Os donos das ilhas

O Globo, Ciência, p. 35 - 14/10/2008
Os donos das ilhas
As aves ditam a conduta em São Pedro e São Paulo; em Trindade, o caranguejo reina absoluto

Antônio Marinho e Roberta Jansen

Atentas a qualquer movimento estranho em seu território, as aves ficam à espreita de cientistas e militares da Marinha que desembarcam em botes a quilômetros do Arquipélago de São Pedro e São Paulo e sobem a escorregadia escada "quebra-peito", no único meio de acesso à ilha Belmonte que abriga a estação. Centenas de atobás e viuvinhas dominam o espaço há muito tempo, tanto que não se sabe exatamente quando decidiram morar nos rochedos.
Provavelmente, as aves vieram de outras ilhas oceânicas, como Fernando de Noronha, e decidiram estabelecer residência fixa no arquipélago. O maior atrativo do local é o cardápio rico e variado, principalmente a partir de outubro até os primeiros meses do ano, quando dezenas de espécies marinhas desovam no local. Eventualmente, as aves residentes recebem a contragosto garças, algumas raras, como a negra (Egretta gularis), que na verdade é cinza azulada. Essas turistas pegam carona em navios e fazem uma paradinha para um lanche no arquipélago. Isso nem sempre é bem visto por atobás e viuvinhas, que logo tratam de expulsar as visitantes.
As viuvinhas, em menor número, são mais amistosas e sociáveis. Já os atobás são ciumentos e têm pouca paciência com intrusos. Esse mau-humor é maior por parte dos grupos de casados que vivem do lado esquerdo da casa dos pesquisadores. Lá eles constroem seu ninhos, feitos com restos de algas, pedrinhas e o que mais encontram no mar e nos rochedos. Do outro lado, ficam os atobás solteiros. E quando um grupo invade o espaço do outro a briga é feia. Para chegar ao farol, no lado das aves casadas, é preciso paciência e cuidado. A todo instante os atobás tentam atacar e bicar quem se aproxima muito.
No local, há estudos com os atobás, especialmente em biologia reprodutiva. Algumas aves receberam anéis nas patas. O objetivo é descobrir se freqüentam outros lugares.
Mas é difícil as aves residentes abandonarem o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, onde são as donas do pedaço. Com a retirada dos escombros da estação velha - destruída numa ressaca - elas terão mais espaço para se reproduzir.
Arquipélago tem espécies exclusivas
Peixe é o que não falta, das mais variadas espécies, como o inofensivo tubarão-baleia (há mais de cem registros do maior peixe do mundo, só no primeiro semestre), albacoras (um tipo de atum que pode chegar a mais de dois metros e pesar 300 quilos) e numerosos tubarões. Peixe-voador, cavala, xaréu, lagostas, polvos, além de corais, algas e esponjas fazem do arquipélago seu lar. Cetáceos passam pela área.
- Por sua proximidade do equador, o arquipélago é de grande importância no ciclo de vida de animais marinhos - diz o cientista Fábio Hissa Vieira Hazin, da Universidade Federal Rural de Pernambuco e coordenador de um estudo sobre a ecologia de grandes peixes. - Algumas espécies têm propriedades farmacológicas potenciais, como esponjas e anêmonas, que precisam ser melhor estudadas.
Outra característica peculiar de São Pedro e São Paulo é a grande biodiversidade e o endemismo. Já foram identificadas 60 espécies, sendo que cinco só ocorrem na região. Isso tem a ver com o enriquecimento do mar na região. De maneira geral, os oceanos são pobres em nutrientes, mas as ilhas oceânicas, como São Pedro e São Paulo, Trindade e Martim Vaz, são oásis num deserto. Cerca de 90% de toda a produção de pescado no mundo vêm de 2% a 3% dos mares.
O problema é que a média de profundidade nos oceanos é de 3,8 mil metros e a luz necessária para a fotossíntese chega no máximo a 250 metros. Essa diferença causa perda contínua de nutrientes nos oceanos. Em regiões onde águas mais profundas sobem para áreas mais superficiais (fenômeno da ressurgência), como a costa do Peru e do Chile, há mais vida marinha.
- Em função de características do Atlântico, o Brasil jamais será um grande produtor mundial de pesca por captura. Não temos como crescer muito além de um milhão de toneladas ao ano. Mas podemos aumentar a pesca nas áreas das nossas ilhas oceânicas - diz Hazin.
- A atividade pesqueira é crucial para a manutenção das 200 milhas.
O guano (pó branco de excrementos das aves) que se acumula no arquipélago é levado pelas chuvas para o mar e esse fenômeno aumenta a oferta de nutrientes em São Pedro e São Paulo. A partir de julho, começa o enriquecimento do ecossistema do arquipélago, acompanhado da migração do peixe-voador, que chega agora em outubro e encontra alimentação abundante. Ele desova nos três primeiros meses do ano. É quando aparece a albacora que está migrando das Américas para a costa da África e se farta de peixe-voador.
Outras espécies, como cavala, peixe-rei e polvos usam o mar da região para desova.
- Para se ter idéia da importância do estudo da vida marinha em São Pedro e São Paulo, essa é a área de maior ocorrência de tubarão-baleia no Brasil, de janeiro a junho. Já identificamos 13 espécies novas de moluscos. Existem espécies com distribuição restrita e padrões específicos, como o golfinho nariz-de-garrafa e o peixe-macaco - diz Hazin.
Na pedregosa Trindade, o caranguejo terrestre é rei, principalmente o da espécie Gecarcinus lagostoma. Ele está por toda parte: no alto dos morros, a 600 metros de altura, em cima das árvores e sob a terra. Sobretudo, ele está no chão, formando um manto. À noite, é impossível andar pela ilha sem pisar acidentalmente nos bichos. O animal gosta de passear mais à noite. Durante o dia, prefere ficar entocado, sob folhas ou em locais de sombra. Não se sabe exatamente como ele chegou à longínqua e isolada Trindade (a 1.167 quilômetros do continente).
- Ele provavelmente chegou lá por mar, pegando carona em troncos, e se adaptou à terra - arrisca Carlos Ernesto Schaefer, da Universidade Federal de Viçosa, coordenador do Projeto de Solos e Ecologia Terrestre das Ilhas Oceânicas Brasileiras.
O curioso é que esse caranguejo também ocorre em outras ilhas brasileiras, como Fernando de Noronha e São Pedro e São Paulo, e também em ilhas do Oceano Pacífico.
- É difícil explicar - reconhece Ruy Valka, do Departamento de Botânica do Museu Nacional, um dos maiores especialistas em Trindade.
- Mas o fato é que se trata de um gênero endêmico de ilhas oceânicas.
A ilha é também o maior ponto de desova das tartarugas verdes no Brasil. Esses animais, que chegam a pesar 200 quilos e têm até 1,30 metro de casco só desovam em ilhas oceânicas. E Trindade parece ser a preferida: são aproximadamente 5 mil desovas por temporada - não por acaso o Projeto Tamar mantém sempre pesquisadores por lá.

O Globo, 14/10/2008, Ciência, p. 35
UC:APA

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