Os sem-floresta

Época - http://epoca.globo.com - 13/04/2014
Mesmo longe da floresta, o vigia Gilberto do Nascimento Silva não abandona a camiseta camuflada, a bermuda cáqui e o tênis rasgado pelas andanças no mato. Natural para quem passou quase metade da vida vestido assim. Silva dedicou 20 anos dos seus 43 à profissão de vigia do Parque Nacional da Amazônia, um imenso tapete verde no Sudoeste do Pará, apontado pelos conservacionistas como uma das áreas de maior biodiversidade do Brasil. Seus dias vinham sendo os mesmos desde 1993: acordava por volta das 5h, percorria as trilhas para conferir se as câmeras fotográficas espalhadas pela mata funcionavam de acordo, voltava para fazer o almoço e retornava para as caminhadas. "Os bichos estão sempre em movimento", diz. "Não podia ficar parado em casa, vai que tem uma novidade".

No começo de março, entretanto, Silva quebrou a rotina. Sem receber o salário do governo federal desde novembro do ano passado, desistiu de continuar seus afazeres de sempre. Silva e outros três ex-vigias do parque trabalharam durante cinco meses de graça. Tinham esperança de que seus contratos com uma empresa terceirizada pelo governo fossem renovados. "O tempo está correndo e ninguém resolveu nada. A gente fica naquela ilusão porque gosta do que faz, mas temos família para sustentar", afirma. Agora que o seguro desemprego está prestes a acabar, e sem nenhuma sinalização de quem serão recontratados, eles decidiram abandonar a área e voltar para onde vivem suas famílias, a cidade de Itaituba, no sudoeste do Pará.

O órgão do governo federal responsável pela gestão e políticas para as unidades de conservação no Brasil é o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), criado em 2007 e ligado ao Ministério do Meio Ambiente. Em nota, a assessoria de imprensa do ICMBio informou que o contrato com a empresa que fazia a vigilância do parque não foi renovado no ano passado porque pediu um valor acima do definido pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Uma nova empresa foi escolhida por licitação, mas, devido a um imbróglio judicial, o processo se encontra pendente. "A recontratação é uma questão de dias", diz a nota, enviada em 18 de março. A decisão judicial (assim como as contratações) ainda não saiu.

Silva e os três vigias protegiam uma área de mais de 1 milhão de hectares de floresta densa do Parque Nacional da Amazônia, acessada pela erma Rodovia Transamazônica ou pelo rio Tapajós. Raramente se cruza com um policial pela região. Seus principais inimigos eram os garimpeiros e madeireiros ilegais. "Tem muito ouro e diamante ali dentro", afirma Silva. "Se um invadir, um monte de gente vai atrás". Silva chegou a ser ameaçado de morte depois de denunciar o corte de árvores nativas para o Ibama. Ajudou então a desenvolver um código cifrado para se comunicar com o órgão de fiscalização, uma forma de evitar que os recados, todos transmitidos via uma central de rádio, fossem compreendidos se interceptados.

Debaixo d'água

O Parque Nacional da Amazônia foi criado em fevereiro de 1974, logo depois da construção da Rodovia Transamazônica, a BR-230. Para a inauguração da estrada, esteve em suas terras o então presidente da época, o general Emílio Médici. Às margens do rio Tapajós e berço de várias espécies ameaçadas de extinção, como a onça pintada, o tamanduá-bandeira e a ararajuba, é uma região importante para a conservação. Os últimos levantamentos identificaram 337 espécies de aves, 42 mamíferos, 51 anfíbios e 49 répteis. Pela biodiversidade, foi inscrito em dezembro de 2000 pela UNESCO na Lista do Patrimônio Mundial.

Uma lei de junho de 2012 reduziu a área do Parque Nacional da Amazônia em 6,7%. Os 4,2% desse total foram destinados a famílias que já moravam na área antes de ela virar parque. Os outros 2,5% das terras, inclusive parte da Transamazônica, serão alagados por uma das 40 hidrelétricas que o governo federal planeja para a região, a usina São Luiz do Tapajós. "Depois que desafetou o parque para criar a barragem, o governo está deixando de investir ali. O último ato foi a não renovação do nosso contrato", diz Silva. De lá para cá, a visitação caiu. Em 2011, mais de 2 mil pessoas estiveram no parque. No ano passado, só 683. Este ano os portões estão fechados para os visitantes. Não há bilheteria nem sede instaladas. "O parque é da população. Minha vontade era mostrar para o mundo inteiro que isso aqui existe".

De todos os vigias, Silva é o mais apaixonado pelas riquezas naturais do parque. Tanto que conduziu sua vida em função delas. Está sempre com sua câmera fotográfica a tiracolo (comprou a primeira em 1995, ainda de filme, e já trocou de modelo quatro vezes, sempre com dinheiro próprio). Tudo ali tem um dedo dele. Nos 20 anos de dedicação, construiu as casas de madeiras usadas pelos vigias, além das que servem de base para os pesquisadores. Abriu as cinco trilhas existentes, um total de 20 quilômetros de extensão.

Na sua casa em Itaituba, Silva guarda milhares de fotografias no computador. São pastas e pastas de imagens e vídeos feitos por ele ou pelas câmeras que esconde no parque, espécies de armadilhas que disparam, por sensor, toda vez que um animal passa na frente da lente. "Isso aqui é uma relíquia", afirma. "No futuro, esses bichos podem nem existir mais, mas as pessoas vão ver os registros no meu arquivo". Ele diz que, quando soube da possibilidade de não mais trabalhar ali, caiu em depressão. "Fiquei dois meses sem conseguir andar sozinho", diz, e logo emenda um choro. Mesmo que o processo judicial para a contratação de uma empresa de vigilância acabe logo, o destino de Silva e dos outros vigias não estará garantido. O ICMBio afirma que "a seleção dos vigilantes são atribuições da empresa vencedora da licitação, e não cabe ao órgão interferir".



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