Pisando em fósseis

O ECO - www.oeco.com.br - 19/12/2004
Não é exagero. Em Filadélfia, no Tocantins, há lugares onde você pisa em fósseis. São troncos, caules e folhas de plantas de 260 milhões de anos que petrificaram e agora se confundem com pedras banais. Os moradores da região as apelidaram de "pedras de pau" e chamaram de doido o geólogo goiano Perseu Vaz Barbosa Matias, que apareceu por lá na década de 90 oferecendo 35 reais por uma tonelada de fósseis.

Ele era dono da Mineração Pedra de Fogo Ltda. e tinha licença para explorar as jazidas de sílica da região, não os fósseis. O esquema foi descoberto e a Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) encaminhou em 2000 um relatório ao Ministério Público exigindo providências. Coincidência ou não, em outubro do mesmo ano o Governo do Tocantins criou o Monumento das Árvores Fossilizadas, uma unidade de conservação de 32 mil hectares que engloba dezenas de fazendas onde foram encontrados os fósseis. Apesar dos saques, é a maior floresta petrificada do período Permiano no mundo. Existem parques semelhantes no Rio Grande do Sul e no estado americano do Texas, mas nenhum tem fósseis tão bem preservados como os de Filadélfia.

Uma quantidade significativa deles está na fazenda Buritirana. O filho da proprietária, Rosiel, é quem sabe o caminho. Ele nos guia por um cerrado de vegetação espaçada, sem trilha e com chapadões ao fundo. Logo depois de cruzar com um rebanho, chegamos ao sítio paleontológico. É bem verdade que, se ninguém avisa, você não percebe. Não há marcações, setas ou cordas em volta dos fósseis e, como foi dito, eles se confundem com pedras. A maioria é branca e pesada. A curiosidade leva você a querer tocá-los, vê-los de perto. Tem horas que dá para brincar de quebra-cabeça, já que alguns se encaixam em outros perfeitamente, formando galhos e troncos. Olhando com atenção, é possível identificar as fibras das árvores e detalhes que lembram xaxins.

Grande parte do material é de fósseis de samambaias do gênero Psaronius, que não existe mais. As samambaias pré-históricas eram árvores gigantes, chegavam a ter 10 metros de altura. Algumas de suas folhas ficaram impressas nas rochas da região. Os fósseis foram preservados graças à presença de sílica no ambiente, que infiltrou dentro das plantas e conservou seus formatos. A fossilização bem feita permite observar os grãos de pólen, os tecidos e a estrutura interna dos organismos. O fenômeno de fossilização é raro. Acredita-se que menos de 1% de todas as espécies que já existiram na Terra foram fossilizadas.

Segundo o paleobotânico Roberto Iannuzzi, do Departamento de Paleontologia e Estratigrafia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na região tocantinense de Filadélfia existiam também fósseis de vegetais primos das coníferas (Cordaitales) e de cavalinhas (Equisetales), mas esse material foi vendido para cientistas alemães, que publicaram estudos na revista científica Review of Paleobotany and Palynology. Na Alemanha o comércio de fósseis é legal, e os pesquisadores teriam comprado as peças de contrabandistas.

Mas há pesquisas que só nós podemos realizar. Como brincou o professor Roberto Iannuzzi, "as rochas, graças a Deus, eles não levam". Ele se refere aos chapadões do parque, que junto com os fósseis fornecem pistas para a reconstituição do clima e da paisagem que existia na região há 260 milhões de anos. São os fósseis de plantas, e não os de animais, que permitem investigar os paleoclimas. "Florestas são indícios de um clima quente e úmido, uma vegetação mais pobre sinaliza a existência de um deserto", explica o paleobotânico.

O alto índice de samambaias indica que a região central do Tocantins era uma planície costeira com um farto sistema hídrico durante o período Permiano. O clima era tropical, mas apenas com um estudo de campo mais detalhado será possível concluir se o ambiente era amazônico ou parecido com o Cerrado. Pode parecer que pouco mudou por ali nos últimos milhões de anos, mas os chapadões indicam o contrário. Eles surgiram depois das árvores fossilizadas e seriam dunas de deserto que se transformaram em rochas. Mais um sinal do valor histórico do parque.

Em 2002, o professor Roberto Iannuzzi participou do levantamento geológico e paleontológico do Monumento das Árvores Fossilizadas. Ele afirma que os fósseis que sobraram têm grande valor científico e cultural. "Nós temos o direito de saber tudo sobre o Brasil e para isso é necessário preservar os registros. No mínimo, os fragmentos têm valor educacional". Rosiel, que aos 38 anos tem planos de trabalhar como guia no parque, concorda: "Eu não sei de nada, mas meus filhos vão se formar. Eles vão precisar (dos fósseis) para estudar e não vão ter. Por mim, tem que conservar".

O parque ainda não tem sede nem cerca, mas conta com dois guardiões: a historiadora Renata Cristina Assunção, diretora do Monumento, e o fiscal Eli de Almeida. Enquanto não sai o plano de manejo do Monumento, que está em fase de licitação, eles informam os moradores sobre a importância dos fósseis e mantêm os olhos abertos. No caminho para o sítio paleontológico da fazenda Buritirana, Eli percebeu marcas recentes de pneus. Na volta, Renata perguntou à dona da propriedade quem tinha estado ali e com que objetivo. Segundo Eli, os moradores já aprenderam a alertar sobre estranhos que visitam os fósseis. Há dois anos, foi realizada uma campanha de educação ambiental com enfoque no combate à exploração das "pedras de pau". 7374

Renata e Eli também percorrem a região atrás de grutas, cachoeiras ou pinturas rupestres que possam enriquecer o potencial turístico do Monumento. Eles vão sugerir aos responsáveis pelo plano de manejo, por exemplo, que uma trilha seja aberta até a cachoeira da Fazenda do Escondido, onde há fragmentos de fósseis por toda parte, inclusive na própria queda d’água. Além de apontar que tipo de atração turística poderá ser explorado na região, o plano de manejo também determinará as terras que deverão ser desapropriadas (toda a área do parque pertence a proprietários rurais) e onde será proibido criar gado ou cultivar lavouras. Renata conta que alguns fósseis foram danificados por queimadas ou pisadas de animais.

A preservação dos fósseis pode gerar renda para a população local. "Em vez de vender patrimônio a preço de banana, preservá-lo pode melhorar a qualidade de vida", diz Roberto Iannuzzi, que cita como exemplo o município de Souza, na Paraíba, onde foram encontradas pegadas de dinossauros. Hoje a região é conhecida como Vale dos Dinossauros e o turista vê os rastros dos gigantes exatamente onde eles foram encontrados.

Existem diferentes formas de conciliar turismo e preservação de fósseis. Parte do material sempre deve ser guardada para fins científicos e exposta em condições ideais, como as oferecidas por museus. Mas é igualmente válido mostrar como os fósseis ocorreram na natureza. Uma solução adotada por países europeus, como Inglaterra e Alemanha, foi construir museus sobre alguns importantes sítios arqueológicos e paleontológicos. Mas um telhado sobre os fósseis ou uma proteção em volta deles já seria eficaz. Também isso caberá ao plano de manejo definir.

O Tocantins é um estado rico em fósseis, mas também em projetos desenvolvimentistas. O Monumento das Árvores Fossilizadas vai ter que dividir espaço como a ferrovia Norte-Sul. Os trilhos passarão dentro do parque e a menos de um quilômetro do sítio paleontológico da fazenda Buritirana, como foi aprovado pelo Relatório de Impacto Ambiental da obra. A Sociedade Brasileira de Paleontologia está tentando incluir paleontólogos nas equipes que elaboram esse tipo de relatório, para evitar futuras perdas de patrimônio.
UC:Monumento Natural

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