Quilombolas reivindicam terras que equivalem à área de S. Paulo

OESP, Nacional, p. A4 - 12/08/2007
Quilombolas reivindicam terras que equivalem à área de S. Paulo
Hoje há 3.524 comunidades que pedem títulos de propriedade no País; Fundação Palmares já oficializou 1.170

Roldão Arruda

Em 1988, quando discutiam e votavam os dispositivos transitórios da futura Constituição, os deputados constituintes não viram problema em incluir um artigo sobre a população remanescente dos antigos quilombos. Do centro à esquerda, do antigo PFL ao PT, todos os partidos concordaram com o artigo 68, que, em duas linhas, obriga o Estado a reconhecer e titular as terras de quilombolas. Era citado entre os deputados um estudo do sociólogo e historiador Clóvis Moura, que mencionava 55 remanescentes de quilombos com existência documentalmente comprovada no Brasil.

Ninguém imaginou que se armava ali um dos maiores embates fundiários da história recente do País. Neste momento existem 3.524 comunidades que se identificam como remanescentes de quilombos e reivindicam a legalização de suas terras. A Fundação Cultural Palmares, instituição encarregada de receber os pedidos, já oficializou 1.170.

Mas isso ainda é o começo. Pelos cálculos do movimento negro, o número de comunidades deve passar de 5.500. No Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia incumbida de demarcar as terras, um levantamento concluído há pouco diz o seguinte: se forem atendidas todas as reivindicações, o Estado terá que titular um total de 25 milhões de hectares para os quilombolas. Isso equivale ao território do Estado de São Paulo, que tem 24,8 milhões de hectares.

Por quase 15 anos, desde a promulgação da Constituição, pouca gente deu atenção ao tal artigo das Disposições Constitucionais Transitórias. Isso ocorreu porque ele não foi aplicado, sob a alegação de que precisava ser antes regulamentado.

Passaram-se os governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique, até que, em novembro de 2003, no primeiro ano de seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto 4.887 - que regulamentou o artigo. Fez isso atendendo ao movimento negro e estimulado pela ex-deputada constituinte e então ministra da Assistência e Promoção Social Benedita da Silva (PT-RJ).

No mesmo ano o Incra abriu 9 processos de reconhecimento de terras. E não parou mais. Já são 558 em todo o País. De acordo com a superintendência do Incra no Maranhão, a lista de pedidos de comunidades que se reconhecem como quilombolas no Estado chega a 800.

Conflitos

Esse movimento tem causado conflitos por toda parte. Afinal, em pleno século 21, com o território nacional quase totalmente ocupado, não se arranca do nada uma vastidão de terra do tamanho de São Paulo. Em Santa Catarina, um grupo de 80 pequenos produtores dos municípios Campos Novos e Abdon Batista luta para impedir a demarcação de uma área de 8 mil hectares reivindicada pelos quilombolas. 'Meu pai sofreu para comprar essa terra. Se perdermos, vamos ficar numa situação muito feia', diz Juventino Garipuna, proprietário de 10 hectares.

Em Rondônia, é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) que tenta impedir a entrega de parte de uma reserva biológica quase intocada aos quilombolas que vivem esquecidos à margem do Rio Guaporé. No Espírito Santo, onde o Incra já demarcou um total de 58.306 hectares para 422 famílias, são registrados conflitos judiciais com dez empresas proprietárias de terras, fazendeiros e também pequenos posseiros. Uma das empresas mais atingidas foi a Aracruz Celulose.

Desde os anos 70, a Aracruz vem adquirindo terras na Espírito Santo e possui hoje um total de 61 mil hectares. Agora está ameaçada de perder 17 mil para duas comunidades que se identificam como quilombolas.

'A compra das terras foi feita de maneira transparente, sem problemas com a documentação', diz Carlos Alberto Roxo, diretor de área de sustentabilidade e relações corporativas da empresa. 'Não imaginávamos que teríamos que brigar na Justiça pelos nossos direitos, enfrentando invasões de grupos que derrubam áreas de reflorestamento, na tentativa de vencer na marra.'

Para o diretor da Aracruz, os conflitos tendem a se multiplicar porque, de acordo com o decreto presidencial, qualquer grupo pode se declarar quilombola e interferir nos critérios de demarcação do território que reivindica. 'Isso transformou-se numa questão política: os movimentos que se opõem à propriedade e ao modelo rural aproveitam o decreto para mais uma vez investir contra os proprietários.'

Num arrazoado jurídico preparado a pedido da Aracruz, o escritório de advocacia Tozzini Freire foi além. Disse que o decreto abriu um processo de reforma com base em critérios raciais, 'passando a partir daí a atingir recursos de terceiros'.

Inclusão

Do outro lado, na Secretaria Especial de Promoção de Políticas da Igualdade Racial, a subsecretária de Comunidades Tradicionais, Givânia Maria da Silva, rebate: 'Todo mundo gosta de falar em inclusão social, mas quando se tem uma política definida, cujo foco principal é o acesso à terra, os problemas começam.' Givânia, que é quilombola no Maranhão e vereadora licenciada do PT, lembra que cerca de 6 milhões de africanos foram trazidos para o Brasil no período da escravidão. E que após a abolição eles não tiveram nenhum apoio: 'O Estado que escravizou não deu condições para que superassem as marcas da escravidão.'

Para Luciano Bernardi, frade ligado à Comissão Pastoral da Terra (CPT), que apóia as reivindicações dos quilombolas em quase todo o País, a aplicação do artigo constitucional está servindo para 'mostrar ao Brasil um pedaço dele que estava escondido há séculos.'


Ação no STF contesta decreto assinado por Lula
DEM argumenta que só Legislativo pode regulamentar dispositivo constitucional sobre demarcação de áreas

O presidente Lula teria atropelado a lei quando, em 2003, assinou o Decreto 4.887, que regulamenta o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - sobre a legalização das terras dos remanescentes de quilombos. Esse é o argumento da ação direta de inconstitucionalidade que tramita desde 2004 no Supremo Tribunal Federal (STF), com o intuito de barrar a onda de reivindicações que o decreto desencadeou.

A ação, que é relatada pelo ministro Cezar Peluso, foi apresentada pelo PFL (atual DEM), com apoio da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). Na argumentação ao Supremo, o advogado do partido Flávio Couri afirma que dispositivos constitucionais não podem ser regulamentados por decreto do presidente da República - cabendo ao Legislativo tal tarefa.

O advogado também diz que Lula tornou elástico demais o conceito de quilombola ao definir, no decreto: 'Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.'

Para o DEM, quando os constituintes falaram em 'remanescentes de comunidades de quilombos', eles se referiam apenas àquelas comunidades formadas em torno de um quilombo e que continuaram a existir como comunidade após a abolição da escravatura. O partido também condena o critério de autodefinição previsto no artigo: 'Submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional.'

A ação do DEM também considera inconstitucional a idéia de que deve ser considerada como terra quilombola toda a área utilizada para a 'garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural'.

Para o professor de direito constitucional e procurador Daniel Sarmento, que atua junto ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, e já defendeu a causa dos quilombolas, o artigo 68 refere-se à garantia de direitos fundamentais e, portanto, é auto-aplicável. Poderia até ter sido aplicado antes do decreto de Lula: 'Não se pode exigir que para cada artigo se produza uma lei. A aplicação, no entanto, exige alguns procedimentos, que podem ser disciplinados por meio de decreto, como foi feito', explica.

De acordo com Sarmento, o objetivo do artigo é assegurar os direitos dos quilombolas. 'Não é um só pedaço de terra. Trata-se de moradia, direito cultural, defesa de seus valores, tradições', argumenta o professor. 'Se não for assegurada a terra, a cultura se perde.'

Quanto à autodefinição, ele cita convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), das quais o Brasil é signatário. 'Além disso, está prevista a elaboração de um laudo antropológico, que comprova se a autodeclaração é verdadeira.'

Para o presidente do Incra, Rolf Hackbart, o processo de legalização das terras dos quilombos também contribui para o reordenamento fundiário: 'É mais um caminho para definirmos o que é público e privado, o que é reserva, o que pertence a esse ou àquele grupo.'

OESP, 12/08/2007, Nacional, p. A4
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