Sozinha contra a barbárie

OESP, Notas e Informações, p. A3 - 07/03/2005
Sozinha contra a barbárie

Muitos brasileiros talvez não saibam que um dos conjuntos de sítios arqueológicos mais importantes do mundo, que é o localizado no município de São Raimundo Nonato, a 530 quilômetros de Teresina, no Piauí, deve-se ao esforço obstinado - desenvolvido ao longo dos últimos 40 anos - de uma única mulher: a arqueóloga Niède Guidon, paulista formada na França, que nas cavernas e lapas da Serra da Capivara encontrou mais de 600 sítios com pinturas rupestres, constituindo um acervo arqueológico de enorme valor. Graças aos esforços da arqueóloga foi criado, em 1979, o Parque Nacional da Serra da Capivara, uma reserva de 129 mil hectares só efetivada em 1991, quando, a partir de um convênio com o Ibama, foi incumbida de dela cuidar, passando a acumular funções antes jamais previstas, como as de ambientalista e até assistente social.
Artigo publicado em nossa edição de quinta-feira, de autoria do jornalista Marcos Sá Corrêa, nos dá conta tanto da trajetória quanto dos problemas que hoje enfrenta a grande arqueóloga brasileira, em vista do descaso, da ignorância, da apropriação indevida de terras públicas, de dilapidação de insubstituível patrimônio cultural - e de tudo aquilo que pode ser capitulado na definição genérica de barbárie, a comprovar o lamentável grau de incultura e irresponsabilidade, tanto de particulares quanto de autoridades públicas.
Além de ter criado um museu a céu aberto, "preservado entre os últimos retalhos de mata atlântica e caatinga no Piauí" - como escreve o jornalista -, Niède Guidon não desconsiderou, além da necessidade de conservar os tesouros arqueológicos, as necessidades materiais do povoado local. Foi por isso que se empenhou em fazer escola, curso de alfabetização, posto de saúde, programa de apicultura para a produção de mel silvestre e até projeto de faculdade, para preparar moradores da vizinhança em hotelaria e turismo. Isso não bastou para atrair a boa vontade e o respeito em relação àquele importantíssimo patrimônio cultural, pois o parque foi cercado de posseiros, intitulando-se quilombolas, vindo atrás deles - como anátema inexorável - os movimentos dos sem-terra.
"Eles põem fogo no mato e os incêndios destroem pinturas pré-colombianas. Na vanguarda dos assentamentos, chegaram os políticos, os comerciantes e até a Diocese de São Raimundo Nonato, erguendo casas de campo em terras do governo" - descreve Sá Corrêa. São terras que deveriam ligar a Serra da Capivara ao Parque Nacional da Serra das Confusões, um caminho por onde escapavam para as fontes perenes da Serra das Confusões, nas longas estiagens que podem durar cinco anos, os veados, tamanduás, tatus e até as onças da Serra da Capivara. Só que hoje há sítios (não arqueológicos, mas de lazer, mesmo) até no leito seco do Rio Piauí, nos quais se serve churrasco de caça à beira da piscina - animais esses caçados na Serra da Capivara com espingardas e armadilhas. Quando presos pelos guardas - pois desrespeitam a lei - os caçadores são logo absolvidos sob a alegação de que "a população tem o direito de caçar para comer", o que é reforçado pelo alto-falante da igreja (na cidade de Guariba, ao pé da Serra das Confusões), e nfatizando que "Deus fez a terra para uso do homem, logo, defender os bichos do parque contraria a lei divina".
É por isso que naquela região, que é o berço natal do Programa Fome Zero, "na cesta básica tem tatu" - como escreve o jornalista. É claro que a terra é para o uso do homem e, em caso de necessidade, todos têm o direito de caçar para comer, embora, no Brasil, a caça esteja proibida por lei. Mas será que existe necessidade, mesmo, de se permitir uma atividade sob todos os pontos de vista predatória, tanto do meio ambiente quanto de um patrimônio cultural insubstituível? E, para piorar tudo, o Incra resolveu assentar, definitivamente, os invasores do MST que estão entre os dois parques. A arqueóloga já avisou que, se isso acontecer, vai extrair do parque o acervo arqueológico, antes que acabe.
Com tantos desrespeitos à lei e ao patrimônio público, será condenável a atitude de quem não encontra outro meio de defender, sozinha contra a ignorância e a barbárie, um patrimônio cultural - do Brasil e do mundo - ao qual dedicou preciosas décadas de sua vida?

OESP, 07/03/2005, Notas e Informações, p. A3
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