Águas profanadas

Época, Brasil, p. 48-49 - 06/12/2004
Águas profanadas
Obra de usina hidrelétrica aterra o trecho de rio que, na tradição milenar do Xingu, abrigou o primeiro quarup

Solange Azevedo e Helio Mello

Os habitantes do Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, travam uma batalha com o governo do Estado. A razão da briga é a construção de uma hidrelétrica no Rio Culuene, um dos afluentes mais importantes do Xingu e a principal fonte de alimentos para a população local. Além de temer prejuízos à fauna pesqueira, os índios afirmam que a barragem está sendo erguida numa região sagrada, onde nasceu o ritual do quarup, internacionalmente famoso.

O governador Biairo Maggi (PPS), pessoalmente empenhado em resolver o impasse que já dura mais de um mês, mandou, na segunda-feira passada, um avião buscar cinco índios na reserva. Em Cuiabá, eles se reuniram com donos do empreendimento, representantes do governo e do Ministério Público. Depois de assistir a um vídeo, o grupo visitou uma usina instalada em uma das fazendas de Maggi. Líderes do Alto Xingu garantem que, mesmo se o Estado provar que não haverá danos ao meio ambiente, vão continuar lutando para embargar a obra e preservar a memória e a identidade das comunidades xinguanas.

O quarup é a maior celebração religiosa da tradição Xingu. Marca o encerramento do luto pela morte de líderes ou de pessoas consideradas de linhagem importante para os índios. A festa é precedida de diversos rituais, realizados durante um ano. "Aquele local faz parte da cartografia sagrada do Xingu", alega o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional do Rio de Janeiro. "Não se trata apenas de um patrimônio material, de terra, mas de preservar a memória e a identidade indígena", diz. "Estamos muito preocupados", concorda o cacique Pirakumã Yawalapiti. "O pessoal do governador queria que os índios que participaram da reunião de segunda-feira assinassem um documento autorizando a continuação da obra, mas eles se recusaram",afirma. Yawalapiti conta que a maioria dos líderes xinguanos é contra o empreendimento porque, segundo a tradição indígena, os peixes que alimentavam os convidados durante o quarup eram apanhados no trecho de rio destruído pelas obras. "Toda aquela região faz parte do ritual do quarup", ensina o cacique.

Segundo o Ministério Público Federal, empreendimentos desse tipo têm de ser precedidos de consulta popular. Mas isso não ocorreu em Mato Grosso. Os índios só descobriram que a região sagrada estava sendo devastada no final de outubro, quase dois meses depois de iniciadas as obras.

Foi durante um seminário que tinha como tema formas de preservar as nascentes e as matas próximas ao Rio Xingu. Quando chegaram ao canteiro de obras, eles se assustaram ao ver que um dos braços do Rio Culuene estava aterrado. Grandes rochas haviam sido explodidas com dinamite, matando os peixes, segundo um funcionário que trabalhava ali. Diante da insistência dos índios, o governo paralisou a obra temporariamente. O Ministério Público encomendou um estudo antropológico sobre a região. Se ficar comprovada a alegação dos povos xinguanos, o órgão deve entrar com uma ação para tentar suspender definitivamente a construção da hidrelétrica. Os planos dos proprietários da usina é que ela atenda às regiões leste e nordeste de Mato Grosso, onde grande parte dos municípios utiliza energia produzida por geradores a óleo diesel.

Os xinguanos não perceberam antes a movimentação dos operários porque a barragem está sendo erguida a 94 quilômetros do parque. Mas fica a apenas 2 quilômetros da Reserva Ecológica Estadual do Rio Culuene. "Como ninguém tinha conhecimento daquilo, nem o Ibama local, os índios acharam que a obra fosse clandestina", conta o antropólogo André Villas Boas, coordenador do Programa Xingu do Instituto Socioambiental. O governo estadual alegou que não sabia que o local era considerado sagrado para os xinguanos. "Há outras duas áreas sagradas que estão fora dos limites do parque e que também precisam ser tombadas. Não se trata de expandir as terras indígenas, mas de evitar depredações de patrimônios culturais", defende Villas Boas.

O Parque Indígena do Xingu foi criado em 1961, com uma área dez vezes menor que a prevista no projeto inicial. Cerca de 4.100 habitantes de 14 etnias vivem ali, em quase cinco dezenas de aldeias. Dispostos a preservar suas terras e tradições, os povos xinguanos são vistos com certa antipatia por grandes agricultores, pois eles lutam para que defensivos químicos usados nas plantações não contaminem as águas dos rios que formam a bacia do Xingu e reclamam do crescente desmatamento na região. O Estado tem histórico ruim. No ano passado, o governo reduziu 40.000 hectares do Parque Estadual do Xingu, próximo da área indígena, para a expansão agrícola. Atualmente, quer diminuir em dois terços o Parque Estadual da Serra Ricardo Franco, de 158.000 hectares, que conserva um dos trechos de Floresta Amazônica mais ricos em biodiversidade, na fronteira com outro parque na Bolívia.

1. Parque Indígena do Xingu
Área indígena mais famosa do Brasil, reúne 4.100 nativos de 14 etnias. É mundialmente conhecida pelo ritual do quarup

2. Obras da Usina Paratininga 2
Retroescavadeiras desmataram e aterraram um trecho do Rio Culuene, de onde, segundo a tradição do Xingu, saíram os peixes para o primeiro quarup

3. Reserva Ecológica do Culuene
Antropólogos afirmam que a obra da usina não poderia ser realizada por estar a menos de 10 quilômetros da reserva

Época, 06/12/2004, Brasil, p. 48-49
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