Quem liga para o Marajó?

O Eco - www.oecoamazonia.com - 06/10/2010
Sucede que neste reboliço das eleições, Chaves e Afuá, dois municípios do arquipélago de Marajó, no estado do Pará (PA), sem energia ou sinal de satélite, atrasaram a contagem de votos do Brasil... Será que assim prestarão mais atenção ao Brasil profundo, onde não há bancos ou telefone, não se sabe o que é internet, o satélite tem dificuldade de encontrar as margens dos rios e as pistas de pouso têm mais buraco que a Lua? Pior, onde há relações medievais de trabalho, onde não há estado, onde 30% das pessoas não têm documentos, onde a imensa maioria está sujeita à vassalagem, onde a economia é informal, a educação e saúde são luxos, onde nunca se viu um livro, uma escova de dente, e onde a renda monetária mensal per capta é inferior ao valor de um almoço no restaurante de quilo mais próximo de sua casa?

Enquanto o Brasil está na euforia do desenvolvimento, vai deixando para trás diversas regiões. São os buracos negros no nosso universo. Preferimos ser pop star no Haiti ou no Irã, ou abrir embaixadas em Ouagadougou a enfrentar os desafios aqui mesmo. Talvez minha avó tenha razão: por fora bela viola, por dentro pão bolorento.

Este é o Marajó, cuja renda somada de seus 500 mil habitantes (mais de 90% estão na pobreza ou miséria) é menor que o imposto que um dos bilionários brasileiros paga por ano de rendimentos de suas aplicações. Mas de que adianta esta cantilena? Será que, daqui a cinco minutos, você irá se recordar que, segundo o Tribunal Regional Eleitoral (TER), o Marajó tem 85% de analfabetos funcionais, que a média de anos de estudo de seus habitantes é inferior a dois anos? Que o lugar mais doce do planeta - pois 25% das águas doces deste globinho lavam o Marajó - tem 75% das pessoas sem acesso a água?

Por que não criamos o Índice Brasileiro do Esquecimento para aquelas regiões que fazemos questão de ignorar e pintamos esta região de outra cor, como se fazia antigamente, e se escrevia: terra incógnita? O Marajó, o Baixo, o Médio e o Alto Juruá e o Purus; a divisa do Maranhão com o Piauí, ou do Pará com o Maranhão. Bem, a maior parte do Maranhão, do Amazonas, do Acre, do Amapá, do Pará, talvez a maior parte de muitos estados do Norte e Nordeste, incluindo a maior parte das capitais. A maior parte do Brasil... Até o estado de São Paulo compareceria com o seu vale do Ribeira. Vai ter muito "terra incógnita" neste Brasil.

E estamos aí. As poucas dezenas (e não as dezenas de milhares) de organizações da sociedade civil trabalhando na Amazônia, na corda bamba, facilitando processos de desenvolvimento local, abrindo janelas entre o mundo globalizado, em busca de caminhos para que a identidade cultural aflore, se manifeste, tenha valor. Para que o açaí valha mais que um punhadinho de dinheiros. Pois então: metade do açaí do mundo vem do Marajó! E ali está o seu jeito caboclo de coletar, de bater, de participar da vida das pessoas... E isto precisa ter valor, precisa ser agregado ao produto. O que efetivamente ganha o caboclo do Marajó quando você toma o seu açaí? Quanto fica mesmo pra ele? E quem, mesmo, está interessado nisto?

Talvez, entre os muitos papéis que desempenhamos como organizações da sociedade civil, o principal seja o de animar processos culturais e sociais, fomentar a formação e o fortalecimento de associações locais, formar um tecido social, uma trama democrática, que impeça o coronelismo e os aproveitadores; que permita que a auto-estima esteja agregada a cada quilo de castanha, de andiroba, de cupuaçu, a cada visita turística. E que estas formações locais tenham as mesmas chances nos editais públicos, nas filas do banco, na negociação no mercado global, que melhorem sua posição nas cadeias de valor, que transforme este papo de sustentabilidade em algo tangível e palpável, não conversa de evento chique, com bolsa de algodão cru.

É nesta toada que remamos... Mais do que escutar pesquisadores e estudiosos, é nosso dever (e prazer) ouvir a voz marajoara, e contribuir para que mecanismos democráticos de participação sejam permanentes e inegociáveis. É assim que estamos construindo o Programa Viva Marajó, com o apoio do Fundo Vale, e que logo na primeira maré lançante foi-se a campo, com quatro equipes de cinco pesquisadores cada, vinte ao todo, para realizar um diagnóstico socioeconômico, uma escuta, com uma pergunta: o que é o Marajó para o marajoara?

E a escuta traz tantas vontades reprimidas, tantos sonhos e, claro, desafios, e questões difíceis, como malária crônica, prostituição infantil, piratas fluviais, roubo de madeira. Mas estamos falando de universos, de muitos Marajós. Afinal, sua superfície é maior que a de oito estados brasileiros, maior que Santa Catarina ou Pernambuco. Imaginem-se numa área maior que Espírito Santo e Rio de Janeiro juntos, sem um hospital com UTI em condições? Onde não há transporte público confiável. Vejam-se doentes enfrentando 36 horas de barco, na rede, um sofrimento.

E nesta mesma ladainha fomos a campo gravar um documentário. Era pra ser um vídeo de quinze minutos, simples, enxuto, diante da umidade total. Mas não. Saiu-nos a Regina Jeha, decana do cine-arte, da Lauper Films, com um documento de 53 minutos: Expedição Viva Marajó, que logo mais será exibido - primeiro no Marajó, para os marajoaras.

E como romper o isolamento? Como vencer as velhas políticas e conchavos? Como formar pessoas interessadas em permanecer (e não se ver imantado pelas belezuras das cidades grandes) e contribuir com o bem comum, a coisa pública local? O Marajó parece o Brasil colônia. Todas as cidades se comunicam com Belém (ou Macapá, para algumas como Chaves e Afuá). Poucas são as ocasiões para falarem entre si, para trocarem conhecimento. Parece o Brasil colônia quando a conexão entre Portugal e Belém, ou entre este e Salvador ou o Rio de Janeiro, era mais fácil que entre as diferentes partes do reino. Talvez seja um jeito de governar - dividir para governar ou isolar para governar - manter no analfabetismo crônico, na falta de eletricidade, na absoluta miséria para distribuir e fingir paternalisticamente tantas coisas.

Entre as propostas - e esta surgiu da vontade da sociedade civil - está a candidatura do Marajó como Reserva da Biosfera, diploma da UNESCO para a qual o governo se prepara, pois há diversas lições de casa para alcançar este objetivo. Conquistar este título é muito bom, é certo que isto chama a atenção. Mas antes, ou durante, é preciso, tratar, pra valer, do zoneamento ecológico-econômico, da segurança fundiária, das terras quilombolas, dos assentamentos agroextrativistas aos ribeirinhos, das reservas extrativistas, dos sítios arqueológicos, da cultura imaterial (a lista é grande)...

Além do que, estamos numa das regiões ambientalmente mais complexas do mundo. Neste pedacinho de Brasil, que ocupa menos de 0,7% do território nacional, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classifica 48 paisagens terrestres diferentes (imaginem que biodiversidade! E isto somente na parte insular). E faz menos de 8 mil anos que o Marajó se separou do Brasil, que o pingo no "i" da palavra Brasil criou vida própria e se separou do "i". Sem este pingo no "i" o Brasil se desequilibra, o rio Amazonas se esvazia, o Oceano Atlântico se bronzeia de marrom.

Neste tiquinho de Brasil encontram-se 12% das espécies de mamíferos, 22% das de aves, 12% das de répteis. Este é o único lugar do mundo onde há dois peixes-boi, o marinho e o amazônico. Os vestígios de dois mil anos de cultura marajoara estão lá, servindo de abrigo para os bois nas enchentes. São os tesos, cemitérios indígenas sem qualquer proteção. O Brasil tem centenas de unidades de conservação de proteção integral. O Marajó não tem uma sequer!

Para piorar as coisas, a economia está em colapso. Em verdade, andou pra trás. A madeira em crise desempregou mais de 5 mil pessoas em Breves. A pecuária encolheu 50%. Mais da metade da mandioca, a base da alimentação, é importada. E o açaí, que é tão recente, não dá conta do recado e tem mais atravessador que produtor.

Enquanto o Brasil esturra como tigre de primeiro mundo, o Marajó se dilui em cada maré, é gente migrando, querendo ficar e não vendo como sobreviver. Mas há planos, o Plano Marajó, o federal e o estadual, e são bons, bem feitos, há centenas de estudos, de propostas, boas propostas! A questão é que entre o discurso e a prática há um rio Amazonas de boas intenções e a falta de compromisso com a região.

Para mudar, só mesmo se organizando como sociedade civil ignorando o tamanho do problema, as distâncias, as dificuldades, as desavenças, as diferenças, o isolamento, a exploração social e econômica, a devastação, a carência de tudo. Taí algo para os novos (e antigos) representantes do povo - presidentes, governadores, deputados e senadores - oportunidade de iluminar os pontos obscuros dos Brasis. A agenda é parruda, um pouco dela está na Carta de Princípios da Rede Marajó da Sociedade Civil - http://vivamarajo.org.br/rede. Tem Marajó para todo mundo, é só participar.


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