Ilhas verdes do Negro

O Globo, Panorama Político, p. 28 - 20/07/2008
Ilhas verdes do Negro

Míriam Leitão

A paulista Giovana era adolescente quando o colégio a levou para a Amazônia num programa para descobrir vocações. Aos 29 anos, a bióloga está na região há seis, e é chefe da Estação Ecológica de Anavilhanas, um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo. A carioca Mariana nasceu e cresceu na Lagoa Rodrigo de Freitas. Aos 30, a ecóloga é analista no Parque Nacional do Jaú; um gigante de 2,2 milhões de hectares.
As duas moças são autoridades numa das áreas mais belas e ameaçadas da Amazônia. Giovana tem que vigiar 400 ilhas, que ficam entre as duas margens do Rio Negro, ameaçadas pelo corte de madeira, pela pesca ilegal, pela caça, pelo tráfico de animais, pela hostilidade de líderes políticos.
Anavilhanas são lindas.
Nesta época, as águas começaram a baixar, mas ainda engolem suas inúmeras praias e escalam, pelo menos, 20 metros o tronco das suas árvores. Navega-se de voadeira pelo entrecortado das ilhas vendo apenas as copas das árvores, que parecem boiar nas águas da cor indefinível do Rio Negro.
De que cor é o Rio Negro? É um mistério que corre com ele. Perto das praias, parece da cor de cobre avermelhado transparente. Longe da margem, escurece e merece mais o nome que tem. No olhar longo de superfície, com a ajuda do sol, camufla sua cor num azul de oceano.
No Baixo Rio Negro, perto de Manaus, abriga essas ilhas finas, alongadas. A maior tem 100 quilômetros de comprimento. Foram formadas por sedimentos trazidos pelo Rio Branco que deságua no Negro, rio de pouco sedimento. (Quando acabar de ler a coluna, confira as imagens num vídeo que fiz e está no meu blog: www.miriamleitao.com) Transformadas em Estação Ecológica ainda no governo militar, pelo visionário Paulo Nogueira Neto, as ilhas de Anavilhanas estão preservadas hoje, mas sob os vários riscos que trafegam pela hidrovia; passagem natural naquela terra das águas.
- O difícil é distinguir e flagrar o infrator. Hidrovia não é uma rodovia, onde se instalam pontos de fiscalização. É até difícil demarcar a Estação Ecológica, porque a água engole as placas na maior parte do ano. Às vezes, estamos fiscalizando na margem de uma das ilhas e, quando ouvimos algo errado no outro lado de uma ilha, temos que dar a volta inteira. Aí o infrator foge - conta Giovana Palazzi.
Mesmo assim, o pátio do Ibama em Novo Airão, cidade mais próxima, está todo tomado de madeiras apreendidas, algumas apodrecendo à espera de que a Justiça conceda o "perdimento", para que sejam leiloadas ou doadas. O cais em frente à sede, onde fica a estação flutuante, está cheio de barcos apreendidos com pesca e caça ilegais. Novo Airão, cidade de 15 mil habitantes, 143 km a oeste de Manaus, onde o celular ainda não chegou, não gosta muito de todo aquele zelo. Açulada pelo prefeito, a população já ameaçou invadir o flutuante e liberar os barcos. Ameaças foram feitas aos funcionários. Com a divisão do Ibama, quem trabalha nas unidades de conservação virou funcionário do Instituto Chico Mendes. O ICMBio ainda não está formado.
Perdeu-se estrutura, perderam-se instâncias a quem recorrer.
As dificuldades de trabalhar lá são amazônicas. Como guardar o arquipélago de Anavilhanas dos criminosos com quatro analistas e dez vigilantes de patrimônio ou os mais de dois milhões de hectares do Parque do Jaú, com outros dez vigilantes e aquelas distâncias enormes?
- Guardamos as cabeceiras dos rios no Jaú e os pontos estratégicos, mas os riscos são imensos - comenta Mariana Leitão, que, apesar do nome, não é minha parente.
A caça favorita é aos bichos de cascos, os quelônios, entre eles, as tartarugas. Até as comunidades ribeirinhas se juntam em elos com outros interessados: - Cada quelônio é vendido por R$ 500. Imagine: 10 são R$ 5.000 - diz Mariana.
O peixe-boi, quase extinto, está sendo reintroduzido na região pelo trabalho do Ipê (Instituto de Pesquisas Ecológicas). Lá até peixes não nascidos correm risco.
Outro dia, flagraram um morador transportando 3.000 alevinos de aruanã, um peixe da região, que tem o azar de ter fama de dar sorte a quem os tem em aquários. A Polícia Federal investiga o que parece ser uma quadrilha colombiana de tráfico de peixes ornamentais.
O Jaú está às voltas com outras disputas: 15 famílias que moram na região do Tambor, dentro do parque, não aceitaram indenização e se declararam um quilombo.
Nunca houve um no estado do Amazonas. Podem receber uma área de tamanho extravagante: 700 mil hectares; 1/3 do parque. Muitos interesses cercam essa disputa. Nem todos legais.
Giovana e Mariana entraram no Ibama no concurso de 2002. Dos 500 mandados para a Amazônia, elas fazem parte do grupo de 40 que ficaram. A maioria preferiu Brasília. Giovana, tempos após aquela viagem do Colégio Objetivo, voltou à Amazônia, onde está há seis anos; dois anos e meio em Anavilhanas. Mariana conserva o forte carioquês, Giovana preserva a cor muito branca com estoques de protetor solar; mas as duas se mexem naquela paisagem de floresta molhada como nativas e falam da Amazônia com paixão contagiante.
Como proteger a Amazônia é pergunta ainda à espera de respostas. Por que proteger é pergunta que tem respostas demais. Há razões de natureza ambiental, climática, biológica, econômica. Há também a beleza exuberante. Se nada disso valesse, ainda assim, haveria uma última razão: aquela sensação única, quando o barco desliza num igarapé. Lá dentro se ouve um silêncio vivo, que alerta e acalma.

O Globo, 20/07/2008, Panorama Político, p. 28
Bacia do Rio Negro

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