Riqueza da floresta

O Globo, Amanhã, p. 26-28 - 28/05/2013
Riqueza da floresta
Comunidades ribeirinhas da Amazônia transformam produtos locais de maneira sustentável. Produção ganha mercado externo e chega à Espanha

Thais Lobo
thais.lobo@oglobo.com.br

À beira do Rio Negro, pequenas casas de madeira margeiam águas que, de tão extensas, mais parecem mar. Em terra firme, o que se vê são dois pilares das comunidades ribeirinhas: o campo de futebol e as mulheres. Enquanto maridos desbravam matas e rios da Amazônia, elas trabalham na roça, cuidam da família e das companheiras, numa sobrevivência quase sempre baseada no artesanato que produzem e vendem a turistas esporádicos.
A uma hora e meia de barco do centro de Manaus, no Amazonas, a vida na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro ainda tenta se ajustar às novas regras de habitação da floresta trazidas com a implantação da unidade de conservação, em 2003. A área de 103 mil hectares apresentou uma nova realidade aos moradores ribeirinhos. O extrativismo da madeira já não pode ser a base da economia local, e o protagonismo da renda familiar não é mais tarefa exclusiva dos homens. Agora, outra lógica cotidiana e econômica se impõe a pelo menos cinco das 19 comunidades que integram a reserva.
- Meu avô, meu pai e eu tirávamos madeira. Eu gostava do meu trabalho, mas vi que não tinha futuro com isso. Ainda mais sendo uma atividade ilegal. A única coisa que herdei desse trabalho foi uma hérnia - conta Roberto Mendonça, dono de uma pousada e um restaurante em Tumbira, uma das cinco comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro.
Desde fevereiro último, Tumbira, Acajatuba, Santo Antônio, Saracá e Tiririca buscam no artesanato um caminho para o desenvolvimento sustentável. É o saber cultural ganhando musculatura e, graças a um acompanhamento de todo o ciclo de produção, gerando renda às populações dessas comunidades. A renda média familiar passou a oscilar entre R$ 500 a R$ 700. Por trás da mudança socioeconômica está "O Coletivo das Artes", um projeto do Instituto Coca-Cola desenvolvido em parceria com a ONG Fundação Amazonas Sustentável (FAS). A coordenação do projeto fica a cargo da designer Monica Carvalho, especializada em produtos de base orgânica:
- Fui surpreendida por técnicas e materiais que essas artesãs me apresentaram.
O "morotolata", por exemplo, pequenos pedaços de lata de alumínio que fazem referência às sementes de morototó, é um clássico do artesanato amazonense. O "pirarupet" é uma imitação da escama do peixe pirarucu feita a partir de PET lixado. O mesmo vem ocorrendo com a fibra de tauari, antes usada exclusivamente para enrolar tabaco. As oficinas, que também tiveram a consultoria da Rede Asta, ainda criaram um crochê com fio de tucum - as folhas dessa palmeira são fortes e se prestam aos mais diferentes fins.
O uso de insumos locais na produção não é apenas uma questão de bom aproveitamento dos recursos e valorização cultural, mas, sobretudo, de sobrevivência do negócio.
- Antes de chegar aqui, eu já tinha pronta na cabeça uma bolsa de tupé e PET. Acho essa fibra maravilhosa, característica da Amazônia. Mas era época de baixa do rio, e a matéria-prima só é retirada na cheia. Também não há o costume de armazenar estoque. Foi tudo por água abaixo. Numa região como essa é preciso trabalhar com a realidade e entender a cultura local - lembra Monica, chamando a atenção para as dificuldades logísticas intrínsecas da região.
A gerente de Sustentabilidade da Coca-Cola Brasil, Flávia Neves, acrescenta que a superação dessas barreiras vem alimentando não apenas as artesãs, mas toda uma cadeia produtiva até chegar a mão do consumidor.
A partir de junho, os produtos do "O Coletivo das Artes" serão vendidos na loja on-line da Rede Asta.
- Esse pontapé inicial veio com uma proposta diferente. Outros projetos vêm, treinam o artesão, mas não trazem o mercado, que é o principal. Isso para nós foi uma surpresa. Somos muito treinadas em todos os tipos de artesanato, mas normalmente temos que correr atrás do mercado - afirma Marlene da Costa, fundadora da comunidade de Acajatuba e líder das artesãs do grupo Jaiipim.
A parceria com o e-commerce é apenas uma das novas frentes de comercialização aberta às comunidades da região. A rede espanhola de lojas de departamento El Corte Inglés fechou uma encomenda de bolsas "pirarupet". Para dar conta do pedido, foi preciso adaptar o maquinário, já que a montagem das bolsas leva um dia inteiro.
Nova rotina de divisão de tarefas
Para a compra dos materiais, as artesãs receberam um aporte financeiro. A consultoria continuou na etapa de produção, e uma oficina ajudou-as a determinar os preços que seriam cobrados em cada acessório, incluindo os custos de transporte, mão de obra, material e margem de contribuição.
- A gente não fazia nem ideia de como cobrar. Fazíamos um cálculo pelo que dava para tirar, mas agora, não. Já sabemos que é preciso incluir o consumo de energia, o custo dos materiais e de transporte e as horas de trabalho - conta Neide Garrido, enquanto costura bolsas para a coleção de Tumbira, ofício que aprendeu em um curso por correspondência.
As dificuldades a serem superadas não se resumem aos cálculos matemático-financeiros. Ao produzir em grupo, as artesãs precisam se adaptar a uma nova rotina de divisão de tarefas e de lucros.
Ainda que com percalços, o trabalho coletivo ajudou a resgatar antigos saberes. Em Santo Antônio, por exemplo, o baixo número de clientes fez com que as mulheres deixassem de trabalhar com artesanato e artigos indígenas para se dedicar à produção de espetos de madeira. O trabalho era árduo, mas compensava financeiramente.
- Várias pessoas reclamavam que já estavam enjoadas dessa vida. Agora, em vez de trabalhar na chuva e sob o sol, estamos dentro de casa fazendo o produto e sabendo que vamos vender. É diferente de quando fazíamos e ficávamos esperando o cliente - compara a artesã Mariete Miranda, vice-presidente da associação de moradores de Santo Antônio. - Eu, muitas vezes, me desanimei e pensei em ir embora daqui. Mas, trabalhando juntas, uma pessoa dá força para outra.
As raras oportunidades de emprego e estudo na região fizeram com que muitos moradores deixassem suas comunidades rumo a municípios maiores ou à capital. Poucos retornaram.
Na contramão dessa estatística, a professora Izolena Garrido concluiu pedagogia em Manaus e voltou para Tumbira, sua terra natal. Ela fez cursos à distância de hotelaria, guia turístico e gestão ambiental. Hoje, atua como uma espécie de coordenadora dos grupos de artesãs, enquanto conclui o trabalho de campo de um mestrado em Ecoturismo:
- O povo amazonense tem uma cultura muito grande. Mas poucos conseguem enxergar aquilo como um produto de renda que possa ir para o mercado com um valor cultural. Isso está sendo resgatado.
* A repórter viajou a convite da Coca-Cola

O Globo, 28/05/2013, Amanhã, p. 26-28

http://oglobo.globo.com/amanha/comunidades-ribeirinhas-da-amazonia-transformam-produtos-locais-de-maneira-sustentavel-8521729
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