O Globo, Amanhã, p. 8-15 - 24/12/2013
Castelos sitiados da Mata Atlântica
Estudo exclusivo revela que, entre Rio e São Paulo, áreas mais inacessíveis das montanhas se tornaram o último reduto da Floresta Atlântica. Isolamento, porém, ameaça a sobrevivência das espécies mais espetaculares, como grandes macacos e onças pintadas. No pé da serra, rios estão degradados
SÃO PAULO - A Mata Atlântica resiste equilibrada nas alturas. É nas encostas mais íngremes, úmidas e escorregadias da Serra do Mar que a natureza dribla o homem e sobrevive à exploração. Um estudo feito pela Fundação SOS Mata Atlântica para a Revista Amanhã mostra que, nos últimos dez anos, a perda de mata fechada entre os estados do Rio de Janeiro e São Paulo diminuiu. Entre 2003 e 2013, foram desmatados 18 hectares. Na década anterior, 105 hectares haviam ido abaixo ao longo da Rodovia Litorânea, a Rio-SP, entre Bertioga (SP) e Paraty (RJ). A perda diminuiu porque a mata resiste onde dificilmente o homem consegue chegar.
Espécie de muralha a barrar o oceano, a Serra do Mar vence pela dificuldade do relevo. Entre 2000 e 2010, a população das cinco cidades - Bertioga, Caraguatatuba, Ubatuba, São Sebastião e Paraty - do trecho Rio-São Paulo cresceu 39,53%, muito acima da média dos dois estados. Para se ter uma ideia, Bertioga viu sua população aumentar 79%. Paraty, 33,5%. O crescimento urbano isolou a mata nas partes mais elevadas das montanhas. Se a cobertura florestal resistiu isolada, porém, isso não significa que esteja saudável. O confinamento nas montanhas causa impacto negativo sobre algumas espécies da Mata Atlântica. Grandes macacos, como bugios e muriquis, desaparecem por falta de alimento. Principalmente, o palmito, presente nas áreas mais baixas. Antas e saguis se refugiam nas partes mais altas das escarpas, onde o clima é mais úmido e frio. A população de onças pintadas, alertam pesquisadores, já não atinge 250 animais adultos em oito núcleos espalhados pela Mata Atlântica em todo o todo o país e há pouquíssimos exemplares na Serra do Mar. E o crescimento das cidades avança ao pé da serra: a restinga deu lugar a construções numa área de 208 hectares.
- O desmatamento hoje é estilo formiguinha. Não há mais grandes áreas a desmatar. Casas e puxadinhos surgem aos poucos no pé da serra. Quando se vê, já estão instalados - diz Márcia Hirota, diretora da SOS Mata Atlântica.
Em três municípios do Litoral Norte paulista - Caraguatatuba, Ubatuba, São Sebastião - a taxa de crescimento populacional tem sido de 2,26% ao ano, quase o dobro da média do estado. O aumento do número de pessoas vivendo na região não pressiona apenas pela ocupação física de espaços antes dominados por vegetação de restinga e mangues. Mais gente significa também mais esgoto e lixo, além de edificações. O lixo produzido na região sobe a serra em caminhões, pela Rodovia dos Tamoios, para chegar a aterros sanitários. No estudo, a SOS Mata Atlântica comparou também a poluição de dez rios localizados entre Rio e São Paulo e que cortam áreas urbanas. Todos registraram piora, com pontuação mais baixa. Em dez anos, a qualidade da água do Rio Sahy, em São Sebastião, passou de boa para regular. A do Rio Boiçucanga, de regular para ruim. Em São Sebastião, o Rio do Topo, cuja nascente na escarpa da serra desapareceu sob ocupação irregular, não passa hoje de um córrego canalizado e a qualidade da pouca água que escorre por ali passou de regular a péssima em apenas uma década.
- Aqui havia muita tainha. Os peixes subiam o rio para desovar, mas ninguém quis saber disso e começaram a pescar com rede. Agora não tem mais nada, acabou - lamenta José Reinaldo Correa, de 66 anos, há 30 morando às margens do Rio Santo Antonio, em Caraguatatuba, cuja classificação caiu de boa para regular na coleta realizada pela SOS Mata Atlântica. Na região, desapareceram a tainha e o pato mergulhão, uma das espécies ameaçadas de extinção em todo o país.
Fertilizantes e esgoto
Nesta época do ano, início do período chuvoso, há aumento da poluição difusa, causada por lixo, fertilizantes, assoreamento ou desmatamento no entorno das nascentes. O uso de fertilizantes em excesso nas poucas áreas onde persistem plantações de milho ao pé da serra é também uma explicação para o desaparecimento de peixes em vários rios do litoral norte paulista. A outra é o esgoto.
- A piora na qualidade da água é mais um alerta às autoridades e órgãos de controle. Esses rios não comportam mais o aumento da população em seu entorno ou outorgas para uso da água. E não podem receber efluentes também pela baixa capacidade de autodepuração - lembra Márcia Hirota.
O fato é que o desenvolvimento turístico e o aumento no número de edificações acontecem sem planejamento.
- A restinga e os manguezais são ecossistemas associados à Mata Atlântica da serra. São zonas intermediárias entre o ambiente marinho e terrestre e há nelas fluxo de fauna e dispersão de sementes. É essa conexão que garante a biodiversidade da mata. A urbanização não leva em conta a necessidade de preservar essas áreas de conexão - explica o biólogo Daniel Fuser.
A proliferação de pousadas e um incentivo ao turismo a qualquer preço têm ameaçado até mesmo os redutos mais preservados do trecho Rio-São Paulo, entre Ubatuba e Paraty.
- Paraty precisa ser repensada. Não há um estudo de capacidade de suporte de quantos turistas o município é capaz de receber mantendo qualidade mínima nos serviços básicos. Antes eram só as praias que lotavam. Agora até mesmo as cachoeiras ficam repletas de gente e lixo - conta Luiz Gatti, que mora em Paraty e administra o Condomínio Laranjeiras, reduto de mansões na Praia do Sono, que providencia o tratamento de seu esgoto.
Transformação econômica
O excesso de turistas em Paraty causa transtornos na região. No último réveillon, o município ficou sem água e sem luz. Embora durmam na cidade, os visitantes compram pacotes de excursão para passar o dia em praias vizinhas.
Entre elas estão a da Vila de Trindade, cuja piscina natural é parte do Parque Nacional da Bocaina, e a Praia do Sono, inserida no mosaico da Área de Proteção Ambiental (APA) Cairuçu e da Reserva Ecológica da Juatinga. Resultado: as areias antes desertas e selvagens superlotam nos feriados, com acúmulo de lixo e congestionamento de veículos na estreita e sinuosa via de acesso.
O trecho entre Ubatuba e Paraty é onde a serra fica mais próxima ao mar. Roberto Mourão, do Instituto EcoBrasil, lembra que é a umidade do oceano que garante a exuberância da mata. Segundo ele, ali só chove menos do que na Amazônia.
Mourão acaba de finalizar um estudo para determinar a capacidade de recebimento de turistas nas praias. O cálculo leva em conta uma área de 20 metros quadrados por pessoa, cinco vezes o recomendado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A ideia é envolver as comunidades caiçaras, as empresas de turismo e comerciantes na adoção de regras que limitem a quantidade de visitantes, preservando a oferta de serviços básicos e garantindo o bom estado das trilhas e acessos a cachoeiras.
- O turismo é uma atividade econômica que tem de ser controlada. Não se trata de discutir direito de ir e vir, mas da exploração desordenada de recursos naturais. A vocação desta região é justamente de turismo de natureza e a qualidade da experiência é estar numa praia mais deserta e selvagem. Para isso, é preciso que ela seja protegida de alguma forma - diz Mourão.
A única praia da área que tem visitação controlada é a da Vila de Ponta Negra. Como o acesso é feito somente por barco, a própria comunidade se encarrega de suspender o serviço quanto o número de visitantes atinge determinado patamar.
O município de Bonito, no Mato Grosso do Sul, é considerado um modelo adequado de turismo sustentável para a região de Paraty justamente pela capacidade dos empresários e do Poder Público adotar um modelo de visitas controladas, evitando que o excesso de turistas coloque em risco as belezas naturais.
Mourão observa que, no caso das unidades de preservação no entorno de Paraty, a intensa movimentação por trilhas e cachoeiras afugenta a fauna e cria problemas de acúmulo de lixo.
No trecho entre Caraguatatuba e Bertioga o alerta vem dos efeitos gerados pelo investimento em grandes obras de duplicação de portos, usinas para produção de gás, terminais de contêineres, dutos e duplicação de estradas e criação de alças de acesso para interligar as cidades do litoral com o Vale do Paraíba. O anúncio de investimentos na região fez disparar o preço dos imóveis, criando dificuldades de permanência para a população tradicional. A valorização e a impossibilidade de acesso a imóveis em loteamentos legais, quase sempre destinados ao veraneio das classes mais altas, a população de renda mais baixa é atraída para loteamentos clandestinos no pé da serra.
- Há um processo de transformação econômica do Litoral Norte de São Paulo nunca visto, com o início de um ciclo industrial. Não se trata de limitar o desenvolvimento, apenas de criar modelos de gestão capazes de evitar que o caos se instale. É uma tsunami, um movimento ainda invisível para a maior parte da população da região - diz Edson Lobato, do Instituto Bonete.
O instituto atua na preservação da região e de Ilhabela. O cenário paradisíaco desta última será em parte encoberto pelas operações do Porto de São Sebastião.
Segundo Lobato, há enorme pressão do setor imobiliário local para alterar o plano diretor das cidades e abrir espaço para aumentar a área construída nos terrenos e a verticalização. A pressão urbana sobre o Parque Estadual da Serra do Mar levou o governo do estado de São Paulo a estudar novos mecanismos de proteção. O parque ocupa 110 mil hectares de terras apenas no trecho do Litoral Norte. A área de proteção integral representa 72% do município de Ubatuba, 68% do território de São Sebastião e 68% de Caraguatatuba.
- A dinâmica econômica gera demanda por mão-de-obra e crescimento urbano. Com pressão por moradia, a tendência é o surgimento de ocupações irregulares em direção ao parque. Dependemos de planejamento urbano e licenciamento ambiental dos municípios - afirma Rodrigo Victor, diretor da regional Litoral Norte da Fundação Florestal.
Ameaça exótica
A proteção do Parque Estadual da Serra do Mar, que abriga 315.000 hectares de Mata Atlântica entre o Sul de São Paulo e a divisa com o Rio, será reforçada no Litoral Norte com a adoção de um sistema inteligente de monitoramento que inclui um radar, satélites e câmeras de segurança. O trecho terá ainda 20 centros de visitantes e postos de vigilância, além 188 postos de monitoramento 24 horas.
A principal ação, porém, é a atração de turistas para pontos específicos do parque e a educação ambiental, evitando a entrada desordenada de pessoas nas áreas de proteção integral. Em 2014 será licitada a construção de 150 quilômetros de trilhas turísticas. O projeto prevê a abertura, com infraestrutura, de 44 trilhas na Serra do Mar entre Rio e São Paulo, seis delas adaptadas a portadores de necessidades especiais. Os trajetos serão monitorados por educadores.
- As trilhas terão estudos de capacidade de suporte e evitarão que os visitantes saiam para outras áreas ou façam muito barulho, incomodando os animais - diz Victor.
Também chama atenção de quem trafega pela Rodovia Litorânea, que permite uma das visões mais bonitas do litoral brasileiro, a proliferação de mansões encravadas no alto de morros à beira-mar.
A ocupação destas áreas, muitas delas com paisagismo exótico, cria também uma das visões mais chocantes da Mata Atlântica: o surgimento de pequenas florestas de pinus, espécie invasora com capacidade de espalhar suas sementes a longas distâncias.
- O pinus é uma espécie exótica e invasora, que se multiplica rapidamente e impede o crescimento da vegetação nativa. Há problemas deste tipo em unidades de conservação no Sul do país. Muita gente planta algumas árvores para usar a madeira em futuras construções e cria um problema ambiental - afirma o engenheiro agrônomo Eduardo Rosa, que acompanha, via satélite, os redutos de Mata Atlântica que restam pelo país.
Metas para o oceano atlântico à deriva
Dois anos atrás, o governo federal compromete-se com uma meta que, agora, parece impossível de alcançar. Em uma reunião da Convenção sobre Diversidade Biológica, o Brasil assumiu a meta de criar, até 2020, unidades de conservação que protegessem 10% de suas águas marinhas e costeiras. Até agora, apenas 1,57% delas está livre da exploração econômica. No ritmo atual, serão necessários 563 anos para o país cumprir o prometido.
Um dos maiores exemplos do descaso com o mar está no litoral norte de São Paulo, no Arquipélago dos Alcatrazes. Formado por cinco grandes ilhas e uma série de outras menores, Alcatrazes tem 161 espécies ameaçadas e, devido ao seu isolamento geográfico e fauna e flora particulares, é considerado um rico laboratório científico. Há três anos, ambientalistas, apoiados pela Marinha, discutem a criação de um parque nacional que proteja aquele ecossistema. A proposta está engavetada no Ministério do Meio Ambiente. Procurado, o ministério não se manifestou até o fechamento desta edição.
- Este é um processo em que todas as arestas já estavam concluídas, e até agora não sabemos por que está parado - lamenta Guilherme Dutra, diretor do Programa Marinho da Conservação Internacional. - Na verdade, nenhuma área de proteção marinha foi criada no país desde 2009.
Alcatrazes é um lugar cada vez mais popular entre pesquisadores. Em 2009, sete estudos foram realizados no arquipélago. Este ano, 53 já passaram por lá. A proposta é abrir a área para mergulho e turismo controlado, evitando o impacto nos recifes de corais.
Para a bióloga Leandra Gonçalves, consultora da Fundação SOS Mata Atlântica, Alcatrazes ilustra "a crescente falta de vontade política" contra a criação de unidades de preservação marinhas.
- Diversas entidades já reivindicaram a criação de novas unidades de conservação no mar, mas até ainda hoje não obtivemos resposta - protesta.
Leandra destaca que o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), responsável pela determinação de áreas que devem ser protegidas na terra e no mar, elenca uma série de medidas que nada tem a ver com as águas - por exemplo, como indenizar proprietários ou abrir estradas. Isso, segundo ela, ilustra a negligência no tratamento dispensado às áreas marinhas.
- O ideal seria criar uma legislação voltada exclusivamente para a conservação do mar - ressalta.
Sem identificação
O controle das águas, segundo Leandra, está sob a rede da pesca industrial, da mineração e da exploração de petróleo - setores inconciliáveis com a criação de unidades de conservação marinhas.
- Não pode haver um monopólio do uso extrativo - condena. - Devemos seguir a tendência dos países desenvolvidos, que buscam um equilíbrio: existem áreas com mais atributos para a conservação e turismo sustentável, enquanto outras são destinadas à exploração do petróleo.
Outra questão é como proteger o que não se conhece. O Atlântico Sul ainda é um enigma para os cientistas. Até 2010, pensava-se que o oceano era o lar de 622 espécies endêmicas. Um levantamento realizado durante uma década elevou este número para 6.168.
- Falta informação porque não há recursos, uma situação vista no Brasil - ressalta Leandra. - Da mesma forma que o desenvolvimento tecnológico levou a pesca e o petróleo a áreas mais remotas do oceano, a ciência também deve evoluir e conhecer melhor regiões pouco estudadas, como a cordilheira submarina entre Vitória e Trindade. Se houver mais pesquisas, temos mais argumentos para criar novas unidades de conservação.
Cerca de 80% da população brasileira - ou 160 milhões de pessoas - vivem a até 200 quilômetros da costa. A proximidade do mar deveria provocar um zelo por sua preservação. Mas, segundo o ex-secretário nacional de Biodiversidade e Florestas, José Pedro de Oliveira Costa, o panorama é o oposto.
- Vemos problemas com o tratamento de esgoto, excesso de embarcações e a falta de regulação do lazer na praia - lamenta. - Ninguém sabe o que está debaixo d'água. É preciso evidenciar o problema, que só fica claro com danos econômicos, como a crise do pescado e derrames de petróleo. Depois de o lucro ser extraído, o ambiente se esgota.
O Globo, 24/12/2013, Amanhã, p. 8-15
http://oglobo.globo.com/ciencia/revista-amanha/areas-inacessiveis-de-montanhas-se-tornam-reduto-de-mata-atlantica-11147364
Mata Atlântica:Desmatamento
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