O mau exemplo vem de cima

O Globo, Rio, p. 18 - 18/03/2008
O mau exemplo vem de cima
União, estado e municípios, que têm o poder de fiscalizar, são réus em ações por crime ambiental movidas pelo MP

Daniel Engelbrecht, Elenilce Bottari, Paulo Marqueiro e Tulio Brandão

Uma década não foi suficiente para que União, estado e municípios fizessem o dever de casa. Apesar de terem o dever de garantir o respeito à legislação ambiental, eles são réus recorrentes tanto na Justiça federal quanto na estadual.

Segundo um levantamento feito pelo Ministério Público Federal, a União é recordista, figurando em sete ações civis públicas e quatro populares, seguida da prefeitura do Rio, que acumula cinco ações civis públicas e uma popular. A prefeitura figura também em cerca de mil investigações sobre crime ambiental, de um total de duas mil, feitas pelo Ministério Público estadual. Até órgãos de fiscalização não fogem à regra: o Ibama responde a três ações civis públicas e a Feema, a duas ações civis públicas e uma popular.

Projeto do estado desmatou área
Apesar dessa enxurrada de ações cíveis, casos envolvendo o poder público raramente chegam à esfera criminal. É o que acontece com delitos ambientais do dia-a-dia, como lançamento de esgoto em rios, praias e lagoas; destruição de áreas verdes por ocupações irregulares; poluição do ar e contaminação do meio ambiente por lixões. Apenas 3,2% dos processos julgados ano passado na Justiça estadual, com base na Lei de Crimes Ambientais, estavam relacionados ao artigo 54 (causar poluição). Esses delitos que estão à vista de todos, embora muitas vezes não sejam punidos, são tema da terceira reportagem da série "A impunidade é verde".

Alardeado pelo estado como o maior projeto habitacional da América Latina, o conjunto Nova Sepetiba II, planejado para 5.837 famílias, transformou-se num exemplo. A não ser seguido. Para construir as casas em Sepetiba, a Companhia estadual de Habitação (Cehab) desmatou, em 2002, uma área de Mata Atlântica onde viviam espécies em extinção, além de ter aterrado brejos e uma nascente.

O fato levou dez funcionários da Feema, além da construtora Delta S/A, a serem denunciados por crime ambiental. A Justiça, no entanto, rejeitou a denúncia. Na esfera cível, a promotora Rosani Cunha, da 2ª Promotoria de Meio Ambiente da capital, ingressou com uma ação civil pública, conseguindo a paralisação das obras. Em novembro de 2004, a ação foi convertida num termo de ajustamento de conduta (TAC), no qual o estado reconhecia os danos e se comprometia a repará-los.

Mas, passados mais de três anos, uma das poucas obrigações cumpridas foi a criação da Área de Proteção Ambiental de Nova Sepetiba II. As 250 casas construídas em 2002 estão até hoje fechadas.

- Infelizmente, o estado deixou de cumprir uma série de pontos do acordo, como elaborar um plano diretor para a APA, reflorestar a área desmatada e recuperar os brejais - comenta Rosani.

Em Petrópolis, a prefeitura foi notificada pelo Ibama a interromper os investimentos no bairro Maria de Lima. A comunidade, localizada em Zona de Conservação da Vida Silvestre dentro da Área de Proteção Ambiental de Petrópolis -onde qualquer construção é proibida -, cresceu fortemente depois de receber infra-estrutura, como energia elétrica e orelhões. O Ibama intimou as cerca de 300 famílias a deixarem o local.

O mesmo Ibama que intima é réu, junto com a Serla, numa ação civil pública movida pelos ministérios públicos Federal e Estadual, em 2005. A ação pede a remoção de oito barragens construídas ao longo do Rio Tinguá, nas imediações da Reserva Biológica do Tinguá.

Episódios ocorridos há mais de dez anos, antes da Lei de Crimes Ambientais, ainda não tiveram solução. Como o vazamento de 370 metros cúbicos de esgoto na Praia do Vidigal, em frente ao Hotel Sheraton, em 1997. Depois de uma investigação, o MP moveu uma ação civil pública contra a Cedae por danos ambientais, pedindo R$ 1 milhão em indenização.

Um laudo da Feema, anexado ao processo, sustentava que a mancha no mar havia se estendido de São Conrado ao Leblon, afetando a qualidade da água. Condenada em abril de 1999, a Cedae recorreu ao Tribunal Regional Federal (TRF), alegando que "poucas horas após o rompimento da tubulação, as águas da Praia do Vidigal haviam voltado à sua normalidade".

O recurso perambulou durante sete anos pelo TRF até que, em setembro do ano passado, foi julgado. No acórdão, os desembargadores reduziram a indenização a ser paga pela Cedae para R$ 50 mil.

Mas, devido a um novo recurso, o processo ainda não foi encerrado e nem o valor pago ao Fundo Nacional do Meio Ambiente.

Mas, por que União, estados, municípios e empresas públicas de modo geral raramente são punidos criminalmente? Artur Gueiros, professor de direito penal da Uerj e procurador da República, diz que no direito brasileiro não é possível processar criminalmente o estado porque, segundo ele, não haveria eficácia na aplicação das penas.

- Existem mecanismos que atendem melhor à finalidade de atribuir responsabilidade ao estado pelo dano ambiental, como as ações civis públicas. Outra possibilidade é processar criminalmente a pessoa do administrador, como o prefeito ou o governador.
No entanto, raramente gestores públicos são processados por crimes ambientais.

Uma exceção ocorreu no caso de uma dragagem feita pela Companhia Docas do Rio de Janeiro na Baía de Sepetiba, que causou sérios danos ao meio ambiente. O ex-diretor da Feema que emitiu a licença para a obra, contrariando pareceres técnicos, foi denunciado, mas absolvido.


A prefeitura no banco dos réus
Município é investigado por falhar na contenção da expansão das favelas

As falhas na contenção do crescimento de favelas têm levado a prefeitura do Rio ao banco dos réus. O município figura em nada menos que metade das duas mil investigações em curso nas quatro promotorias de Meio Ambiente do Ministério Público estadual na capital. Na maioria das vezes, por omissão na fiscalização. O MP acusa o prefeito Cesar Maia de recusar-se a firmar acordos, o que, quase sempre, leva o caso para a Justiça.

Um exemplo é a expansão da favela do Morro da Babilônia, no Leme, que atingiu uma área de proteção ambiental. Em 2006, o MP tentou negociar com a prefeitura a demolição de 30 casas que estavam em construção. Segundo o promotor Carlos Frederico Saturnino, da 1ª Promotoria de Meio Ambiente, o acordo foi vetado pelo prefeito.

- Chamamos vários secretários municipais para conversar e eles reconheceram a necessidade de partir o quanto antes para as demolições, antes que as casas fossem habitadas. Mas, em cima da hora, Cesar Maia não autorizou o acordo - afirma Saturnino.

Para Cesar Maia, no entanto, o que há é uma tentativa de invasão do MP na competência exclusiva do Executivo:
- Nossa Procuradoria Geral tem um parecer de que os TACs invadem a competência do Executivo. O MP é fiscal supremo das leis, mas os atos administrativos são de competência do Executivo. Sempre que o MP entender que a prefeitura não se ajusta em sua interpretação, deve ir ao TJ (Tribunal de Justiça) e este decidir. A instância final é o Judiciário. Não é nem o MP, nem o Executivo. Assim funciona o estado de direito.

Em agosto de 2006, o MP estadual obteve uma liminar da juíza Jacqueline Lima Montenegro, da 6ª Vara de Fazenda Pública, determinando a remoção das casas construídas irregularmente na Babilônia e o reflorestamento da área. A prefeitura alegou que precisava mapear os imóveis e não fez as demolições no prazo. Um ano e sete meses depois, as casas - que à época estavam em construção - encontram-se ocupadas.

O Globo, 18/03/2008, Rio, p. 18
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