O Cerrado em jogo

O Eco - 10/04/2007
A Área de Proteção Ambiental do Pouso Alto (ver mapa ao lado), no nordeste goiano, é uma unanimidade. Em Alto Paraíso de Goiás, município que teve 100% de seu território englobado pela unidade de conservação, seja quem for, ambientalista ou ruralista, todos se dizem a favor da APA. O consenso, entretanto, é aparente. Sentados na mesma mesa para decidirem o que a APA de fato deve preservar, os grupos divergem. Quem tem fazendas, quer espaço para continuar as lavouras anuais, como as de soja e milho. Já os que apostam no turismo, defendem um modelo onde a conservação seja a prioridade.

A APA Pouso Alto está localizada no entorno do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, há cerca de 250 quilômetros de Brasília. Foi criada em 2001 através de um decreto estadual e possui uma área duas vezes maior (872 mil hectares) que o Distrito Federal, atingindo mais cinco municípios além de Alto Paraíso: Colinas do Sul, Nova Roma, São João da Aliança, Teresina de Goiás e Cavalcante.

Seu desenho abarca uma das regiões de Cerrado mais bem preservadas do país, onde é registrada biodiversidade única, além de inúmeras nascentes que alimentam a bacia do rio Tocantins. Junto com a Serra do Espinhaço e as margens do rio Araguaia (divisa Tocantins/ Pará), a Chapada dos Veadeiros é um dos centros de endemismo do Cerrado. A APA, por ser uma unidade de uso sustentável, foi pensada para conciliar interesses de antigos moradores da Chapada com a necessidade de criar um mosaico de reservas em todo nordeste goiano.

Os desentendimentos com relação à área começaram em 2005, quando o governo do estado de Goiás deu inicio aos debates para elaboração do plano de manejo da unidade. Por não concordarem com os rumos que a discussão tomou dentro do conselho gestor da APA, 18 fazendeiros da região ingressaram com uma ação popular pedindo a anulação dos decretos estaduais 5.419 (07/05/2001) e 5.500 (15/10/2001) que instituíram a unidade de conservação e seu conselho gestor, respectivamente. A ação foi julgada procedente pelo juiz da Comarca de Alto Paraíso, Lênio Prudente, que concedeu uma liminar aos fazendeiros no último dia 18 de janeiro, suspendendo o processo de implementação da APA.

Não temos nada contra a APA, mas sim contra o processo como ela está sendo implantada, pontua o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Alto Paraíso de Goiás, Divaldo Rinco. Segundo ele, embora sejam os fazendeiros quem pagarão a conta para proteger a região, o setor agropecuário não tem representatividade no conselho gestor. Os sindicatos rurais dos municípios dividem vagas com membros de associações comerciais, e por isso queixam-se de ter meia vaga no conselho.

As disputas por mais representatividade na elaboração do plano de manejo escondem a verdadeira questão por trás do pedido de liminar movido pelos produtores. O texto da ação, bem como a sentença do juiz de Alto Paraíso, sustentam que a APA está promovendo uma desapropriação indireta, uma vez que impõe limitações sobre o uso da terra em propriedades privadas. Ou seja, a preocupação dos fazendeiros diz respeito a possíveis restrições à atividade agropecuária dentro da APA.

Modelo de desenvolvimento

A promotora do Ministério Público Estadual em Alto Paraíso, Maris Amado, questiona a posição dos produtores rurais e afirma que a ação deles é juridicamente inconsistente. As pessoas estão acostumadas a sofrerem limitações legais de várias naturezas, mas quando se fala em questões ambientais, há resistência. Eles não querem que dêem pitaco na propriedade deles, julga.

Rinco, que já foi duas vezes prefeito de Alto Paraíso, diz acreditar que a APA trará vantagens à região, desde que o plano de manejo deixe bem claro que haverá espaço para as belezas naturais e para os pastos e lavouras. O presidente do Sindicato Rural acusa o governo estadual de impor um plano de manejo na marra à região depois de cinco anos da edição do decreto que criou a Pouso Alto. Reclama ainda do fato de uma consultoria do Rio Grande do Sul ter sido contratada para fazer os estudos de zoneamento ecológico-econômico.

O diretor de Unidades de Conservação da Agência Ambiental de Goiás, Paulo D’Ávila, afirma que o governo do estado possui 250 mil reais, frutos de uma compensação ambiental, para investir na feitura do plano de manejo da APA. Ele mostra todas as datas e listas de presenças das reuniões nos munícipios que estão na área protegida para garantir que o processo está sendo feito com participação popular. Em sua opinião, a ação dos produtores é um capricho, antes de qualquer coisa. Aos fazendeiros, diz, não interessa discutir o ordenamento territorial da APA. Muitos querem especular com suas terras, aponta o diretor da agência goiana.

A procuradoria geral de Goiás entrou no último dia 15 com recurso no Tribunal de Justiça do Estado e espera a sentença para as próximas semanas. Além disso, o Ministério Público Estadual entrou com um agravo contra a sentença proferida pelo juiz Lênio Prudente. Se a liminar for suspensa, o plano de manejo poderá continuar, mas em caso contrário a Chapada dos Veadeiros perderá a oportunidade de ter um planejamento para a proteção de seus recursos naturais.

Uma das funções do plano de manejo da APA é a discussão com a sociedade do tipo de desenvolvimento que se terá dentro dela, pondera o coordenador do programa Cerrado da Conservação Internacional, Ricardo Machado. A ação dos produtores rurais acabou por interromper exatamente este debate crucial, observa. Atividades agropecuárias, a priori, não estão proibidas de existir em Pouso Alto. Elas só teriam que ser realizadas com mais cuidado, como pondera a promotora Maris Amado.

Mas é possível entender um pouco a posição dos produtores ao entrevistar alguns de seus ‘oponentes’, o que em Alto Paraíso convencionou-se chamar de ecologistas-radicais. Pergunte à vereadora e ao presidente da Associação dos Moradores da Vila de São Jorge, Aristéria do Nascimento, a Téia, o que ela acha de plantações de soja dentro da APA Pouso Alto. Ela dá uma gargalhada sonora, e devolve a pergunta Plantar soja? Eu sou totalmente contra, nem agüento olhar mais para a cara de gaúcho. Os gaúchos chegaram aqui para detonar, não pode, generaliza.

Ela crê que a APA abre uma oportunidade de gerar um desenvolvimento sustentável real para as pessoas de baixa renda na região. A unidade de conservação desenvolve o potencial do ecoturismo dos munícipios, defende Téia. São Jorge é um exemplo, pois éramos uma vila de garimpeiros e hoje nos tornamos guias e donos de pousada, diz em referência ao Vilarejo que abriga milhares de turistas que visitam o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros.

Ex-prefeito de Alto Paraíso e ex-presidente do Sindicato Rural da cidade, Jair Barbosa participa dos debates sobre o plano de manejo no conselho gestor. Ele sustenta que aquilo que os ambientalistas querem preservar os produtores da região nunca degradaram. Ele fala em 84% de áreas conservadas na chapada e acha que os fazendeiros devem ter o direito de manter suas produções dentro da APA. Eu já disse que não sou contra a APA. Temos que preservar, mas não a qualquer custo. Sua opinião é de que os proprietários de terra que moveram a ação popular pensam apenas em manter os seus negócios, pois o potencial de crescimento não é grande. O que se busca na região é aumento de produtividade, garante.

Meio ambiente pressionado

De fato, a degradação na APA Pouso Alto não está ocorrendo de maneira acelerada. As extensões de áreas destinadas à agropecuária são pequenas. Em Alto Paraíso, por exemplo, existem 6 mil hectares de pasto e 5 mil hectares de pastagem, segundo o Sindicado Rural, o que juntos equivalem a aproximadamente 2,5% do munícipio. Isso ocorre porque a Chapada dos Veadeiros é uma barreira natural às grandes plantações. Ali, principalmente nos terrenos fronteiriços ao parque nacional, a terra é pura pedra e areia.

No entanto, existem grandes áreas de soja que entram pela pequena parte da APA que avança sobre São João da Aliança, ao Sul. Foi ali que no mês de março passado o Ibama aplicou uma multa de 100 mil reais na Fazenda São Jorge, de 650 hectares, onde se vê que o proprietário construiu um sistema de drenagem do solo para impedir o acúmulo de água no meio da plantação de soja. O processo acelerou a lavagem do solo, que contém resíduos de insumos agrícolas, levando-os para córregos que alimentam o rio Macacão, um dos atrativos turísticos da Chapada dos Veadeiros. O dono da São Jorge, Leonardo Ribeiro, um jovem de Ribeirão Preto (SP) que conta ser fã das cachoeiras da região, admite a infração ambiental.

O episódio, ele pondera, serviu para lhe mostrar que os produtores terão cada vez mais que se adaptar às normas ambientais. Ribeiro crê que a implantação da APA vai até mesmo incentivar a legalização de produtores, que em sua visão estão longe de cumprir as determinações do código florestal. Nem eu nem ninguém está regularizado por aqui. Mas ele rechaça radicalismos. Em algumas áreas da região há espaço para a lavoura crescer, argumenta. O que não pode é fazer um parque travestido de APA, conclui.

Título das terras

A resistência dos produtores de Alto Paraíso à criação da APA do Pouso Alto pode ser explicada pela história do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Criado originalmente com o nome de Parque Nacional do Tocantins, em 1960, por Juscelino Kubitschek, a área protegida possuia 620 mil hectares, incluindo muitos trechos que hoje estão na APA. Já em 1972, produtores que não haviam recebido indenizações por terras conseguiram na justiça a redução do parque. No ínicio da década de 80, os militares, pressionados por poucos e grandes proprietários promoveram mais uma drástica redução no Tocantins. Reduzido a apenas 65 mil hectares, o parque passou a se chamar Veadeiros e assim permanece até hoje.

Jair Barbosa, nativo de Alto Paraíso, acompanhou todas as disputas em torno das áreas protegidas do nordeste goiano. Para ele, o que motiva o movimento dos fazendeiros contra a APA Pouso Alto é um medo de que isso possa causar desapropriações como ocorreu na criação do Parque dos Veadeiros. Na região, poucas são as propriedades que conseguem comprovar a titularidade. Daí o temor que qualquer intervenção governamental possa bagunçar a ordem estabelecida.

Dados da Ong Conservação Internacional indicam que desde a primeira redução do parque na década de 60, 120 mil hectares já foram desmatados. A APA, portanto, pode ser uma última tentativa de proteção do cerrado da região. Em 1999, um decreto do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, tentou retomar a área que foi reduzida durante a década de 80. Mas a iniciativa foi barrada no Supremo Tribunal Federal (STF) por pedido de produtores da cidade de Cavalcante.

O próprio decreto estadual que instituiu a Pouso Alto em 2001 gerou reações imediatas no ambiente da Chapada dos Veadeiros. Assustados com as possíveis restrições ambientais sobre suas propriedades, fazendeiros se apressaram em desmatar áreas preservadas. Relatos da destruição foram registrados em uma pesquisa de campo organizada em 2001 pela Ong Oca Brasil, com sede em Alto Paraíso. No relatório os técnicos comprovaram que no vale do rio Macaco, a vegetação estava sendo bastante danificada por abertura de estradas e máquinas de preparação de solo.

O agravamento do desmatamento nos últimos anos, inclusive para a produção de carvão, levou o Conselho Estadual de Meio Ambiente de Goiás a proibir licenças de desmatamento para áreas acima de 30 hectares entre os meses de outubro de 2005 e fevereiro de 2006. A medida foi interpretada pelos produtores como uma consequência direta da implementação da APA, o que reforçou a impressão de que a unidade havia chegado para limitar a atuação dos fazendeiros.

Para o diretor de Unidades de Conservação de Goiás, Paulo D’Avila, está faltando comunicação com os proprietários sobre quais os reais objetivos da APA.. Ele promete uma atuação mais presente do estado para orientar no campo os produtores e mostrar a eles as vantagens de preservar matas ciliares e nascentes. Álvaro De Angelis, diretor de Meio Ambiente da Oca Brasil, acha que este é mesmo o caminho. O ideal, defende, é que APA caminhe cada vez mais para a produção sustentável. O turismo seria o carro chefe na economia de qualidade. Para isso, seria preciso incentivos públicos para permitir a transição aos produtores rurais. Mas a preocupação com uma possível complicação econômica deles não pode ser maior do que a proteção da biodiversidade, frisa De Angelis.

Colaborou o jornalista Aldem Bourscheit.
UC:APA

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