Os extremos do Marajó: ilha sintetiza riqueza e desigualdade da Amazônia

O Globo - https://oglobo.globo.com/brasil - 18/05/2025
Os extremos do Marajó: ilha sintetiza riqueza e desigualdade da Amazônia
Vizinha da COP30, região combina vasta biodiversidade e cultura milenar a isolamento e baixos indicadores de qualidade de vida

Por Ana Lucia Azevedo - Ilha de Marajó

18/05/2025 03h31 Atualizado há um dia

Na Lua nova a treva reina em Marajó. Noites assim suscitam histórias e rituais de encantaria, tradição religiosa de origens indígena e africana presente no Pará. Mas não são seres encantados que preocupam os moradores da comunidade do Pesqueiro, na Reserva Extrativista Marinha de Soure, Marajó. O que assombra é a "maré grande", ainda maior nas luas nova e cheia, que engole casas e leva para o fundo das águas lugares e histórias de vida.

No chamado inverno amazônico, de dezembro a maio, a maré agrava a erosão, de um tipo específico da costa marajoara. Ela destrói comunidades e praias, mas está longe de ser o único problema de Marajó, nome do arquipélago, de sua maior ilha e da região do Pará que compreende 17 municípios e alguns dos piores indicadores de qualidade de vida do Brasil. Em ano de COP30, Marajó é uma síntese de riquezas e misérias da Amazônia.

Três dos municípios marajoaras estão entre os dez de menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM, que mede longevidade, educação e padrão de vida) do Brasil: Melgaço (o menor do país, 0,418, classificação de muito baixo), Chaves (o sexto pior) e Bagre (o oitavo).

Somente dois (Soure e Salvaterra) estão na categoria de IDHM médio e, ainda assim, têm mais da metade da população em extrema pobreza.

É o caso da ribeirinha Lucineide Borges, de 52 anos, a vida toda no Pesqueiro. Sua casa ficava a um quilômetro do rio, mas agora as ondas estouram nas paredes e correm por baixo do piso de madeira equilibrado sobre palafitas. Quando recuam, carregam areia e deixam o terreno ainda mais instável.

- A noite é pior. A maré cresce. O barulho fica muito forte. Somos quatro aqui e achamos que a qualquer momento seremos levadas pelas águas. Mas não posso fazer nada a não ser rezar e esperar - resigna-se ela, viúva, que mora com as filhas e a neta.

Os vizinhos, vários deles desalojados pelas águas e a erosão, fizeram um bingo para arrecadar recursos para comprar madeira e construir uma casa nova. Mas já faltam terrenos seguros e a comunidade quer a ajuda de autoridades para se realocar.

- Precisamos de adaptação climática. Aqui as previsões do futuro chegaram sem que tenhamos resolvido os problemas do passado. Somos refugiados ambientais. Vemos na COP30 uma oportunidade para chamar atenção que os problemas da Amazônia não se resumem a desmatamento - frisa o estudante de graduação em tecnologia de alimentos e morador do Pesqueiro Matheus Adams Almeida, de 22 anos, integrante do Observatório do Marajó, uma ONG que faz ciência cidadã e monitoramento ambiental.

A terra do perto longe
A menos de 100 quilômetros de Belém, que se renova para receber a COP30, a cúpula mundial do clima, Marajó representa a Amazônia que é solução e problema para as mudanças climáticas. Como altos e baixos das marés, Marajó oscila entre riqueza e pobreza extremas.

Nessa terra anfíbia sob o domínio da água, inexistem fronteiras entre urbano, rural e silvestre. Está ali a Amazônia da exuberância de cultura e biodiversidade, de campos ao norte e florestas, no sul. E também aquela das sequelas do desmatamento histórico, do isolamento e da miséria e das desgraças dela decorrentes, como exploração infantil e analfabetismo elevado.

A menção a Marajó inflama redes sociais e serve de munição para ataques ao governo, que rebate. Discussões que se renovam, como os mandatos, mas não resolvem os problemas da região.

Convivem no mesmo espaço, o potente legado da famosa cerâmica marajoara, praias que atraem turistas e búfalos que, de tão bem adaptados, se tornaram símbolos locais. Mas também se trata de uma região em que em todos os municípios, à exceção de Soure (7,8%), o acesso à internet não chega a 5% da população, segundo o Barômetro da Sustentabilidade, produzido pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa), ligada ao governo do Pará.

O isolamento não é só digital. É total. Os municípios marajoaras não têm comunicação entre si, à exceção de Soure, Salvaterra e Cachoeira do Arari. Mesmo se estando na ilha, para se chegar a qualquer um dos demais, é preciso ir a Belém. Melgaço, por exemplo, fica a 14 horas de barco, a despeito de estar no continente.

Chaves, embora seja no Pará, fica mais perto do Amapá: Macapá está a seis horas de distância, Belém a mais de 48 horas, de barco. Santa Cruz do Arari, no interior da ilha, nem isso. Fica praticamente inacessível na estação chuvosa. O município mais acessível, Salvaterra, está a cerca de 3 horas da capital paraense.

- Marajó é uma síntese da Amazônia. Um lugar de encontro de povos, mas historicamente esquecido pelas políticas públicas, objeto de planos nunca levados adiante. Caso de comunidades ribeirinhas isoladas e sem acesso a serviços básicos, que se multiplicam pela Amazônia afora - salienta a ecóloga do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) Ima Vieira, considerada uma das maiores especialistas do país no impacto do desmatamento e na restauração da Amazônia.

O fato de que muitos municípios são seculares e da cultura marajoara ser milenar não tornou as coisas mais fáceis. Autora de estudos sobre a ecologia e indicadores socioambientais marajoaras, Ima Vieira passou a infância entre Muaná, de onde vem a família de sua mãe, e Cachoeira do Arari, onde seu pai foi juiz. O contraste entre riqueza natural e pobreza da população marcaram esses primeiros anos e a influenciaram a estudar o meio ambiente.

A ilha do Marajó, onde ficam 12 municípios, tem 40 mil km2 - cerca do tamanho do estado do Rio de Janeiro (43 mil km2) - é a maior ilha fluviomarinha do mundo. Toda ela é Área de Proteção Ambiental (APA), o que nunca impediu variados tipos de exploração. Apenas cerca de 1% da área é de proteção integral.

Já o arquipélago é composto por mais de 2,5 mil ilhas e ilhotas e é a principal parte do Estuário Amazônico, onde deságuam o Rio Amazonas e dois de seus principais afluentes, Xingu e Tocantins.

É a região do maior encontro entre a água doce fluvial com a salgada do oceano da Terra. Segundo o "Atlas do Estuário Amazônico", publicado pelo MPEG, a vazão anual do Rio Amazonas é de cerca de 6.560 km³ por ano. O volume anual da descarga do Rio Amazonas abasteceria o consumo doméstico brasileiro por 550 anos, estimado em 12 km³/ano.

Águas de amor e ódio
As águas são senhoras absolutas de um lugar cujo significado do nome indígena remete ao mar, nome pelo qual é conhecido tanto o Atlântico quanto à Baía de Marajó que, na verdade, é composta por rios. Marajó poderia significar "tirado do mar" ou simplesmente "o mar".

Fato é que a erosão agravada pelas marés é resultado dos encontros diários de rios e mar, amantes que se unem sem nunca fazer as pazes.

Seis dos 12 municípios da ilha de Marajó têm áreas de risco de erosão, diz Homero Reis de Melo Júnior, superintendente do Serviço Geológico do Brasil (SGB) em Belém. O número pode ser maior porque só oito municípios foram estudados - o SGB atua a pedido das prefeituras.

A erosão que desaloja comunidades é parte do mesmo processo natural que formou essa parte do litoral do Pará. O estudo "Impacts of anthropocene sea-level rise on people, environments, and archaeological sites in Marajó Island, Brazilian Amazonia", publicado no Journal of South America Earth Sciences e liderado por cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), revela que a erosão acelerou nas últimas cinco décadas. Na Praia da Barra Velha, em Soure, isso representou a perda de 500 metros de faixa de areia.

A erosão é agravada por fatores humanos, acrescenta Sheila Teixeira, gerente de Hidrologia e Gestão Territorial do SGB/Belém.

Tem-se o somatório dos fatores naturais (o estuário do rio mais volumoso do mundo e a maré do Atlântico), das altas vazões dos rios amplificadas por chuvas extremas, do desmatamento (que tornou as margens mais vulneráveis) e de ocupação crescente e desordenada.

As ondas de maré solapam a terra numa parte do dia e as correntezas dos rios em outra. A terra, sem a proteção da vegetação nativa, seja várzea ou manguezal, acaba por sucumbir e desmoronar.

A poderosa força da erosão fluviomarinha, que difere do fenômeno das terras caídas em rios amazônicos, só começou a ser melhor compreendida recentemente. Sua descrição estará no "Atlas de Risco Geológico e Hidrológico da Amazônia", que será apresentado pelo SGB durante a COP30, em novembro.

A tendência é de piora. Tanto devido a processos geológicos naturais quanto ao aumento da ocupação humana e a fatores climáticos.

Marajó é considerada uma das áreas mais vulneráveis do país à elevação dos mares porque é quase toda plana. Tem altitude média variando entre quatro e oito metros.

A elevação do mar não é o único problema decorrente de mudanças climáticas a atingir Marajó. Seus municípios também são os mais vulneráveis do litoral Pará a eventos extremos, segundo a pesquisa "Socioenvironmental Vulnerability to Climate Change: Conditions of Coastal Municipalities in Pará State", liderado pela Universidade Federal do Pará.

Em maior risco estão Afuá, Chaves e Soure. A pesquisa ressalta que a vulnerabilidade ao clima aumenta devido ao desmatamento, baixa escolaridade, pobreza e urbanização desordenada.

A taxa de elevação do nível dos oceanos mais do que dobrou desde a década de 1990. Na costa atlântica da América do Sul, chegou a 3,96 mm, mais que a média global de 3,42 mm, segundo a Organização Mundial de Meteorologia (OMM). O que parece pouco é suficiente para erodir o litoral, contaminar o lençol freático com água salgada, afundar terrenos e aumentar ressacas e marés.

Na briga dos rios com o mar quem perde é o ser humano. Marés sempre fizeram parte da vida das comunidades ribeirinhas de Marajó, mas a erosão piorou muito desde fevereiro de 2024, conta Júlia Maria Pereira da Silva, de 62 anos, uma das lideranças do Pesqueiro.

- Nós não paramos de perder. A erosão leva nossas praias, nossa casa e nosso sustento. Não se pode pescar nem pegar caranguejo. Também não podemos dar prosseguimento à atividade de turismo comunitário. Trabalhei por 40 anos num lugar que agora está no fundo do rio - salienta ela, que ano passado precisou fugir às pressas com a família, quando numa noite sua casa foi tragada pela água.

Na mesma situação se encontra Raimundo Benedito, de 49 anos, dono do restaurante O Búfalo, cujos quiosques e parte da estrutura principal na praia foram tragados.

- A destruição da orla impede toda a atividade e impacta o comércio e o turismo em Soure. Toda a cidade acaba por sofrer - diz Benedito.

Os moradores se defendem como podem. Construíram uma barreira rudimentar com redes de pesca e lixo trazido pela maré. Porém, a proteção rudimentar atrasa, mas não impede o avanço da água.

O lixo desfigura o paraíso
Lixo é o que não falta. Pois, a maré na Amazônia contemporânea não carrega apenas troncos e galhos da floresta. Ela chega com colossais quantidades de lixo urbano. Este vem de longe e, na estação chuvosa, desfigura a paisagem das praias marajoaras que, no período seco, são procuradas por turistas.

A areia é tomada por incontáveis garrafas e sacos plásticos, pedaços de chinelos, restos de utensílios de todo tipo. Bandos de urubus ocupam o lugar onde se esperaria ver gaivotas e outras aves marinhas. A paisagem se transmuta de paraíso natural a inferno urbano, um mar escuro de lama e detritos. O lixo é tão urbano quanto aquele que polui a Baía de Guanabara.

E o lixo é urbano porque a maioria da população da Região Norte do Brasil vive em áreas urbanizadas. Foi a região que registrou o maior crescimento da taxa de urbanização, passando de 73,53% em 2010 para 78,47% em 2022, de acordo com o IBGE. A região tem também os piores níveis de saneamento, o que inclui a coleta de lixo.

- Esse lixo todo vem de fora, com as águas grandes. A maré traz mais lixo do que temos de gente aqui para sujar - observa Maria Boaventura Amador, de 66 anos, uma das moradoras mais antigas entre os cerca de 3,2 mil habitantes da Vila de Joanes, em Salvaterra.

Joanes é conhecida pela beleza de sua praia, a mesma onde na estação das grandes chuvas e marés reina o lixo, mas também por seu patrimônio histórico e arqueológico. As ruínas da igreja jesuíta de Nossa Senhora do Rosário são do século XVII e insistem em se manter de pé, a despeito da falta de conservação pública, de vandalismo e da erosão - as ruínas ficam na beira de um platô costeiro.

Construída por escravizados e indígenas, dela restam pedaços da torre e de uma das paredes da igreja, além de blocos de pedra espalhados pelo terreno coberto de mato. A maré também avança sobre o farol de Joanes, que já precisou ser reconstruído uma vez.

- Joanes necessita de proteção contra a erosão e a falta de conservação. Há alguns anos escavaram aqui, acharam muitos objetos históricos, inclusive um colar de ouro. Mas levaram tudo embora para instituições fora do Marajó. Nada ficou na comunidade. Queremos um museu, como o de Cachoeira do Arari, que valorizasse nossa vila e atraísse turistas - afirma Adinelson Correa, de 67 anos, membro da associação de moradores.

Sem direito a banheiro
A cidade de Cachoeira do Arari inspirou o maior escritor do Pará, o marajoara Dalcídio Jurandir (1909-1970), a escrever "Chove nos campos de Cachoeira". Lançada em 1941, a obra se refere ao cotidiano marajoara das primeiras décadas do século passado. Uma realidade que pouco mudou no que diz respeito, por exemplo, a saneamento básico.

E isso embora Cachoeira do Arari seja um dos municípios com os melhores indicadores de Marajó: 76,66% de seus moradores vivem em domicílios com acesso à água potável e 31,57% dispõem de banheiro exclusivo, segundo o Barômetro da Sustentabilidade.

Por água potável entenda-se aquela proveniente de rede geral, poço, nascente ou reservatório abastecido por água das chuvas ou carro-pipa. Já o banheiro exclusivo é o cômodo que dispõe de chuveiro ou banheira e aparelho sanitário, além de água encanada.

Os números de Cachoeira são até razoáveis se comparados, por exemplo, aos de Anajá, onde 21,06% dos habitantes têm água potável e meros 11,79%, um banheiro. Em Melgaço, a água potável chega a 21,93% dos moradores e o banheiro é o luxo de 13,39%. Ou ainda Afuá, onde a água potável está disponível para 26,56% da população e o banheiro para 14,79%.

Os números marajoaras contrastam com os do Brasil, pois 84,2% dos brasileiros têm acesso à água tratada. A realidade de Marajó se repete Amazônia afora, onde as pessoas vivem de frente ou até dentro de rios, mas não têm água para beber. No Marajó, o percentual da população com déficit de água tratada é de 68,6%, segundo estudo "Benefícios Econômicos da Expansão do Saneamento no Pará", do Instituto Trata Brasil.

A chuva ajuda a expor a dimensão da falta de saneamento. O cheiro nas ruas é o do esgoto. O déficit de coleta de esgoto atinge 99,1% do Marajó, segundo o mesmo estudo. E não existe tratamento, a taxa é zero.

A presidente do Trata Brasil, Luana Pretto, destaca o risco da contaminação cruzada em municípios onde quase sempre a água vem de poços e o esgoto é lançado em fossas, por onde alcança o lençol freático e os rios.

- A qualidade da água é muito ruim, sem tratamento. Isso prejudica a saúde, a qualidade de vida e o desenvolvimento socioeconômico. Crianças faltam à escola porque adoecem com diarreia e outras doenças ligadas à transmissão pela água. Adultos perdem dias de trabalho. A falta de acesso a um direito básico também tira a visão de futuro das crianças - ressalta Pretto.

Os elevados índices de doenças de transmissão pela água, como diarreia, são decorrentes do acesso precário ao saneamento. Pretto lembra, que além das crianças, as mulheres são especialmente afetadas, inclusive por violência sexual.

- A falta de banheiro expõe mulheres ao risco de serem violentadas ao recorrerem ao mato. E isso também faz parte da realidade de municípios sem saneamento básico - enfatiza ela.

Otaci Gemaque, de 78 anos, presidente da Associação de Amigos do Museu do Marajó, lembra que a vida já foi até pior. O museu, com peças indígenas milenares, é um dos maiores orgulhos e avanços da ilha. Mas entre as melhorias recentes, diz ele, está a chegada da luz elétrica, que hoje está disponível para 72,76% dos domicílios e o asfaltamento da estrada até o porto de Camará em Salvaterra, que reduziu o tempo de viagem para Belém de 12 horas para pouco menos que a metade disso.

Assim como Salvaterra e Soure, Cachoeira está repleta de placas de obras de urbanização do governo paraense. As ruas ganham pavimentação, mas as casas, muitas delas de palafitas, sempre que chove ainda são como ilhas cercadas pela água cinzenta do esgoto.

Na zona rural e na periferia, o esgoto se mistura a vestígios de agrotóxico provenientes da pulverização do imenso arrozal que se estende no caminho entre Salvaterra e Cachoeira do Arari.

- O avião passa e despeja agrotóxico em cima de tudo. Muito bicho morreu. Não temos mais a riqueza de animais de antes - lamenta Gemaque.

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