O Globo, História, p. 29 - 07/02/2015
Águas passadas
Como nos dias de hoje, Floresta da Tijuca foi vista como resposta para crise hídrica há 153 anos
RAPHAEL KAPA raphael.kapa@oglobo.com. br
"A memória nacional estava calcada na crença de que o problema da água era algo pontual, restrito a uma parte do país." Marcia Motta
Historiadora da UFF
Os jornais noticiam: cariocas passam a sofrer com o racionamento, a crise hídrica vira uma realidade, e um representante do Estado, em busca de solução, vê na Floresta da Tijuca uma alternativa para atenuar a falta d'água. O cenário descrito ilustrou os noticiários esta semana, quando o secretário estadual de Ambiente, André Correa, visitou o parque a fim de avaliar a possibilidade de usar o manancial local para ajudar no abastecimento. Mas também frequentou as manchetes em 1861, quando o imperador Pedro II, em meio a uma das maiores secas de que se tem notícia no Rio, decidiu que a solução estava ali, nas terras (ou, mais propriamente, nas águas) altas da região. Foi essa uma das principais razões de ele ter ordenado a desapropriação das chácaras dos nobres que haviam se instalado nas encostas e o consequente reflorestamento, o maior promovido até então no país.
- O caso da Floresta da Tijuca é emblemático. Quando Dom Pedro II resolveu reflorestar a região, tinha-se se claro que ali havia várias minas de água que eram importantes para a população, principalmente os mais pobres - afirma a historiadora da Universidade Federal Fluminense Marcia Motta, autora do livro "O Rural à la gauche".
Foi uma decisão visionária. As sucessivas ocupações da área haviam lhe acarretado uma clara degradação.
- O espaço, que era bem maior do que é hoje, teve vários tipo de uso, mas foi a produção de café que fez com que se tornasse bem degradado. Além disso, a região se tornou uma área da alta sociedade, com chácaras nas florestas. Uma reprodução do estilo de vida europeu. Quando D. Pedro II, em 1861, criou oficialmente o Parque da Tijuca e das Paineiras, teve de retirar a elite que morava ali, com ressarcimento, e iniciar o processo de reflorestamento - lembra a historiadora Cláudia Beatriz Heynemann, autora do livro "Floresta da Tijuca".
ARCHER, O MAJOR DA FLORESTA
Para além da seca, outras razões motivaram Pedro II na empreitada. As árvores também purificariam o ar e drenariam os pântanos, o que eliminaria os miasmas, emanações de material em decomposição associados à proliferação de insetos e outros agentes causadores de doenças. O monarca sonhava replicar seu projeto saneador em toda a capital do Império.
- Era uma coisa oficial, mas tinha pouco investimento. O grande homem à frente da iniciativa foi o major Manuel Gomes Archer. Em pouco tempo, ele plantou 80 mil mudas - conta Cláudia.
Archer sofreu oposição da elite cafeeira e dos então moradores da região. O processo que liderou - quando as 80 mil mudas foram trazidas dos longínquos Jardim Botânico e Guaratiba - durou 12 anos. E o papel do ministro dos Negócios, o Visconde de Bom Retiro, foi decisivo, articulando as remoções com habilidade política. O episódio serviu para desmitificar a ideia, então vigente (e ainda hoje disseminada) de que a água no país é um recurso inesgotável. E revela uma intervenção precisa e decisiva do Estado para garantir acesso a esse bem.
- Até há pouco tempo eram recorrentes notícias sobre a abundância de águas no Brasil, com a notória exceção das tristes secas nordestinas. Valorizava-se muito o fato de que temos a maior reserva de água doce do mundo. A memória nacional estava calcada na crença de que o problema da água era algo pontual, restrito a uma região - afirma Márcia Motta.
O reflorestamento não foi somente uma medida prática, ele também é apreciável pelo aspecto simbólico. A necessidade do governo de promover ações de replantio e recuperação do solo foi motivadora de debates na época. Morador da área que viria a abrigar a Floresta da Tijuca, o escritor José de Alencar foi uma das vozes críticas ao projeto.
- No livro "Sonhos d'ouro", José de Alencar chama de "loucura humana" a proposta de reflorestar a área - lembra Cláudia.
No livro, o ícone do Romantismo brasileiro afirma que a cobiça humana quer "refazer à custa de anos, trabalho e dispêndio de grande cabedal" o que destruiu pelo "lucro insignificante" em poucos dias. A posição parcial do escritor é um dos vários reflexos das disputas sobre a questão, que envolveu personagens de diferentes grupos sociais.
- Um dos grandes avanços foi atribuir valor ao reflorestamento. O debate estava acontecendo naquele momento. Existia uma ampla noção de que o desmatamento não era uma barbárie que precisa ser combatida - afirma Cláudia.
Ainda que visionária, a iniciativa não foi suficiente para que os problemas da cidade se resolvessem. No verão de 1888, com um Império enfraquecido, o calor de 42o C se tornou insuportável, e os chafarizes públicos secaram. O imperador era criticado pelos republicanos, e a imprensa reivindicava atuação enérgica do Estado, antes mesmo da recuperação da floresta. Pedro II, então, convocou um concurso público para escolher um projeto de canalização de água e, assim, minorar o problema.
Em uma nota de jornal, um jovem professor da Escola Politécnica, usando um pseudônimo, prometeu resolver o problema em seis dias e por um preço muito mais barato que os dos outros projetos. Era o engenheiro Paulo de Frontin, na época com 29 anos, que acabou construindo um aqueduto com capacidade de transportar 16 milhões de litros de água diariamente pelos seus quatro quilômetros. A canalização das águas das cachoeiras do rio Tinguá, na Baixada Fluminense, deu-se à margem da linha de ferro Rio d'Ouro até a represa do Barrelão, em Nova Iguaçu. Uma das últimas iniciativas promovidas por D. Pedro II, o sistema perdurou até o Rio ganhar um Plano Diretor de Água, em 1982.
PROPRIEDADE DE MANANCIAIS EM QUESTÃO
Como prometido, Paulo de Frontin levou água à capital em seis dias, mas os problemas de abastecimento não terminaram no final do século XIX. A atual crise hídrica que o Sudeste vive se deve, segundo os historiadores, aos embates sobre as propriedades onde ficam os mananciais. Se, no passado, os produtores de café e moradores, ricos e pobres, tiveram que sair da Floresta da Tijuca, o mesmo já não acontece.
- Hoje é consenso que a água é um bem de domínio público que tem valor econômico, e isso também significa dizer que sua gestão pelo Estado deve ser muito bem orientada para salvaguardar as necessidades da população. Ignorar o problema e pedir "ao homem lá de cima" que chova é, no mínimo, um crime contra os pobres, aqueles que mais sofrem com a carência de águas - diz Márcia.
Recentemente, o debate em torno do Código Florestal teve entre seus principais pontos o reflorestamento de margens de rios. O tema não é novo para quem acompanha de perto a redução das áreas verdes.
- A defesa de políticas públicas voltadas para o reflorestamento é muito antiga, mas também não são novas as tentativas de burlar a lei e alterar a política de preservação ambiental a fim de defender determinados interesses. Uma política ambiental não se efetiva sem uma política agrária - conclui Márcia.
Sob o solo, as estrelas da hidrografia do Parque Nacional
Nascentes (às centenas) se mantêm até na seca, mas são subaproveitadas ou desperdiçadas
ANA LUCIA AZEVEDO ala@ oglobo.com. br Reportagem publicada originalmente no Globo a Mais
A Floresta da Tijuca permanece uma fabulosa reserva de água e continua a amenizar o calor. As nascentes da floresta são tantas que centenas é a medida de grandeza mais conservadora dos pesquisadores para estimá-las. Uma única árvore de porte médio é capaz de lançar todos os dias na atmosfera 300 litros de água, diz o professor de Geografia da PUC-Rio Rogério Ribeiro de Oliveira. Um hectare de mata lança 200 mil litros. Como o Parque Nacional tem 3.955 hectares, a conta chega a 791 milhões de litros d'água por dia em vapor, que ajudam a formar nuvens, reduzir a temperatura e devolver a água para o solo. Se D. Pedro II e o Major Archer não tivessem reconstituído a Mata Atlântica, o Rio seria significativamente mais quente.
A floresta presta serviços de valor literalmente incalculável, destacam cientistas, mas muitos cariocas os ignoram, e a Cedae os desperdiça, já que boa parte da água vai parar na rede pluvial e acaba misturada ao esgoto.
No auge da seca de janeiro, o fluxo das cachoeiras da parte baixa do Parque Nacional minguou. As nascentes, porém, nunca deixaram de existir e, mesmo que a seca continue, elas se manterão como uma imensa reserva.
- A floresta é uma teia de canais e pequenos riachos - diz o ex-chefe do parque e montanhista Pedro da Cunha e Menezes, profundo conhecedor da floresta e autor dos livros "Floresta da Tijuca - A selva na metrópole" (Relume Dumará,1999) e "Parque Nacional da Tijuca - 140 Anos da reconstrução de uma floresta". (Ouro Sobre Azul, 2001).
O atual chefe do parque, Ernesto Viveiros de Castro, destaca que as cachoeiras e riachos são apenas a ponta visível da rede hídrica da floresta. Há cerca de 20 cachoeiras, mas nenhuma delas representa as dimensões do aquífero infiltrado nas fissuras das montanhas do Maciço da Tijuca.
A Cedae mantém estações de captação de água, como a Represa dos Ciganos, de 1906. Porém, são subutilizadas. Os Ciganos, por exemplo, abastecem apenas o Hospital Federal Cardoso Fontes, em Jacarepaguá. Há várias caixas d'água, como as das Paineiras. Mas as estações de captação precisam de reparos, e a água que não é captada vai para as redes pluviais.
- Jogada nas galerias, ela se mistura com o esgoto irregular. Um completo desperdício - lamenta Viveiros de Castro.
A floresta é uma usina de água, exemplifica a chefe do Laboratório de Geo-Hidroecologia da UFRJ, Ana Luiza Coelho Netto, autora de estudos pioneiros sobre a hidrografia da floresta e considerada a maior especialista no assunto.
- Ela capta a água da chuva e a libera aos poucos, em nascentes. Estas brotam por todo o maciço - diz a pesquisadora, cuja equipe produziu o mapeamento hídrico dos canais do maciço.
Os rios são a ponta mais visível e menos importante. A grande rede oculta está sob o chão e nasce do trabalho das árvores - jequitibás, figueiras, jatobás, ipês.
- Essas árvores têm raízes profundas, que penetram pelas fendas e fraturas nas rochas. Com isso, não apenas estabilizam as encostas como servem de canais que depositam a água sob o solo - explica Ana Luiza.
O Globo, 07/02/2015, História, p. 29
http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/como-nos-dias-de-hoje-floresta-da-tijuca-foi-vista-como-resposta-para-crise-hidrica-ha-153-anos-15270990
http://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/ambientalistas-concordam-com-uso-de-mananciais-da-floresta-da-tijuca-15270398
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