Patrimônio mundial

O Globo, Amanhã, p. 10-13 - 17/09/2013
Patrimônio mundial

CLEIDE CARVALHO
cleide.carvalho@sp.oglobo.com.br

-CORONEL JOSÉ DIAS, PIAUÍ
No Sul do Piauí, a Caatinga parece existir para provar que a natureza molda o homem, e não o contrário. Milhões de anos atrás, a região foi um fundo de mar. Da movimentação das placas tectônicas emergiu um platô que, aos poucos, foi ocupado pelo homem. Enquanto a erosão esculpia vales, cânions e chapadas, o homem primitivo desenhava nas rochas pinturas e gravuras surpreendentes. A capivara riscada na pedra imprime sentido ao nome do Parque Nacional da Serra da Capivara, embora não se tenha registro do animal por ali.
Com 1.340 sítios arqueológicos e paleontológicos em seus 129 mil hectares - dos quais apenas 75 foram escavados - o parque se diferencia de seus pares nacionais.
Primeiro porque as portas estão abertas à visitação pública em 172 sítios, com circuitos que incluem infraestrutura turística de qualidade. Segundo porque no lugar de isolar para preservar, o que se busca na Serra da Capivara é agregar as comunidades do entorno num projeto de vida que inclui, além de seres humanos, onças pintadas, veados caatingueiros, macacos-prego, caititus, tamanduás, tatus, lagartos e mocós, só para citar alguns.
Agora, com o aval da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), começa a ser desenhado um projeto que transformará a área em geoparque, o que significa ir além de um parque nacional.
Para integrar a Rede Internacional de Geoparques da Unesco, a área que abriga sítios geológicos relevantes, belos e raros, deve também servir ao desenvolvimento socioeconômico local.
As propostas levadas à Unesco devem ser conjuntas: autoridades, comunidades, empresas locais e entidades têm que se aliar na construção das práticas de conservação e desenvolvimento sustentável.
A criação de um geoparque nada tem a ver com apropriação de terras pelo Estado. Cada um segue dono do que tem. O modelo permite uso e ocupação da área destinada ao desenvolvimento sustentável da região, com os moradores envolvidos na conservação do patrimônio geológico. A renda virá de projetos de geoturismo e do ecoturismo.
Acesso difícil
O trabalho, contudo, é árduo. Até hoje não ficou pronto o aeroporto do município de São Raimundo Nonato, cujas obras foram iniciadas há mais de 10 anos para facilitar o acesso turístico ao parque, localizado a 300 km de Petrolina (PE) e a 540 km de Teresina, a capital do estado. Ou seja, ainda hoje para chegar até o paraíso cravado numa das áreas mais quentes do semiárido - a temperatura chega a 45oC e a média da umidade relativa do ar é de 20%, muito próxima a de desertos - é preciso horas de estrada.
Sem o aeroporto, a chegada de turistas fica aquém do potencial de atração das rochas esculturais que formam o conjunto de serras - Talhada, Vermelha, Branca e Desfiladeiro da Capivara - e permitem, em plena Caatinga, a existência de microclimas onde sobrevivem exemplares da Mata Atlântica.
- Vamos trabalhar para a criação do geoparque. É a forma para desenvolver a região e trazer turismo - afirma Rosa Trakalo, da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade científica e filantrópica que administra o Parque Nacional da Serra da Capivara em sistema de cogestão com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A afirmação é um aval de que o projeto sairá do papel. Rosa é o braço direito de Niède Guidon, a arqueóloga que construiu quase tudo o que se vê por ali.
- Este ano completamos 40 anos de pesquisa e não paramos de achar coisas novas. Agora mesmo entramos com pedido para abrir 13 novos sítios arqueológicos para visitação - diz Niède, 80 anos, que segue acompanhando de perto novas escavações, inclusive fora do perímetro do parque.
Niède soube da existência de inscrições em rochas no Piauí em 1963, mas foi viver na França e só retornou à região na década de 70. As pesquisas, feitas numa parceria científica entre França e Brasil, começaram em 1973. Foi a arqueóloga também quem defendeu na Unesco, a pedido do governo brasileiro, a transformação do parque em Patrimônio Cultural da Humanidade, reconhecido em 1991.

Negócio sustentável
Mas a arqueóloga fez bem mais do que revelar pinturas e gravuras rupestres no lugar do que pode ter sido o berço do homem nas Américas. Buscou ajuda na Suíça para elaborar um projeto de desenvolvimento capaz de vencer a pobreza da região. Diante da farta presença de argila, a fabricação de cerâmica foi uma das alternativas apresentadas. A arte foi ensinada a alunos em cinco escolas criadas pela Fumdham nos municípios do entorno. Hoje, 29 artesãos - todos homens - dão forma a utensílios domésticos e peças de decoração que levam as gravuras rupestres presentes no interior do parque.
- Sem trabalho, os homens iam embora.
Deixavam mulheres e filhos, criando a figura das viúvas de maridos vivos. O trabalho na cerâmica mudou a perspectiva - conta a administradora de empresas Girleide de Oliveira, 48 anos, que comanda a cerâmica. O padrão de qualidade internacional e o modelo de negócio sustentável - a cerâmica utiliza argila retirada na limpeza de açudes e gás no lugar de lenha no forno - permitiram à empresa ingressar no Programa Caras do Brasil, do Pão de Açúcar, que tem como objetivo inserir pequenos produtores no mercado. Hoje, a rede absorve 30% da produção com a venda de seis tipos de produtos.
-As encomendas regulares nos dão a possibilidade de planejar. Sei que essa venda é certa e cobre nossos custos - diz Girleide.
Enquanto os homens moldam a argila, as mulheres fazem as camisetas com motivos do parque vendidas a turistas, operam o albergue e o restaurante instalados pela Cerâmica Serra da Capivara no sítio Barreirinho. A Fumdham também escolheu apenas mulheres para ocupar as guaritas do parque.
- Niède foi dando trabalho às pessoas. Fez coisas que permitiram que elas vivessem sem precisar caçar - diz Raimunda da Silva Paes Landim, que trabalha no parque e mora no sítio do Mocó, comunidade vizinha aos paredões da Pedra Furada onde a maioria das pessoas tem sua renda vinculada ao projeto.
A caça é a principal ameaça ao parque. É a causa da quase extinção do tatu-bola, o mascote da Copa de 2014. Se no passado ele era caçado para matar a fome, agora é consumido como "iguaria". Chega a ser vendido a R$ 100. Ainda hoje, apesar das 29 guaritas e dos 34 guardas parques que protegem a área, vez ou outra alguns caçadores ainda são flagrados.
O gestor do parque, Fernando Tizianel, do ICMBio, diz que ao aumento do turismo é fundamental para assegurar a preservação. - A presença de turistas inibe a invasão e fortalece a unidade. Temos 214 km de perímetro, nunca poderemos ter vigilantes em todo lugar. Quando vê algo errado, o turista avisa. Sem ele, os parques ficam fragilizados - explica.
Outro risco para os animais é decorrente da falta de cursos d'água permanentes dentro do parque. Antigamente, os animais migravam para a área onde está hoje o Parque Nacional da Serra das Confusões, o maior da Caatinga, a 80 km. Foi idealizado um corredor de Biodiversidade entre os dois, mas a criação de assentamentos da reforma agrária entre as áreas protegidas interrompeu o fluxo de Fauna.
Como as pessoas da região têm cultura de caça, não é difícil imaginar o que acontece. Para Tizianel, a criação de geoparque é uma segunda e mais abrangente oportunidade de vencer a pobreza da região.
- A beleza geológica atrai outros tipos de olhares. É possível explorar turismo de aventura e cicloturismo, por exemplo - afirma.

O Globo, 17/09/2013, Amanhã, p. 10-13

http://oglobo.globo.com/amanha/serra-da-capivara-no-piaui-pode-ingressar-na-rede-internacional-de-geoparques-da-unesco-9995229
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