Terror no fundo do mar

O Globo, Amanhã, p. 22-28 - 04/09/2012
Terror no fundo do mar
Considerado celeiro de biodiversidade devido ao número de novas espécies sob as águas, o leito dos oceanos é devastado pelas redes da pesca de arrasto

CLÁUDIO MOTTA
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RENATO GRANDELLE
renato.grandelle@oglobo.com.br

No lugar da grande diversidade de organismos marinhos que habitava o mar do Sul da Índia, não havia qualquer forma de vida na paisagem observada por pesquisadores da Universidade de Oxford em mergulho realizado recentemente. As marcas no fundo de areia denunciavam a ação de barcos que fazem pesca de arrasto. A rede, puxada por cordas, cabos ou correntes, passa ao longo do leito do oceano. Praticamente tudo em seu caminho fica preso na malha, mas só um décimo interessa aos pescadores. O que não serve para o comércio é descartado antes de chegar à terra.
Também morrem animais que, mesmo sem terem sido capturados, sofrem ferimentos e mutilações por causa do arrasto. Como as redes remexem o fundo, muito material fica em suspensão após a passagem dos barcos, sendo possível observar o fenômeno por fotos de satélite. Nestas circunstâncias, há corais que não conseguem sobreviver à falta de luminosidade ou ao excesso de sedimentos.
- Estive trabalhando no mar do Sul da Índia, onde encontramos coisas interessantes, como recifes, tubarões e organismos incríveis. Mas também observamos extensas áreas que mais pareciam campos arados, totalmente sem vida - descreve o biólogo de Oxford Alex Rogers, especialista em oceanos. - Estas áreas foram afetadas pela pesca predatória de arrasto, que ameaça ecossistemas ainda sequer estudados pela ciência.
De deserto submarino, como eram classificadas poucos anos atrás, as águas profundas dos oceanos foram alçadas ao último celeiro de biodiversidade ainda desconhecido pelo homem. A dificuldade de acesso protegeu uma quantidade de espécies que, segundo pesquisadores, pode variar de 250 mil a algumas dezenas de milhões. Mas este obstáculo tem sido vencido pela indústria pesqueira. Redes arrastadas por um ou dois navios alcançam até mil metros de profundidade e avançam sobre platôs atrás de camarões, linguados e corvinas, entre outros animais.
Além dos danos ambientais, o impacto econômico da atividade é imenso. Sem o habitat, a sobrevivência dessas espécies e sua capacidade reprodutiva fica comprometida. E, também, sua eventual exploração para criação de novos fármacos - algo que muitas vezes se provaria possível.
A chegada das redes de arrasto ao fundo do mar se deu devido à rápida destruição dos estoques de peixes em águas superficiais, especialmente nas jurisdições dos países. A partir do momento em que as frotas pesqueiras industriais tiveram mais dificuldade para manter seus resultados, o setor incluiu o resto do oceano em seu itinerário, beneficiando-se da falta de legislação internacional que regeria sua exploração.
Considerando que uma rede de arrasto varre uma área correspondente a até 5 mil campos de futebol em uma única viagem, os estragos avançam em ritmo ameaçador.
Há seis anos, ambientalistas conseguiram levar a pesca de arrasto à Assembleia Geral da ONU. Esperavam sair de Nova York com uma moratória à atividade em águas internacionais - com apoio do Brasil -, mas a resolução final não foi tão ambiciosa.
Poucos avanços
Na ONU, os países se comprometeram a realizar estudos de impacto ambiental da pesca em alta profundidade. As áreas com ecossistemas marinhos vulneráveis seriam fechadas. Havendo qualquer ameaça à sustentabilidade dessas regiões, uma regra de abandono entraria em vigor, proibindo a presença de embarcações com redes ou equipamentos que pudessem atingir habitats frágeis.
Os avanços, desde então, foram muito menores do que o desejado. A dimensão econômica da proposta entrou na balança e mereceu mais considerações do que o impacto ambiental da pesca. Prova disso é o final frustrante debate sobre os oceanos na Rio+20, em junho - que, acreditava-se, traria algum avanço. Em vez de uma legislação para os mares internacionais, os países-membros da ONU contentaram-se, no documento final, com termos vagos como "tomada de ações urgentes" e "consideração de um debate".
- Sequer é possível calcular a biodiversidade perdida nos mares profundos por causa da pesca de arrasto - lamenta Matthew Gianni, cofundador e conselheiro político da Coalizão de Conservação dos Mares Profundos. - Não há pesquisas sistemáticas para calcular ou qualificar a extensão desses ecossistemas. O mar profundo é uma área vasta dos oceanos e o custo da pesquisa é muito alto. Menos de 300 montanhas submarinas foram estudadas de alguma forma.
A última tentativa de traçar o relevo submarino do planeta, publicada no ano passado pela revista "Deep Sea Research", encontrou 33,4 mil montanhas submarinas - todas com pelo menos 1km de altura - e 138,4 mil colinas. A contagem é importante porque estes locais podem guardar uma grande biodiversidade e comunidades biológicas únicas. Seus ecossistemas servem para alimentação de peixes, mamíferos e aves marinhas. E, por isso, são especialmente vulneráveis à exploração.
Muitas das espécies ainda não descritas pela ciência habitariam áreas de mares profundos. Esta parte dos oceanos está abaixo das plataformas continentais - já extensamente exploradas - e fora da zona econômica exclusiva de cada país.
- Virtualmente todas as novas operações científicas que exploram estas áreas resultam na descoberta de novas espécies e ecossistemas - destaca Gianni. - Em 2008, por exemplo, uma expedição ao Oceano Austral, conduzida pela Organização para a Pesquisa Industrial e Científica da Austrália, afirmou ter encontrado 274 novas espécies de corais, estrelas-do-mar, esponjas, camarões e caranguejos a uma profundidade que chega a 2 mil metros da superfície e passa por 80 cordilheiras submarinas cuja existência era ignorada.
O vasto potencial biológico inexplorado no ambiente marinho poderia ser a fonte do milhares de novos medicamentos. Lá existem de 250 mil a 600 mil substâncias, aproximadamente 92% delas ainda ignorados, de acordo com acordo com estimativa do relatório publicado em maio pela ONU. Elas poderiam ser a base para mais de 200 remédios de combate ao câncer. O potencial para a indústria farmacêutica é calculado em US$ 563 bilhões, podendo chegar a US$ 5,69 trilhões.
Para regular a exploração das substâncias naturais do mar pelas indústrias, sejam elas químicas ou pesqueiras, há leis internacionais, mas que ainda precisam sair do papel. A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), por exemplo, prevê a implementação de medidas de proteção à biodiversidade até 2020, além de estipular formas de repartição dos lucros obtidos pela exploração do material genético da natureza. O próprio secretário-executivo da CDB, o brasileiro Braulio Dias, reconhece que o maior desafio é implementar os dispositivos já criados.
Outros tipos de regulamentação permitem a criação de áreas de exclusão. A pesca de arrasto é proibida na Antártica desde 2006. O Oceano Austral, portanto, é o único já livre do impacto provocado pela prática.
As redes de arrasto são consideradas por ambientalistas a ameaça mais direta, entre todas as atividades humanas, aos ecossistemas de mares profundos. Os danos provocados já foram documentados em diversas regiões do globo - e, também, por alguns Estados. O Instituto Norueguês para Pesquisa Marinha estima que de 30% à metade de seus recifes de corais em águas frias foram danificados ou destruídos por esta atividade industrial.
A preocupação do órgão de pesquisa científica parece não ecoar em outros setores do governo. A Noruega é um dos 11 países que, em 2001, respondiam por 95% da pesca de arrasto no mundo - os outros são Dinamarca, Espanha, Estônia, Islândia, Japão, Letônia, Lituânia, Nova Zelândia, Portugal e Rússia.
Em julho, no primeiro grande encontro ambiental após a Rio+20, a Comissão Internacional Baleeira (CIB) vetou a criação de um santuário para o Atlântico Sul. Mais do que uma derrota para os protetores dos animais, o ato foi visto como uma vitória de práticas abusivas da indústria pesqueira. Das 11 maiores nações adeptas da pesca de arrasto, oito votaram na reunião da CIB. Quatro foram contra o santuário: Islândia, Japão, Rússia e, mais uma vez, Noruega.
Os estragos contabilizados pelo governo escandinavo em seus recifes de corais podem ser constatados por outros países banhados pelo Atlântico Norte - esse oceano é uma das áreas onde a pesca de arrasto se manifesta com mais força. Outros pontos críticos incluem o Pacífico Norte - as cadeias havaianas, especialmente -, o Índico Sul e o Mar da Tasmânia, entre a Austrália e a Nova Zelândia. Todos têm em comum um amplo espaço disponível para a ronda dos pesqueiros.
Segundo a Coalizão de Conservação dos Mares Profundos, o Atlântico Sul - o menos explorado dos oceanos - segue um caminho oposto. Nele, a pesca de arrasto teria diminuído nos últimos anos. A região ainda não conta com um levantamento sobre que efeitos provocados por esta prática econômica. Um estudo piloto está sendo conduzido, desde 2008, por José Angel Alvarez Perez, coordenador do projeto Mar-Eco Atlântico Sul e pesquisador da Universidade do Vale do Itajaí, em Santa Catarina.
Perez concentra seus estudos nos taludes - as paredes que mergulham da plataforma para os abismos oceânicos - próximos às regiões Sul e Sudeste do país. Em seu campo de estudo, a pesca mais comum é de arrasto duplo, ou seja, um barco sai equipado com duas redes, cada qual jogada de um extremo da embarcação. Os principais alvos são camarões-rosa, pescados, linguados e corvinas.
- O aparato usado é de baixa seletividade, quando comparável, por exemplo, ao anzol - ressalta. - O maior problema não é a rede, mas o fato de ela não ser específica. É provável que seja o tipo de pesca com maior perda de biodiversidade. O fato de que se quer pegar mais de uma espécie com valor gera uma captura não intencional de vários outros animais. Elas vão ser mais ou menos prejudicadas dependendo do potencial reprodutivo da espécie, e de quão rara ela é. Nessa avaliação, os tubarões e arraias nos preocupam mais.
Captura de camarão
No Brasil, a pesca de arrasto está majoritariamente associada à captura de camarões. Pequenos, localizados no fundo do mar, onde caminham em vez de nadar, estes crustáceos exigem redes de malha fina, que prendem praticamente tudo ao redor. De acordo com as estimativas do professor da UFRJ Marcelo Vianna, para cada camarão capturado, dez vezes mais organismos marinhos também são retirados do mar. Como, em geral, não têm valor comercial, os pescadores simplesmente jogam fora peixes, ostras, estrelas-do-mar e o que mais vier na rede.
Dos mares brasileiros foram retiradas quase 40 mil toneladas de camarão em 2010. Os dados são do Ministério da Pesca e Aquicultura, que levou em consideração seis espécies do crustáceo. Pesquisadores calculam que 400 mil toneladas de outros organismos marinhos foram mortos e jogados fora naquele ano.
A situação é ainda mais dramática em estuários ou regiões de grande biodiversidade.
Quanto mais rica for a área na qual as redes de arrasto passarem, mais organismos marinhos serão capturados. E descartados. Na Baía de Guanabara, por exemplo, a proporção entre camarões e outros organismos pode ser de até 1 para 50. Ou seja, para cada quilo de camarão, 50 de outros seres vivos são capturados e jogados fora.
- É assustador. É o maior problema da pesca mundial. E, no Brasil, temos numerosas comunidades pesqueiras que vivem do camarão.
Então, a proibição da pesca de arrasto por si só não funcionaria. Iria causar um grande problema social - afirma Vianna. O diretor do programa marinho da ONG Conservação Internacional-Brasil, Guilherme Dutra, comparou o impacto do arrasto com o da mineração: - O impacto está relacionado ao tamanho da embarcação, tamanho da rede e tipo de fundo no qual a atividade é praticada. Há grande variedade de técnicas de arrasto.
Desde grandes embarcações, que praticam o chamado arrasto parelha, quando dois barcos puxam a enorme rede, há navios intermediários e barcos motorizados menores, que usam redes simples. Em outro tipo de arrasto, considerado mais tradicional, a rede é puxada da areia por pescadores e banhistas. Para abrir a rede e raspar o fundo, são usadas portas. Elas pesam 25kg nas embarcações artesanais, podendo chegar a 75kg nas industriais.
O arrasto costuma abranger uma largura de 25 metros na pesca industrial de camarão no Brasil. A força que é exercida no fundo do mar é comparável à ação de um trator. A malha tem aberturas de 18 a 25 milímetros. Tudo o que for maior do que isto é pego. - A porta arrasta no fundo e o corpo da rede tem que passar um pouco acima. O pescador controla o arrasto com a velocidade do barco - explica Dutra.
Com o objetivo de diminuir os impactos da pesca de arrasto, especialistas defendem duas estratégias. A primeira é a criação de zonas de exclusão, sobretudo em regiões de grande biodiversidade, como estuários. Isso já ocorre no Saco do Mamanguá, em Paraty, por exemplo, assim como em Abrolhos.
A outra é a redução gradativa da frota de embarcações pesqueiras. Os pescadores devem ser estimulados a migrar para outras atividades ou outro tipo de pesca.
- A solução, isso vale não só para o arrasto, mas para a pesca em geral, é o zoneamento adequado e planejamento do uso do espaço marinho - defende Guilherme Dutra, da CIBrasil. - Temos pouquíssimo do mar zoneado, precisamos mudar isto com urgência. A combinação de áreas protegidas com outras de uso mais intensivo é uma alternativa interessante e que parece estar bem mais próxima da nossa realidade.
Alguns ambientalistas, no entanto, preferem medidas mais duras de combate à pesca de arrasto. Para o coordenador Internacional do Projeto Frutos do Mar Sustentáveis do Greenpeace, Cat Dorey, por exemplo, a atividade deveria ser imediatamente interrompida em águas profundas, que ficam além das plataformas continentais e abrigam uma das mais espetaculares áreas ainda selvagens.
- A pesca de arrasto deveria ser banida de todas as áreas com comunidades complexas no fundo do mar, como corais, esponjas e alga marinhas. Se é permitida, a prática deveria ser limitada a um pequeno número de barcos em áreas simples ou com fundo de lama, onde pode ser cuidadosamente monitorada e controlada - sugere Dorey.

Redução de danos

Claudio Motta
claudio.motta@oglobo.com.br

Cientistas brasileiros estudam dispositivos capazes de reduzir o enorme impacto da pesca de arrasto no Brasil. Os mecanismos, em geral, são simples. Eles criam aberturas que permitem a fuga de outras espécies, que não têm valor comercial, portanto não interessam aos pescadores. As pesquisas pretendem ser usadas como base para uma nova regulamentação nacional, que obrigue o uso de redes menos agressivas para o meio ambiente.
- Os organismos marinhos capturados que não têm interesse comercial também são embarcados com a espécie alvo, em geral, o camarão. Enquanto recolhem o crustáceo, os pescadores pisoteiam essa fauna acompanhante: peixes, ouriços, estrelas do mar. Tudo é depois descartado. A sobrevivência é praticamente nula - explica o professor da UFRJ Marcelo Vianna. - Dispositivos que diminuem em 20% a pesca acidental já são aceitos.
Os mais eficientes conseguem uma redução de 40%. Mesmo assim, esta pesca ainda é praticada em níveis predatórios.
Os dispositivos que estão sendo estudados precisam se manter eficientes na pesca de camarão, caso contrário, não serão usados pelos pescadores. Fernanda Jordão Guimarães, pesquisadora da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, estuda os impactos da pesca de arrasto na Bahia. Seu trabalho está em fase final, na qual ela tenta aumentar a escala dos testes para provar que os dispositivos são eficientes tanto para seu fim econômico - a pesca - como para o ambiental - diminuir a captura acidental.
- Escolhemos um dispositivo muito barato e simples. Uma vez instalado, ele não precisa ficar mexendo - diz Fernanda. - Tiramos um pedaço da rede de arrasto e colocamos um painel, que possibilita a fuga de peixes.
Mas eles precisam ter boa capacidade de natação. Quando batem na rede, saem pelo dispositivo.
Apesar de ser apontada como vilã ambiental, a pesca de arrasto é muito antiga. No Brasil, foi trazida pelos portugueses e se difundiu rapidamente. Comunidades inteiras de pescadores pescam assim há muitas gerações.
Ambientalistas do Greenpeace dizem que os primeiros relatos dos danos relacionados à pesca de arrasto são de 1376. O rei da Inglaterra Edward III teria feito um pedido para banir a pesca destrutiva. Na petição, o monarca reclamava dos impactos da atividade, que afetava a fauna e a flora. Os holandeses determinaram proibição de pesca de arrasto de camarão em seus estuários, em 1583. No ano seguinte, a França restringiu a atividade. Com a revolução industrial, a energia a vapor passou a impulsionar barcos maiores.
Com eles, cresceram as redes, capazes de raspar o fundo de mares ainda mais distantes. Nem mesmo condições meteorológicas adversas são capazes de impedir a ação dos pescadores industriais.
Outra invenção tecnológica deu ainda mais capacidade aos pesqueiros. A criação de câmaras refrigeradas foi um avanço para eles. Petroleiros foram transformados em cargueiros refrigerados. Eles servem de entreposto em alto-mar para que pesqueiros transfiram a carga sem perder tempo entre portos e zonas de pesca.
Com os sistemas baseados em informações de satélites, os navios ficaram mais eficientes. Materiais mais resistentes e leves levaram à criação de redes ainda maiores. Os cabos e rolos também aumentaram. Corais que antes rasgavam redes passaram a ser dilacerados por materiais modernos. Metal e borracha adjacentes às malhas trituram organismos marinhos em águas profundas. Há recifes que precisam de centenas de anos para se recompor.

O Globo, 04/09/2012, Amanhã, p. 22-28
Recursos Hídricos:Pesca

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