Uma ameaça ao Parque Nacional

CB, Cidades, p. 26 - 19/10/2004
Uma ameaça ao Parque Nacional
Ibama tenta remover cem famílias que vivem no assentamento 26 de Setembro, em Taguatinga. Às margens de uma zona de preservação ambiental, a área tem sido devastada pela ação do homem e é alvo de grileiros

Marcelo Rocha
Da equipe do Correio

Uma área reservada há oito anos para abrigar unidade de conservação ambiental hoje sofre com o abandono. No lugar onde a água brota do solo com facilidade, o que ainda existe de vegetação corre risco de sumir por causa da ação do homem. A erosão rasga o terreno e assoreia córregos da região conhecida como 26 de Setembro, assentamento de sem-terra instalado, em 1996, na zona rural de Taguatinga, às margens do Parque Nacional de Brasília.
A terra maltratada pertence à União desde 1998 e está nos limites da Floresta Nacional, na estrada para Brazlândia (DF-001). Cem famílias moram no local, dividido em chácaras de cinco hectares. O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não admite a permanência delas, mas a retirada depende da transferência da área do Governo do Distrito Federal (GDF), antiga dona do local, para o órgão. Indefinição que se arrasta há mais de seis anos.
Enquanto isso, agrava-se o processo de degradação de matas e nascentes que abastecem córregos. A região deveria servir para amenizar a pressão urbana sobre o Parque Nacional, mas ocorre o inverso. A maioria das 134 famílias de sem-terra assentadas pelo governador Cristovam Buarque foi fisgada pela especulação imobiliária e partiu, substituídas por outras. O lugar é alvo de grilagem.
A fiscalização 24 horas do Ibama não consegue afastar as irregularidades. A gerência regional do instituto no DF tem recebido denúncias sobre o reaquecimento do comércio ilegal de lotes. ‘‘Empresários de Taguatinga estariam investindo dinheiro no 26 de Setembro’’, afirma Francisco Palhares, gerente do Ibama-DF.
Dono de mercado
Caseiro de uma das chácaras, João Badu, 53 anos, mora no lugar há apenas dois anos. Admitiu cuidar da ocupação para um dono de mercado de Taguatinga. ‘‘Até sair acordo sobre essa terra, vou ficando por aqui.’’ Enquanto conversava com a reportagem, monitorava o fogo que acabara de atear no mato para queimar folhas secas. ‘‘É para limpar o terreno.’’
A dona-de-casa Maria de Jesus Souza, 25, chegou no 26 de Setembro quatro anos antes de Badu. Ela, o marido e três filhos vivem num lote com apenas um barraco de madeirite. Maria diz que o lugar pertence a um morador de Taguatinga. A família não recebe salário. Apenas dinheiro para o gasto mensal com energia elétrica. ‘‘Eu morava na barragem (Santo Antônio do Descoberto), mas disseram que o moço precisava de alguém para tomar conta.’’
‘‘Especuladores e grileiros contratam gente para ficar por lá, plantar, fingir que é produtor’’, explicou Palhares. Nas contas dele, apenas 20 famílias são remanescentes do assentamento original. Numa das principais ruas da colônia, um ocupante de lote estendeu faixa na cerca, onde anuncia a venda do terreno.
O 26 de Setembro foi implantado pela Fundação Zoobotânica do DF numa área de 802 hectares, a poucos metros da cerca do Parque Nacional de Brasília. No lugar, era desenvolvido o Proflora III (projeto de reflorestamento ambiental). Com o consentimento da fundação, cada família poderia desmatar até um hectare de floresta, mas o Ibama embargou a colônia por causa dos graves danos ambientais.
Legislação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) prevê que as ocupações nas áreas vizinhas das unidades de preservação ambiental, num raio de 10km, devam ser obrigatoriamente licenciadas, o que não ocorreu no projeto de colonização 26 de Setembro. A polêmica sobre a permanência dos assentados teve um ponto final com a edição de decreto presidencial, em 1998, que criou no lugar da Proflora a Floresta Nacional de Brasília.
Retirada dos ocupantes
Segundo Palhares, o Ibama pretende desenvolver projeto de uso do solo na área. A medida só atingirá produtores rurais. As famílias remanescentes do assentamento original, de 1996, poderão ser enquadradas no programa. ‘‘Não haverá posse da terra, mas apenas concessão de uso para quem pretende trabalhar na terra em harmonia com o meio ambiente.’’
Apesar do que afirma o representante do Ibama, o diretor da Associação de Moradores e Produtores Rurais do Assentamento 26 de Setembro, Solimar Rodrigues, acredita que o processo de ocupação da área é irreversível. ‘‘Para retirar as famílias daqui, o governo terá que indenizá-las. Mesmo as que compraram o direito de uso do lote depois.’’
O destino do assentamento e das famílias que nele moram depende da conclusão do processo de transferência das terras entre o GDF e o Ibama. Passados seis anos da criação da Floresta Nacional, a etapa ainda não foi concluída. Uma das dificuldades se refere ao processo de falência do projeto de reflorestamento Proflora que havia no lugar antes da chegada dos sem-terra.
Parte da terra foi empenhada em empréstimos financeiros, ainda pendentes. A falência da Proflora é conduzida pela Terracap. Procurada pela reportagem, a empresa não se manifestou.

Memória
Assentamento criado em 1996
O assentamento 26 de Setembro recebeu esse nome porque foi naquela data, em 1996, que o governo de Cristovam Buarque assentou 134 famílias de sem-terra na zona rural de Taguatinga. Foram trazidas dos acampamentos montados nas fazendas Grotão e Sarandy, Planaltina. O movimento de luta pela terra foi coordenado por um núcleo de base do PT, o Zumbi dos Palmares.
Assentá-las no 26 de Setembro foi um erro do governo. A área não podia ser desmatada para plantio porque os inúmeros eucaliptos pertenciam ao programa de reflorestamento. Não houve negociação, e no final de 1998, o Governo do Distrito Federal (GDF) teve de começar a retirar os sem-terra. Cerca de 40 famílias foram removidas para São Sebastião. Mas as demais permaneceram na área.
Em junho de 1998, outro ultimato foi dado ao governo local. Os sem-terra precisariam deixar o local, uma das áreas definidas no Decreto 1.299 para a criação da Floresta Nacional de Brasília. A floresta tem nove mil hectares distribuídos em quatro áreas, entre Taguatinga e Brazlândia. Quase todos, terrenos invadidos. E em fase de desmatamento.

Comissão pretende ouvir plano do GDF
Os integrantes da Comissão de Meio Ambiente da Câmara Legislativa pretendem reparar o mal-estar provocado na última sexta-feira, quando uma audiência pública sobre a regularização dos condomínios no Distrito Federal provocou um bate-boca entre governo e oposição. O encontro seria para apresentar o plano de regularização preparado pela União, mas descambou para um confronto político entre integrantes do PT e deputados distritais da base governista.
Na próxima semana, os integrantes da Comissão de Meio Ambiente, presidida pelo distrital Chico Floresta (PT), pretendem ouvir os técnicos da Terracap e da Secretaria de Habitação. Será a vez do Governo do Distrito Federal (GDF) falar do seu plano de regularização.
O convite veio de última hora e ainda será votado quinta-feira pela comissão. ‘‘Queremos que o GDF apresente suas propostas, afinal sem o governo local nada será regularizado’’, disse Floresta.
A audiência pública da sexta-feira causou mais incômodos ao GDF pelos convidados do que pela proposta. Os governistas não gostaram nem um pouco da presença de Geraldo Magela, candidato do PT ao Buriti em 2002. Ninguém do governo do DF foi chamado a discutir o assunto. ‘‘Os representantes da oposição deveriam trabalhar no sentido de uma solução técnica. A pergunta é o que um funcionário do Banco do Brasil estava fazendo numa mesa de discussão sobre terras’’, reclama o porta-voz do GDF, Paulo Fona.
Cancelamento
O mal-estar pode ter influenciado no cancelamento da reunião de ontem, na Terracap, entre técnicos federais e locais. As partes apresentariam mudanças nas propostas para concluir o convênio que vai regularizar os condomínio da União. A justificativa foi de que a presidente da empresa, Maria Júlia Monteiro, teria compromisso anteriormente agendado.
A União continuará com o plano de regularização mesmo que o GDF não assine o convênio. O Ibama está preparando os termos de referência para a execução do Estudo de Impacto Ambiental de Vicente Pires, Itapuã e Vila Basevi. ‘‘É preciso haver uma parceria’’, afirma a líder do PT na Câmara Legislativa, Arlete Sampaio. ‘‘Se o governo do DF, por algum motivo político, não participar do debate, a situação vai ficar complicada’’, completa Chico Floresta.
A conclusão da parceria do Buriti com o Planalto é esperada desde o ano passado. No final de 2003, o Ministério das Cidades e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) apresentaram as propostas de regularização à Secretaria de Desenvolvimento e Habitação (Seduh) e à Terracap. As negociações foram esparsas.
No mês passado, as conversações recomeçaram. O governo Lula quer iniciar a regularização das terras da União no DF até 2006, mas precisa do governo local. ‘‘O GDF vai trabalhar tecnicamente. O momento não é de partidarização, mas de solução de um problema grave’’, diz Fona.

Restam poucos pioneiros
Valdete Guedes, 39 anos, já plantou milho e feijão no terreno acidentado às margens do córrego Cana do Reino. Hoje, apenas pés de mandioca são vistos no terreno de cinco hectares. ‘‘O Ibama não deixa a gente fazer nada aqui. Não podemos plantar, adubar ou construir’’, lamenta o sem-terra assentado pelo governo local em 1996.
A produção agropecuária no 26 de Setembro quase não existe. O abandono é marca do lugar. A erosão avança sobre a terra e engole estradas. Há trechos onde só se passa a pé ou de bicicleta. O assentamento é organizado por ruas. São seis. Os lotes das quatro primeiras contam com energia elétrica. O serviço não chegou às demais. Cisternas garantem abastecimento de água.
Os primeiros ocupantes da terra, caso de Valdete e do vizinho Adelson Pereira da Silva, 48, denunciam falta de empenho das autoridades na busca de solução. ‘‘Vivemos abaixo da linha de desgraça. Quem vai ficar aqui é rico, pode anotar’’, desabafou Adelson. O agricultor é pai de Silmara Marques da Silva, 11. A menina perdeu quatro dedos em acidente há duas semanas.
Silmara estuda em Taguatinga e o ônibus em que seguia para a aula junto com outras crianças se envolveu em batida com coletivo da viação Lototáxi na DF-001. ‘‘Isso não teria ocorrido se nossa comunidade contasse com escola ou estradas decentes. Os ônibus que buscam nossas crianças se atrasam por causa dos buracos e tentam tirar o atraso na rodovia.’’
Adelson e Valdete reclamam que foram colocados no lugar pelo governo e chegaram a receber incentivos para produzir. ‘‘A Emater e a Secretaria de Agricultura nos acompanharam. Recebemos até crédito no banco para plantar. Tudo isso se foi com o decreto que transformou essa área toda em floresta. Mas cadê a floresta?’’, indigna-se Adelson.

CB, 19/10/2004, Cidades, p. 26
UC:Floresta

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