Posto de fronteira na selva fecha às 20h

FSP, Poder, p. A18-A19 - 02/06/2013
Posto de fronteira na selva fecha às 20h
Falta de efetivo noturno em área vizinha a Peru e Bolívia compromete combate ao narcotráfico e à imigração ilegal
Folha acompanhou a Operação Ágata 7, maior mobilização de militares e civis no país desde a Segunda Guerra

PATRÍCIA CAMPOS MELLO ENVIADA ESPECIAL À REGIÃO NORTE

Na semana passada, um grupo do Exército brasileiro patrulhava de barco o rio Acre, na tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru. Os militares pararam uma canoa em busca de coca ou contrabando. Enquanto vistoriavam o barco, o boliviano Bento Gonzalez atravessava tranquilamente a pé, atrás deles, pelo igarapé que separa o Peru da Bolívia. Tinha ido comprar macarrão no Peru.

"Tem documentos?"

"Não, não é preciso. Sempre cruzo para o Peru e para o Brasil sem documentos."

Na fronteira entre as cidades de Bolpebra (Bolívia), Iñapari (Peru) e Assis Brasil, Brasil, não há fiscalização. A única vistoria ocorre no posto da Receita Federal e Polícia Federal em Assis Brasil --mas, depois das 20h, não há ninguém trabalhando lá.

"Não temos efetivo suficiente para fazer o turno da noite", diz o delegado Flávio Henrique de Avelar, da Polícia Federal do Acre. Cerca de 20% da cocaína do mundo é produzida na Bolívia, 42% no Peru e 38% na Colômbia.

Assis Brasil, por onde entram também os refugiados haitianos, é uma boa amostra do desafio que representa patrulhar os 16,9 mil quilômetros de fronteira.

As Forças Armadas iniciaram em 18 de maio a Operação Ágata 7, sua maior mobilização desde a Segunda Guerra Mundial --cerca de 25 mil militares e 10 mil civis de órgãos como a Polícia Federal espalhados pela fronteira. A meta é desenvolver uma ação coordenada entre Forças Armadas, PF, Força Nacional e Polícia Rodoviária e inibir tráfico e outros crimes.

A Folha acompanhou quatro missões da operação, no Acre e em Rondônia, na fronteira com a Bolívia e o Peru, durante uma semana. Ficou claro que policiar a fronteira é um desafio enorme.

Há acordos para estimular a integração das populações nas fronteiras e muitas vezes não se fiscaliza na divisa. Mas a ideia é que a vistoria se dê a alguma distância dali, o que muitas vezes não ocorre.

Um bom exemplo é a ponte que liga Puerto Evo Morales, Bolívia, e Plácido de Castro, Brasil. Brasileiros cruzam a fronteira para comprar nas lojas baratas dos bolivianos, e os bolivianos, para usar escola e hospital no Brasil. Não há nenhum tipo de fiscalização. Entra e sai quem quer.

O primeiro posto de fiscalização 24 horas fica a 70 quilômetros dali e, antes dele, há estradas de terra que permitem desviar da vistoria.

No rio Abunã, que separa os dois países, é a mesma coisa. Segundo policiais, passa gente em canoas levando pasta-base de coca. Uma caixa de cigarros, com 500 maços, comprada por R$ 350 na Bolívia, sai por R$ 800 no Brasil.

"Dá uma olhada aqui nas margens do rio, não tem nada, qualquer um pode passar; a gente não tem efetivo para estar em todos os lugares", diz o tenente André Lima Costa, 28 anos. "É uma utopia a vigilância de 100% da fronteira".

Patrulhar as fronteiras não é atribuição das Forças Armadas. Isso cabe à PF. Mas desde 2010 leis dão às Forças poder de policiar e prender em flagrante na faixa de 150 km a partir da fronteira.

"Nós apreendemos três tratores e motosserras de madeireiros ilegais", contou o tenente Rogério Carvalho, que chefiou missão em Mapinguari. "Mas não estamos aqui nos outros 360 dias do ano."

A reserva ambiental federal Mapinguari tem 18 mil quilômetros quadrados, quase do tamanho de Sergipe. Mas só dois agentes do ICMBio fazem a fiscalização. Resultado: todo dia sai do parque um caminhão carregado de ipê, jequitibá, cedro ou roxinho. Na cidade de Extrema, perto do parque, há 6.000 habitantes --e 38 madeireiras.

Uma das principais apostas para a fiscalização é o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras, conjunto de radares cujo valor total deve chegar a R$ 12 bilhões.

"Nossa fronteira é muito extensa e os rios não são obstáculo, tudo isso facilita a entrada de drogas", diz o general Ubiratan Poty, da 17ª brigada de infantaria de selva.

"Nem os EUA, que só têm 3.100 km de fronteira com o México e não têm selva, conseguem evitar que os mexicanos entrem", diz um oficial.


Macarrão vira iguaria, com larva de sobremesa
Vida de militar na Amazônia é dura, mas posto na fronteira é cobiçado
Servir em pelotão na 1ª linha de defesa do país e receber um adicional atraem oficiais para locais remotos

Depois de dias sobrevivendo na selva à base de farofa com sardinha em lata, o sargento Lucas Rufino aprendeu uma receita gourmet que nem precisa de fogueira: macarrão instantâneo de dois litros.
Em uma garrafa de água, basta pôr o macarrão, adicionar o tempero de saquinho e sacudir bastante. "Fica molinho, você nem percebe que está frio", ele conta. De sobremesa, outra iguaria: o gongo, a larva branca que fica dentro do coco babaçu. "O segredo é arrancar a cabeça com os dentes, aí a larva para de se mexer", diz. "Tem gosto de coco, é uma delícia."
Rufino passou 25 dias longe de casa na operação Curare, teve folga de cinco dias, e voltou para a selva. Já está há seis dias na reserva de Mapinguari, em Rondônia, na Operação Ágata 7.
A vida dos militares que servem na Amazônia é dura, mas trata-se de um dos postos mais cobiçados. "Ser um tenente de 24 anos, comandando um pelotão na primeira linha de defesa do país na selva é um sonho", diz o capitão Renato Ximenes.
Nas patrulhas de selva, a única maneira de se locomover é a pé. São 25 km por dia no meio da mata, carregando mochilas com até 40 kg.
Os soldados recebem uma ração comercial: um saco plástico com pé de moleque, bolacha água e sal, macarrão instantâneo, um saco de farofa e uma lata de sardinhas.
No fim do dia, os militares abrem uma clareira para montar o acampamento. Muitos preferem não usar as barracas, que eles chamam de iglus. "Se passa uma matilha de queixadas à noite, não sobra nada", diz o capitão Ximenes. Os militares dormem nas redes de selva, que vêm com mosquiteiro.
Tomar banho é outro desafio. O mergulho nos igarapés soa idílico, até que se ouçam as histórias sobre as arraias. Ficam camufladas no chão de areia e quem pisa leva uma ferroada dolorosa.
Há outros riscos. Em algumas regiões, os soldados contam mais de dez malárias. A dengue é comum. E tem também a leishmaniose. Transmitida pela picada do mosquito flebótomo, transforma-se em uma ferida crônica e vai crescendo. Os soldados ficam afastados um mês e recebem mais de 50 injeções.
Para os soldados na Amazônia, o mais difícil é ficar dias longe de casa, sem acesso a celular ou internet. "Quando meu filho nasceu, demorei dois meses para vê-lo, estava em Santa Rosa dos Purus, aonde só se chega de barco ou aviãozinho", conta o cabo Wesley Araújo.
No índice de lonjura "Coca-Cola dois litros", Santa Rosa dos Purus está no topo --lá, a garrafa sai por R$ 10. Em Plácido de Castro, de mais fácil acesso, a Coca sai por R$ 7. Em São Paulo, custa R$ 5.
Os oficiais que trabalham nesses postos remotos ganham um adicional de 20% para compensar o custo de vida. Um tenente em pelotão de fronteira na Amazônia chega a tirar R$ 6.000. Os soldados entram ganhando na faixa de R$ 800, depois de um ano podem receber R$ 1.300.
As mulheres só servem em funções que não são de combate. A aspirante Caroline Ortiz era a única mulher entre os mais de 70 homens em um bloqueio na estrada BR 364.
Médica, ela ia ficar longe de casa 15 dias, dormindo em um alojamento na usina de Jirau. Enquanto esperava no bloqueio, Caroline lia o best-seller erótico "Cinquenta Tons de Cinza", de E.L. James. "A gente precisa se distrair um pouquinho, não é?"
(PCM)


Fronteiras não merecem ser tratadas como 'periferia'

Fernando Rabossi
Especial para a Folha

Uma das mudanças significativas da última década no âmbito governamental tem sido a adoção de uma visão integral da faixa de fronteira.
Formulada inicialmente no ministério da Integração Nacional à luz da Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira apresentada em 2004, essa visão foi reformulada em 2011 com o Plano Estratégico de Fronteiras.
Coordenado pelos ministérios da Justiça, da Defesa e da Fazenda, o plano mudou da ênfase anterior dada ao desenvolvimento para a "prevenção, controle, fiscalização e repressão dos delitos transfronteiriços e dos delitos praticados na faixa de fronteira".
A mudança reflete o lugar que as fronteiras passaram a ocupar na agenda política, tanto para atender a demanda interna --a denúncia da procedência externa de drogas e armas nas cidades do país-- como para se posicionar internacionalmente.
Como as fronteiras brasileiras são longas, controlá-las torna-se um imenso desafio que inclui atualmente a integração das instituições de segurança, o seu aparelhamento, o uso das Forças Armadas e as operações coordenadas do outro lado da fronteira.
Os fluxos através das fronteiras não são simplesmente ilícitos, mas eles se desenvolvem nos limites de mercados --de cargas impositivas diferenciais, de leis laborais, de regimes monetários, das definições do que é permitido e o que é proibido.
O problema de pensar o controle fronteiriço somente como uma questão de contenção pode perder de vista esse caráter singular que têm os limites internacionais, tomando a faixa de fronteira como a periferia do Brasil.
A experiência nas grandes cidades brasileiras mostra que o tratamento das periferias como as áreas problemáticas da segurança pública têm contribuído à amplificação dos problemas em vez da sua solução. Talvez o maior potencial das políticas atuais seja tornar a faixa de fronteira uma área conhecida e mais bem integrada ao país.

FERNANDO RABOSSI é antropólogo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

FSP, 02/06/2013, Poder, p. A18-A19

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/111930-posto-de-fronteira-na-selva-fecha-as-20h.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/111933-macarrao-vira-iguaria-com-larva-de-sobremesa.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/111932-fronteiras-nao-merecem-ser-tratadas-como-periferia.shtml
Amazônia:Fronteiras

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