festa, comparando o parque com o Grande Sertão do livro, o "sem tamanho", que estava "em toda parte", de Minas a Mato Grosso, de Goiás à Bahia, e ficava "onde os pastos carecem de fechos" e onde "um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com uma casa". Tão desmedido em sua imensidão agreste que nele criminoso vivia "arredado do arrocho da autoridade".

Mudou muito o País nesse meio século. Arredados do arrocho da autoridade os criminosos vivem é no meio das grandes cidades. E, no mapa, o Grande Sertão cabe oficialmente na mancha verde que se encravou como parque entre Minas e a Bahia. Visto assim, parece mofino. Está entregue a dois funcionários do Ibama. Mas criá-lo foi uma luta como as de Riobaldo Tatarana.

Entre valentias e negaças, levou-se pelo menos três anos até o primeiro decreto. Foi obra do governo, mas trabalho de uma ONG, a Funatura, que providenciou os argumentos, a localização e até as verbas, além de batizá-lo com título de obra literária.

O parque é de 1989. Portanto, 23 anos mais jovem que o livro. Na ocasião, presidia a Funatura a engenheira agrônoma Maria Tereza Pádua, trazendo do serviço público um saldo de reservas que somaram 8 milhões de hectares só na Amazônia, todas em seu currículo. Na ONG, Maria Tereza só contratava quem tivesse atravessado, com gosto, as 538 páginas de Grande Sertão: Veredas. Era leitura obrigatória na equipe que tentou chegar antes da soja, dos fornos de carvão vegetal e dos eucaliptos aos últimos cenários onde a paisagem de Guimarães Rosa ainda era reconhecível. Um dia, Maria Tereza perdeu-se lá dentro. Dormiu ao relento. Para comer e beber, só tinha a cachaça do cantil. E passou o resto da vida falando da noite inesquecível.

Tratava-se de fazer a primeira unidade de conservação nos Gerais. Ou seja, os confins do cerrado onde Guimarães Rosa catara anos antes o arsenal de palavras mágicas que dão ao Brasil de suas histórias uma toponímia digna de país imaginário - Urucuia, Liso do Suçuarão, Andrequicé, Traçadal. Não faz muito tempo, Dieter Heidemann, um alemão que se fez sertanejo como professor de Geografia da USP, bateu os mesmos ermos trilhados pelo escritor em 1952 com o vaqueiro Manuelzão. Onde um encontrara veredas de "belo verde-claro, aprazível, macio", o outro topou com cupinzeiros, anunciando "veredas mortas"e a "secagem dos buritizais".

"A 'mãe das águas' sofre perdas irreparáveis", concluiu Heidemann. "Aliás, a morte dos riachinhos acompanha o viajante." O que não deixa de ser uma forma de perguntar de onde Guimarães Rosa iria tirar atualmente um Grande Sertão: Veredas, se o pouco que sobrou dele não estivesse mais ou menos guardado, como relíquia, num parque nacional que até hoje mal saiu do papel, nasceu com 84 mil hectares e em 2004 chegou aos 230 mil hectares atuais a duras penas. Quase se perde para sempre dois anos atrás na Casa Civil do ministro José Dirceu. Menos de 20% de suas terras pertencem ao governo. Falta-lhe estrutura para receber visitantes. Sua folha de arrecadação nunca passou de um renque de colunas vazias, como um buritizal seco.

E, no entanto, faz parte de um Brasil que Guimarães Rosa conservou para sempre. Onde "se viam bandos tão compridos de araras, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenrolado, esfiapado nos lombos do vento quente". Onde, "de repente, com a gente se afastando, os pássaros todos voltavam do céu, que desciam para seus lugares, em ponto, nas frescas beiras da lagoa". Ou onde "as pessoas não são sempre iguais, ainda não foram terminadas".

Ele existia de fato, meio século atrás, quando Riobaldo Tatarana já avisava que, dos Gerais, "de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada"? Vá lá, no Grande Sertão de Guimarães Rosa misturava-se "o conteúdo geográfico bem nítido" com "outros conteúdos vagos e simbólicos", avisou o crítico Paulo Ronai no prefácio da edição de 1956. Mas há 50 anos todos eles pareciam verossímeis. E hoje, Grande Sertão só no livro.

Marcos Sá Correa, Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 01/06/2006, Vida, p. A18
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