Pequenas maravilhas dos mares do Rio

O Globo, Revista O Globo, p.22-26, 28 - 20/03/2005
Pequenas maravilhas dos mares do Rio

Por Ana Lucia Azevedo. Foto de Marizilda Cruppe

Carioca pensa que sabe tudo de praia. Ilusão. O que existe além das ondas é terra incognita para a imensa maioria dos banhistas que a cada fim de semana disputam as areias da Zona Sul. Provas disso estão bem à frente de Ipanema, nas ilhas Cagarras, Rasa e Redonda. Cumes de antigas montanhas abraçadas pelo mar, estas ilhas tornaram-se o último porto seguro para a vida marinha da cidade. Representam uma fonte inexplorada e ameaçada de biodiversidade. Cientistas descobriram lá novas e coloridas espécies de animais marinhos e estão convencidos que existem muitas outras a encontrar. Um grupo de pesquisa do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro mergulhou no mundo das esponjas. Esses animais, que à primeira vista parecem vegetais, fazem dos costões das ilhas multicoloridos mosaicos aquáticos, segredos que o mar do Rio só agora começa a revelar.

Apenas cinco quilômetros de mar separam Ipanema das três Cagarras - Comprida, Palmas e Cagarra. As ilhas Rasa (a do farol) e Redonda ficam um pouco mais além, a cerca de dez quilômetros da costa. Mas mesmo tão perto da cidade, elas permanecem pouco conhecidas. Pesquisa-se mais o longínquo arquipélago de Fernando de Noronha do que as mais cariocas das ilhas. Por isso, o colorido mundo marinho que elas abrigam ainda é capaz de surpreender.As criaturas do complexo das Cagarras - incluídas aí também Rasa e Redonda - são sobreviventes. Teimam em resistir à poluição e à falta de preservação. Há numerosas espécies de peixes, visitas freqüentes de grupos de golfinhos, tartarugas solitárias e mesmo uma ou outra baleia vez por outra busca refúgio por lá. Isso sem falar nas colônias de aves marinhas, como gaivotas, tesourões e atobás. Mas são os animais que fixam morada nos paredes submersas das ilhas que melhor representam o quão desconhecida é a biodiversidade das Cagarras.
As cores intensas do fundo mar
Há esponjas, corais, leques e lesmas do mar, cnidários, estrelas, ouriços, anêmonas e outros bichos dos quais muita gente nunca ouviu falar e que colorem o fundo mar. O grupo do biólogo marinho Guilherme Muricy, do Laboratório de Poríferos (designação científica das esponjas) do Museu Nacional, listou cerca de 40 espécies de esponjas nas Cagarras, das quais ao menos cinco são novas para a ciência. Mais do que isso, algumas delas só foram achadas lá e em nenhum outro lugar da Terra. Dessas cinco, só uma já foi cientificamente descrita. As demais estão em estudo. O interesse pelas esponjas está longe de ser mera curiosidade. Elas despertam atenção em todo o mundo por seu potencial para a indústria. Substâncias produzidas por elas prometem levar a medicamentos mais eficientes. E sua estrutura inspira novos materiais, como fibras óticas para telecomunicações.- É impressionante encontrar tamanha diversidade nas Cagarras, se levarmos em conta o grau de degradação das águas costeiras do Rio. Calculamos que existam até 70 espécies de esponjas por lá. Há muito o que descobrir - diz Muricy.
Vizinhança colorida: anêmonas compartilham a rocha com a exuberante esponja vermelha

As mil e uma utilidades das campeãs de resistência dos mares
Matérias-primas para medicamentos e biochips. Inspiração para estudos das cobiçadas células-tronco e fibras óticas. As esponjas têm bem mais do que mil e uma utilidades. Já está longe o tempo em que a única coisa que se fazia com elas era bucha de banho. Campeãs de sobrevivência em alguns dos lugares mais extremos dos oceanos, elas freqüentam, com freqüência cada vez maior, laboratórios de pesquisa.
O chefe do Laboratório de Proliferação e Diferenciação Celular da UFRJ, Radovan Borojevic, pioneiro nos estudos de células-tronco no Brasil, é dos que se encantaram pelas esponjas. Elas foram o tema de sua tese de doutorado:
- As esponjas podem se regenerar por toda a vida porque dispõem de um estoque considerável de células equivalentes às células-tronco humanas. Seu estudo é importante para a compreensão de mecanismos básicos da diferenciação celular.
E quando se é uma esponja, regenerar-se por toda vida significa sobreviver, provavelmente, centenas de anos. Outra linha de pesquisa é a investigação de moléculas com ação farmacológica. Como não se movem, as esponjas dependem de um arsenal químico para evitar predadores. Tais armas biológicas naturais representam um vasto campo para o desenvolvimento de medicamentos. O primeiro agente antiviral contra herpes foi isolado de uma esponja. Estão em testes remédios contra câncer, malária e antibióticos baseados nesses animais. Seu esqueleto de sílica inspirou novas estratégias para design de fibra ótica e semicondutores. Borojevic frisa que se investiga a chance de produzir um chip de sílica de esponja.
Elas surgiram na Terra há mais de 500 milhões de anos. Primitivas, são os mais simples animais multicelulares do mundo. E por viverem imóveis, por muito tempo imaginou-se que eram plantas. Mas por serem tão antigas, as esponjas puderam se diferenciar em pelo menos 10 mil espécies, com numerosas combinações de cor, forma, textura e tamanho. Algumas medem poucos centímetros. Outras podem ser maiores do que carros. Porém, nenhuma se parece remotamente com Bob Esponja. O simpático desenho animado, a esponja mais famosa de que se tem notícia, está mais para bucha de cozinha do que para habitante do mar.

Cientistas vêem nas
Cagarras o último refúgio para a vida marinha que um dia povoou as águas junto às praias e aos costões rochosos do Rio. A vizinhança ingrata do emissário submarino de Ipanema e da poluída Baía de Guanabara faz com que a fauna das ilhas seja muito menos diversificada e abundante do que a encontrada em águas mais limpas. É também por isso que pesquisadores, como os do grupo de Poríferos do Museu Nacional, estudam as ilhas para medir a degradação do litoral da cidade.
Para se alimentar, as esponjas filtram a água do mar que atravessa seus corpos. Não causa espanto que sejam ótimas indicadoras do impacto da poluição. Junto com Leandro Monteiro e Fernando Moraes, Guilherme Muricy coleta e analisa esponjas em busca de pistas sobre a saúde do mar, num trabalho financiado por CNPq e Faperj. Um estudo de Monteiro foi o primeiro trabalho científico específico sobre as esponjas das Cagarras. Muricy, que orientou o trabalho, espera encontrar maior diversidade nas ainda menos estudadas Rasa e Redonda.
Longe da poluição, perto do paraíso
- O fundo do mar junto à Rasa é lindo. Por vários metros as esponjas formam mosaicos em tons de rosa, amarelos, alaranjados, roxo e vermelho. Uma esponja pode abrigar no próprio corpo todo um ecossistema, com algas, ouriços, anêmonas, estrelas-do-mar - diz o pesquisador.
A título de comparação, a dez quilômetros dali, na Baía de Guanabara quase não há mais esponjas nem os ecossistemas associados a elas.
Quando as correntes marinhas afastam a poluição da Baía e do emissário para longe, um mergulho junto às ilhas torna-se revelador. A cerca de 20 metros de profundidade, num dia de água roxa, fenômeno que deixa transparentes águas normalmente turvas, os cientistas coletaram em menos de uma hora 12 espécies de esponjas, de cores, formas e texturas variadas. Algumas delas, como a esponja-de-fogo (Tedania ignis), macia e de intenso tom laranja, têm ação antimicrobiana reconhecida.
- Encontramos aqui uma fauna marinha muito diferente de outros pontos do Rio. É preciso conhecê-la melhor - afirma Muricy.
Guilherme Muricy mostra uma esponja-de-fogo (Tedania Ignis) que acabara de coletar na rasa

Peixe, como se sabe, não tem endereço fixo.
Mas para os cardumes que atravessam essa parte do Atlântico, as ilhas costeiras do Rio representam uma espécie de oásis, onde encontram alimento e abrigo. O pesquisador Gustavo Nunan, do Departamento de Vertebrados do Museu Nacional, explica que dois grandes grupos de peixes podem ser encontrados nas águas junto às Cagarras, Rasa e Redonda. O primeiro inclui anchovas, sardinhas verdadeiras, manjubinhas, xereletes, pescadas-bicudas (parentes das barracudas) e tainhas. São chamados peixes pelágicos, que não têm parada certa e vivem viajando.
O segundo grupo inclui peixes territoriais, habitantes das águas próximas aos costões das ilhas. Há espécies nobres, como garoupas, badejos e sargo-de-dentes. Quando as ilhas não sofriam tanto com a poluição, havia até mesmo meros, ameaçados de extinção e cobiçados pela carne de primeira.
- As ilhas perderam muito da abundância e diversidade de cardumes. Ainda assim são o que temos. Precisamos protegê-las - diz Nunan.
Sem comida, tubarões foram embora
Um sinal da degradação é o desaparecimento dos tubarões. No topo da cadeia alimentar, eles se tornaram raros à medida que os cardumes que caçavam escassearam devido à poluição e à pesca.
- Tubarões martelo, mako, galhas-pretas e arraias jamantas eram comuns, mas agora são raros. Falta alimento para eles - explica Nunan. Ainda comuns são as lulas. Grandes cardumes delas são atraídos pela água fria. O fotógrafo especializado em meio ambiente e mergulhador Carlos Secchin, que conhece como poucos o mar do Rio, concorda com Nunan. Acostumado a mergulhar nas ilhas, Secchin diz que, apesar da poluição, existe muita coisa para ver.
- O carioca conhece pouquíssimo seu próprio mar - afirma.
As ilhas costeiras do Rio - Cagarras, Rasa, Redonda, do Meio e Tijucas - terão mais proteção se o Senado aprovar o projeto de Fernando Gabeira (PV-RJ) que as transforma no primeiro monumento natural federal do país. Idealizador do projeto aprovado na Câmara, o biólogo do Ibama Breno Herrera diz que seria possível aumentar a fiscalização, regulamentar a pesca e incentivar o ecoturismo.
- Queremos que o Rio aproveite o patrimônio que tem e desconhece - conta Herrera.


Como Chegar
O Rio não conta com programação regular de visitas às ilhas. Mas há operadoras que oferecem passeios e alugam barcos. Duas das operadoras que oferecem visitas às ilhas, com saídas da Marina da Glória são: Marlin Yatch Tour: 2225-7434. Saveiro's Tour: 2224-6990/ 2252-1155/ 2224-0313.

O Globo, 20/03/2005, Revista O Globo, p. 22-26, 28
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