Morte anunciada

JB, Cidade, p. A13-A14 - 24/02/2005
Morte anunciada

Ambientalista assassinado na Baixada Fluminense recebia ameaças por combater corrupção e devastação ecológica
O ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro, 61 anos, que integrava a ONG Grupo de Defesa da Natureza (GDN), foi assassinado na noite de terça-feira próximo à Reserva Biológica do Tinguá, em Nova Iguaçu. O ambientalista, que trabalhava como voluntário na identificação de exploradores da reserva, vinha recebendo ameaças de morte há dez anos. Ecologistas denunciam a ação ilegal de caçadores de animais silvestres e colhedores de palmitos na região. Dionísio caminhava para casa, depois de um encontro na Associação de Moradores de Tinguá, quando foi baleado, a curta distância, com um tiro de escopeta. Segundo o delegado Rômulo Vieira, da Delegacia de Homicídios da Baixada, o tiro atingiu o olho direito do ambientalista.
O crime ocorreu por volta das 22h30, na Estrada da Administração. Dionísio estava a quase um quilômetro de casa e a menos de 300 metros de uma das entradas da reserva. A Polícia Civil investiga o envolvimento de palmiteiros no crime. Outras duas linhas de investigação estão abertas: uma delas é em relação a caçadores que invadem a reserva. Dionísio teria descoberto bases de apoio dos caçadores em casas de hospedagem da região. Outra hipótese investigada se refere à suspeita de que Dionísio ajudou a denunciar três fiscais do Ibama que hoje respondem a processo administrativo. Os três trabalhavam com o chefe da reserva, Luiz Henrique dos Santos Teixeira, desde outubro de 2003, e com o fiscal Márcio Castro das Mercês. Em fevereiro do ano passado, eles foram denunciados ao Ibama, que encaminhou o caso ao Departamento Jurídico do órgão.
O chefe da reserva não confirma a denúncia, mas o representante do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), José Miguel da Silva, afirma ter conhecimento do processo.
- O Departamento Jurídico do Ibama devolveu os três funcionários afirmando que não havia provas - disse José Miguel.
Já o chefe da reserva, Luiz Henrique, afirma que enquanto o processo administrativo não se encerra, tem que manter os funcionários. Mas faz uma ressalva:
- Com apenas um fiscal (Márcio das Mercês) conseguimos impedir mais devastação do que antes - disse.
Mercês, no entanto, crê mais na tese de assassinato por caçadores ou exploradores do palmito.
- Ele vinha recebendo ameaças veladas. Eram bilhetes, toques de telefone e alertas de pessoas conhecidas - conta Mercês, acrescentando que Dionísio chegou a relatar as ameaças sofridas para policiais federais.
Segundo Mercês, o ambientalista integrava uma força-tarefa composta por agentes federais e policiais do Batalhão Florestal da Polícia Militar. A equipe investigava a atuação de traficantes de animais silvestres e palmiteiros. Júlio participava das apreensões. A última delas ocorreu no carnaval, quando foram apreendidas 300 peças de palmitos. De acordo com os ecologistas, os palmiteiros atuam em grupos dos quais fazem parte adolescentes que recebem drogas como pagamento. Segundo Mercês, os palmitos são extraídos durante o dia e transportados em lombos de burros, geralmente dentro de sacos plásticos. A extrações chegam a 1,5 tonelada.
Os ecologistas denunciam como os responsáveis pela contratação dos palmiteiros fazendeiros da região. Segundo Mercês, um deles seria o agricultor conhecido como Edinho Palmiteiro, da região de Tabuleiro, em Xerém. Há denúncias de que, há alguns anos, Edinho chegou a pagar R$ 300 mensais para cada palmiteiro. Segundo os amigos de Júlio, algumas pessoas que vendem animais silvestres e palmitos próximo de balneários e represas da região sentiam-se incomodadas com a presença do ambientalista. Os ecologistas contam que são constantemente ameaçados.
- Já sofri vários atentados. Fui apedrejado em praça pública e escapei de quatro ataques a tiros - diz Mercês, que é apontado pelos ambientalistas como o próximo alvo dos grupos de palmiteiros e caçadores.
O ambientalista José Miguel da Silva também confirma a informação de que Márcio Castro das Mercês é o próximo da lista dos matadores.
- A vida prossegue. Certamente não foi o primeiro e nem será o último atentado. Não vou desistir. A ave não pode ser impedida de voar - diz Mercês. - As viaturas estão quebradas e sucateadas. Falta gasolina - acrescenta.
No fim da tarde de ontem, cerca de 150 pessoas participaram de ato pelo ambientalista. De mãos dadas, ecologistas e moradores da região rezaram. O padre Geraldo Lima e o prefeito de Nova Iguaçu, Lindeberg Farias, estavam no evento. O ambientalista será enterrado hoje às 11h, no cemitério de Ricardo de Albuquerque.
O presidente interino do Ibama, Luis Fernando Krieger Merico, veio ao Rio ontem e lamentou o assassinato:
- Queremos esclarecer o fato, mas não temos a pretensão de recuar nem 1 milímetro nas questões ambientais.
Iniciada na década de 70, a extração predatória do palmito, embora proibida por lei, continua a avançar pelo país, e responde hoje por 85% do comércio mundial.
Autoridades lamentam morte de ambientalista
"O que era mais concreto nesta história eram as ameaças que ele já recebia há muito tempo"
Rogério Rocco,Ambientalista e advogado especialista em direito ambiental
"É um crime assustador e mostra o quanto a questão dos direitos humanos é grave. É um crime contra os direitos humanos"
Alessandro Molon,Deputado estadual (PT)
"Este foi um assassinato revoltante. Espero que a polícia trabalhe bem e ache os assassinos o mais rápido possível"
Luiz Paulo Conde,Vice-governador
"Manifestamos pesar pelo falecimento. Mas não temos a pretensão de recuar nem 1 milímetro nas questões ambientais."
Luiz Fernando Krieger Merico, Presidente Substituto do Ibama
"Não podemos aceitar que estes crimes continuem sem punição dos culpados"
Lindberg Farias, Prefeito de Nova Iguaçu
"O assassinato do ambientalista é uma clara demonstração de que a repressão a crimes ambientais na reserva deve ser intensificada. Embora o homicídio seja uma triste novidade, o que não faltam são ações penais referentes a caça e outros crimes ambientais naquele local"
Renato Silva de Oliveira, Procurador da República no Rio de Janeiro

Ambientalistas na mira do crime

Comissão da Alerj tem lista de pessoas ameaçadas de morte. Agente florestal do Tinguá pode ser o próximo
Dionísio Júlio Ribeiro não é a primeira pessoa morta ou ameaçada de morte por atuar em defesa do meio ambiente no Estado do Rio. A Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Assembléia Legislativa divulgou uma lista com três nomes de pessoas assassinadas e sete ameaçadas de morte. O número, no entanto, pode ser muito maior. Enquanto a cobertura do crime de Nova Iguaçu foi realizada, o JB chegou a outros nomes que não constavam da lista da comissão - Luiz Henrique dos Santos Teixeira e Edil Polido, dois amigos de Dionísio ameaçados de morte, e Fernando, morto em 1998.
O próximo alvo dos criminosos, de acordo com Miguel da Silva, representante da Região Sudeste no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), é Márcio Castro das Mercês. O agente florestal do Ibama na Reserva Biológica do Tinguá é membro do Grupo de Defesa da Natureza (GDN) e amigo de Dionísio há anos. Márcio já foi vítima de quatro atentados a tiros, dos quais escapou ileso, além de um apedrejamento. Ele denuncia a caça predatória e a exploração irregular de palmito, além de casos de conivência do próprio Ibama. O chefe da Reserva Biológica do Tinguá, Luiz Henrique dos Santos Teixeira, diz que recebe recados ameaçadores constantemente. Segundo ele, 12 funcionários do parque pediram ontem proteção policial.

Entre 1997 e 2000, o ambientalista Rogério Rocco, da ONG Os Verdes, foi ameaçado por impedir construções na faixa marginal de proteção de rios quando ocupava o cargo de secretário-assistente de Assuntos Ambientais de Niterói. Certa vez, todas as saídas do prédio em que trabalhava foram trancadas com cadeados. Minutos depois de descobrir as trancas, um telefonema confirmou a autoria da ação.

O ambientalista Edil Polido, amigo de Dionísio Júlio, luta há 20 anos pela preservação das águas de Adrianópolis, Nova Iguaçu. Em 2001, liderou uma campanha contra a instalação de um aterro sanitário próximo à Reserva de Tinguá. Nesse ano, Edil teve uma caminhonete D-20 roubada perto de casa, por três homens armados de fuzis. Eles o ameaçaram e fugiram.
Durante dois anos, de 1989 a 1991, o biólogo Mário Moscatelli foi diretor do Departamento de Controle Ambiental de Angra, uma espécie de secretário de Meio Ambiente. Na briga para preservar os manguezais e regular o uso da zona costeira, foi vítima de quatro ameaças de morte.

Gerhard Sardo, ambientalista de Niterói, já foi ameaçado cinco vezes por defender o Parque Estadual da Serra da Tiririca e da Área de Proteção Ambiental (APA) de Maricá, denunciando ocupações irregulares de posseiros na Praia do Sossego. Marco Aurélio de Oliveira Paes, chefe de fiscalização do Instituto Estadual de Florestas, vem sofrendo há nove meses ameaças anônimas por telefones e cartas.

Hermano Reis, membro do Comitê de Defesa da Ilha Grande, em Angra dos Reis, recebe ameaças de posseiros e empresários responsáveis por ocupações irregulares na ilha. Em Itatiaia, Léo Nascimento, diretor do Parque Nacional de Itatiaia, enfrenta palmiteiros e as patrulhas do Ibama são freqüentemente recebidas a tiros quando rondam o parque.

Álvaro Marques de Oliveira, advogado e fundador da ONG Serena, foi morto em 23 de fevereiro de 1999, em Angra dos Reis, por denunciar o desmatamento ilegal de manguezais. O crime ainda não foi solucionado. Na época, a linha de investigação da polícia e do Ministério Público de Angra foi a de que a motivação do assassinato teria sido uma disputa de posse pela Ilha de Sandri, na divisa dos municípios de Angra e Paraty. No ano anterior, Álvaro escapara ileso de um atentado, quando um homem disparou vários tiros contra sua casa na ilha.

Seu Edu, morto em Maricá, em 1993, combatia o roubo de areia nas praias da região. As denúncias feitas por Seu Edu acusavam a formação de uma cratera pela extração de areia da Praia de Itaipuaçu. Apontava também diversos loteamentos irregulares em áreas da Mata Atlântica. Até hoje sua morte não foi esclarecida.

O sargento Amauri, do Batalhão de Polícia Florestal e Meio Ambiente, foi assassinado em Itaperuna, em 1992, ao tentar coibir a pesca predatória em uma fazenda da cidade.
Fernando, da ONG Univerde, de São Gonçalo, foi apedrejado até a morte no Terminal Norte de Niterói, em 1998. Ele denunciava invasões de manguezais na Baía de Guanabara.

Vítima evitava sair à noite
Para se preservar de atentados, o ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro Filho evitava andar à noite pelas ruas do Tinguá. O caminho até a sua casa era ermo, por isso, segundo seus amigos, ''Seu Júlio'' preferia a luz do dia. Sargento reformado da Polícia Militar, o ambientalista - que participou da criação da reserva em 1989 - era considerado pelos ambientalistas locais uma pessoa destemida, apesar das ameças de morte.
- Na noite da emboscada, ele não teve chances de se defender - lamenta o ambientalista Elton Medeiros.

Conselheiro fiscal do Grupo de Defesa da Natureza (GDN), o ambientalista também já foi funcionário do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Na ONG, ele trabalhava como voluntário. Há pelo menos 10 anos, segundo amigos, ''Seu Júlio'' começou a receber ameaças. Nessa época, sua família se mudou para Guadalupe. Algum tempo depois, a mãe do ambientalista foi morar em Tinguá, onde viveu com filho até a sua morte, recentemente. Dionísio costumava receber a visita da filha de 19 anos.

- A vida dele era no Tinguá. Dificilmente ele se mudaria - assegura Hélio Vanderley Coelho Filho, subsecretário de Gestão Financeira de Nova Iguaçu.

Envolvido com projetos sociais, o ambientalista estava ajudando a Cruz Vermelha a levar informações sobre doenças à comunidade de Tinguá. Pelos vizinhos, Dionísio era considerado discreto. Era maratonista, não bebia nem fumava.
- Fiquei surpreso em saber que ele estava sendo ameaçado. Sabia que ele reprimia os palmiteiros, mas nunca disse que estava sendo ameaçado - conta um vizinho.
Segundo o agente florestal Márcio Castro das Mercês, o medo de morrer está presente entre todos os ambientalistas.
- Se por um lado a riqueza da reserva é infinita, por outro os arredores são muito pobres, o que acaba gerando palmiteiros e caçadores - diz Mercês.
A reserva do Tinguá tem 26 mil hectares. A área de entorno é de 500 mil quilômetros quadrados. Segundo ambientalistas, menos de 10% da flora foi mapeada. A reserva do Tinguá fornece água para 4 milhões de pessoas na Zona Norte e na Baixada.

Crime é notícia no exterior
O site da rede americana de TV CNN deu destaque ao assassinato do ambientalista Dionísio Júlio Ribeiro. A reportagem, que entrou ontem na versão online da rede, fornecida pela agência de notícias Associated Press, destaca que a morte do ambientalista no Rio de Janeiro aconteceu poucos dias depois do assassinato da missionária americana Dorothy Stang, vítima da violência no campo em Anapu, no Pará.
O texto traz depoimentos do gerente executivo do Ibama no Rio, Edson Bedim de Azeredo, alertando para a gravidade dos crimes contra ambientalistas, e também de Cintia da Silva, do Grupo de Defesa da Natureza. Ela conta que o colega nunca andava sozinho à noite, para evitar emboscadas, e que ele havia recebido ameaças de morte nos últimos anos devido à sua atuação contra a caça e a extração ilegal de palmito na área de Mata Atlântica.

''A caça é praticamente ilegal no Brasil, assim como o desmatamento em reservas naturais. Mas a agência de proteção ambiental do governo é mal financiada e freqüentemente faltam agentes para patrulhar as vastas áreas sob seu controle'', diz o texto.

A reportagem termina destacando que o trabalho de Dionísio era totalmente voluntário.
Ministra cobra ação
O assassinato do ambientalista Dionísio Ribeiro teve forte repercussão em Brasília. A pedido da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a cúpula da Polícia Federal (PF) vai instaurar inquérito para investigar a morte. Ontem mesmo a Polícia Federal enviou uma equipe à reserva de Tinguá para rastrear a área. Marina Silva também pediu ao secretário de Segurança do Rio, Marcelo Itagiba, que a investigação das polícias seja feita de forma conjunta.
Ontem, o delegado Marcelo Itagiba telefonou para a Superintendência da PF no Rio e sugeriu que os federais auxiliem na investigação. Mas o governo federal decidiu instaurar inquérito, já que envolve questão ambiental e o caso teve grande repercussão.
Marina Silva quer investigação profunda do caso. A ministra conversou com o secretário Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, ministro Nilmário Miranda, sobre o assassinato do ambientalista.

Ecologistas reagem
O assassinato brutal de Dionísio Júlio Ribeiro causou revolta e indignação entre ambientalistas do Rio de Janeiro. A maioria admitiu que já tinha conhecimento de que ''Seu Júlio'' vivia sob ameaças desde a implantação da Reserva Biológica do Tinguá, em 1989. A reserva foi criada graças a pressão dos movimentos sociais e de pesquisadores, por ser um dos mais bem preservados sítios de Mata Atlântica do estado.
De acordo com a legislação ambiental, a Reserva Biológica é um tipo de Unidade de Conservação que tem como objetivo a preservação integral, é de posse e domínio públicos, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites são desapropriadas. É proibida a visitação pública, exceto aquela com objetivo educacional, de acordo com regulamento específico.
- Seu Júlio lutava contra tudo e contra todos há mais de 20 anos. Contra a extração ilegal de palmito, contra os caçadores e outras irregularidades. Liderou campanhas para impedir a ocupação de partes da reserva - disse o ambientalista José Miguel da Silva, representante da Região Sudeste para o Conselho Nacional de Meio Ambiente.
Para o advogado ambiental Rogério Rocco, da ONG Os Verdes, o mais terrível no crime é sua banalidade.
- A defesa do meio ambiente, que há alguns anos soava como algo romântico, hoje atinge interesses econômicos. No entanto, nem sempre são poderosos, industriais ou latifundiários. Às vezes os interesses são medíocres, como agora, neste caso, pode haver caçadores ou palmiteiros envolvidos. Hoje em dia, se no Pará dizem que os pistoleiros mataram a freira Dorothy por R$ 50 mil, acredito que não tenham oferecido nem R$ 10 mil para matarem o Dionísio. E ele sempre falou nas ameaças, há mais de 10 anos - disse o ambientalista, revoltado.

JB, 24/02/2005, Cidade, p. A13-A14
UC:Reserva Biológica

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