A Arqueologia cresce na Reserva Amanã

Instituto Mamirauá - http://www.mamiraua.org.br - 28/09/2017
Na Boa Esperança, é comum ter os pés sobre o passado. Em caminhos de terra, hortas e quintais, é possível encontrar restos de cerâmica e fragmentos de ossos e carvões que guardam milênios de história. Vestígios de antigas populações em uma comunidade ribeirinha na Amazônia. Para a Arqueologia, o local é um portento em tamanho e riqueza em termos de escavação: o segundo maior sítio arqueológico conhecido na região do Médio Solimões, estado do Amazonas, em meio a um povoamento com cerca de 80 famílias. Recentemente, uma equipe de especialistas, liderada pelo Instituto Mamirauá, realizou uma expedição para investigar os limites espaciais e temporais da Boa Esperança.

De volta de 26 dias de campo, a pesquisadora associada do Instituto Mamirauá, Márjorie Lima, informa que as fronteiras foram expandidas. "Sítios arqueológicos na Amazônia costumam ser muito grandes. Agora, nessa escavação, verificamos que o sítio da Boa Esperança tem mais de 20 hectares. Foram identificadas áreas inéditas de ocupação humana e de mudança de ocupação dentro do sítio".

Novidades sobre a ocupação humana da região

A partir de casos como o do sítio arqueológico da Boa Esperança, Márjorie Lima analisa o período de mudança da vida nômade para o sedentarismo na Amazônia, cientificamente chamado de tradição ou cultura Pocó-Açutuba. Essa cultura é reconhecida pela presença de cerâmicas elaboradas e pintura em tons de vermelho, alaranjada, amarela e preta. Foi quando povos ancestrais começaram a morar por mais tempo em certas regiões e exercer maior influência sobre a paisagem. A terra preta, um tipo de solo escuro e com alta fertilidade encontrado em sítios arqueológicos amazônicos, é um exemplo dessas mudanças.

"A cultura Pocó-Açutuba é associada à formação inicial das terras pretas. Elas são um indício de um processo de sedentarização das pessoas, que teve início há pelo menos 1000 anos antes de Cristo e fica cada vez mais evidente ao longo da ocupação desses sítios", explica Márjorie, cuja pesquisa é desenvolvida junto ao Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP).

Com as escavações na comunidade Boa Esperança, os arqueólogos descobriram evidências de ocupação Pocó-Açutuba por um tempo maior do que se conhecia. "Temos indícios que durante esse período talvez tenham sido formadas as áreas de terra preta na região da Boa Esperança. Uma extensão mais longa da ocupação 'Pocó' do que acreditávamos", observa a arqueóloga.

Longa em vários sentidos. De acordo com as descobertas da expedição, os antigos habitantes do período Pocó-Açutuba não apenas ocuparam uma larga área na Boa Esperança, em uma linha paralela ao lago Amanã (que circunda a comunidade), mas também mudaram de lugares dentro desse espaço. "Trata-se de um sítio arqueológico formado por várias ocupações e dentro de cada ocupação também houve mudanças, diferentes áreas de atividades relacionadas ao movimento de ocupação desse sítio", diz a arqueóloga.

A floresta humanizada

Durante a expedição, também foi feita a coleta de carvões. Os carvões são restos de plantas carbonizadas que ajudam a entender as modificações que as populações pré-coloniais realizaram na floresta, como a domesticação de plantas, a exemplo das castanheiras e de palmeiras, caso do famoso açaizeiro. Indícios que contrariam o velho mito da Amazônia como "floresta intocada".

"A arqueobotânica na Amazônia brasileira ainda é incipiente. Com a análise dos vestígios vegetais, vamos conseguir respostas sobre o uso de algumas plantas há centenas ou milhares de anos, e trazer dados muito concretos e fundamentais sobre o manejo da paisagem amazônica", afirma Mariana Cassino, pesquisadora do Instituto Mamirauá e especialista na relação entre Botânica e Arqueologia.

Em pequenos espaços abertos na terra, chamados de unidades de escavação, as coletas foram realizadas em níveis de 10 em 10 centímetros. "De acordo com a interpretação de cada unidade escavada em conjunto com outros vestígios encontrados, como ossos e cerâmicas, vamos compreender em que contexto aqueles carvões estão colocados, se em contexto de fogueira doméstica, de cozinha, de ritual, de enterramento, ou outro", conta Mariana.

Voltando os olhos para as plantas no presente, os pesquisadores organizaram um mapeamento participativo e um levantamento florístico na comunidade Boa Esperança para saber quais espécies são mais usadas pelos moradores e quais delas devem ao manejo feito pelos antigos ocupantes da região.

"Nós entendemos que existe uma continuidade na história das plantas, elas foram domesticadas ou tiveram algum grau de domesticação pelas populações antepassadas, como é o caso do açaí e da pupunha, a única palmeira que é totalmente domesticada da Amazônia, várias plantas que ainda hoje são muito importantes na vida das comunidades e de todos nós", afirma a pesquisadora. "Estamos olhando para as plantas do passado e do presente, tudo no mesmo lugar".

Você sabe o que faz um(a) arqueólogo(a)?

Para os habitantes da Boa Esperança, tão comum quanto os vestígios arqueológicos é a presença de pesquisadores no local. O Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), tem uma tradição de estudos e projetos no interior e entorno da comunidade, em temas que vão da produção orgânica à própria Arqueologia. Mesmo assim, dos mais velhos às crianças de colo, ainda pode caber a dúvida: porque tanta gente vem de fora, de outros estados e países, para estudar coisas que estão enterradas na terra?

Para mostrar como é feito e qual a relevância do trabalho arqueológico e de entender o passado da região, uma equipe de profissionais do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, parceira no trabalho, desenvolveu um diagnóstico e oficinas sobre educação patrimonial para 21 professores e cerca de 100 estudantes da Boa Esperança e das comunidades vizinhas no lago Amanã.

"Além disso, fizemos um trabalho etnográfico de diálogo com pessoas da comunidade que têm diferentes relações com os sítios e com os vestígios arqueológicos, levantando a história de vida dessas populações e as relações delas com os estudos de Arqueologia, o que vai nos ajudar a planejar as próximas atividades e também um plano de educação patrimonial para essa região", afirma o educador Maurício Silva, do MAE/USP, que participou da expedição.

Arqueologia para a conservação da Amazônia

As pesquisas arqueológicas encabeçadas pelo Instituto Mamirauá têm outro importante viés: o da conservação. Não à toa a comunidade Boa Esperança, palco das últimas escavações, está localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã. Com uma área de 2.350.000 hectares, superior ao território de muitos países, a Reserva Amanã é uma das primeiras áreas protegidas no Brasil a abrigar a prática de conservação da natureza em conjunto com a melhoria da qualidade de vida de suas populações humanas.

"Uma das nossas preocupações é ver como essa relação se dá olhando para a Arqueologia e, quando a Arqueologia olha para o passado, que resposta a gente tem disso para a contemporaneidade", ressalta a arqueóloga Márjorie Lima. "Qual é a proximidade do uso atual desse espaço com a maneira com que os indígenas o ocuparam e cuja ocupação transformou a Amazônia há milhares de anos. Para nós, isso se reflete em vários pontos de encontro, numa forma de uso sustentável, uma forma de sustentabilidade antes dessa palavra sequer existir, por isso acreditamos que o envolvimento das pessoas que atualmente moram no Amanã é fundamental para conduzirmos esses diálogos".

"Uma coisa que instiga os nossos estudos é que existem categorias de unidades de conservação no Brasil, chamadas de proteção integral, que proíbem a residência de pessoas. E a dúvida é porque não pode ter ninguém? Se muitas vezes o que você está preservando é fruto da interação de sociedades indígenas do passado com o meio ambiente? O problema não é a presença de pessoas, mas como você se relaciona com a natureza", concorda o arqueólogo e pesquisador do Instituto Mamirauá, Eduardo Kazuo Tamanaha.

Em laboratório

O material resultante da expedição agora vai ser catalogado e submetido a análises de laboratório. "No total, foram coletados 22 engradados de material, entre sedimentos, micro e macro vestígios. É bastante coisa, material para pelo menos oito meses de trabalho", garante Márjorie Lima.

Parcerias

A expedição arqueológica na comunidade Boa Esperança foi coordenada pelo Instituto Mamirauá, em parceria com a Universidade Estadual do Amazonas (UEA), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade de São Paulo e Universitat Pompeu-Fabra, da Espanha.

As atividades tiveram recursos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação Gordon and Betty Moore, organização de fomento à avanços e científicos e conservação do meio ambiente.



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