No litoral sul de São Paulo, os caiçaras - povos tradicionais remanescentes de indígenas, negros e colonizadores europeus, que habitam a costa do sudeste do Brasil - sofrem com diversos tipos de expulsão de seus territórios para as margens e franjas de cidades. É comum seu deslocamento forçado por conta de condomínios, empreendimentos estatais e especulação imobiliária. Mas, entre Peruíbe e Iguape, na primeira reserva ecológica do Estado de São Paulo, centenas de famílias lutam contra a remoção em nome da proteção ambiental.
Na Estação Ecológica Juréia-Itatins, eles sentem que, desde os anos 1980, têm sido enganados. É o que conta Adriana de Souza de Lima, caiçara, nascida na comunidade do Guaraú e que, desde a década de 1990, luta ao lado das comunidades que ali resistem. Quando foi criada a reserva, cerca de 22 comunidades viviam no local. Havia a expectativa que ali fosse um "santuário" para homem e natureza. Hoje, no entanto, apenas nove resistem às pressões, espalhadas pelos quase 850 quilômetros quadrados de área.
"Acontece uma expulsão pelo cansaço porque o governo não veio e tirou cada um de uma vez, nem tirou todo mundo de uma vez só, mas foi tirando o direito de plantar, de pescar, da convivência, negou escola, tirou as estradas e caminhos. As pessoas começam a passar fome, necessidade. O Estado foi impedindo a liberdade que as comunidades tinham, foi fazendo com que nosso modo de vida deixasse de existir", diz a presidente da União dos Moradores da Juréia.
Segundo ela, multas são aplicadas a roçados ou a extração de "madeira para fazer remo", ignorando que os caiçaras conhecem a "hora certa de tirar para garantir que vai nascer de novo", proveniente do saber tradicional de quem habita a região desde pelo menos o século 18, segundo registros - ou há cinco mil anos, de acordo com pesquisas arqueológicos.
O resultado dessa expulsão é que muitos dos jovens passam a habitar cidades vizinhas, como Iguape, Peruíbe e Itanhaém e ficam em situação de subemprego nas bordas das cidades. Permanecem, principalmente, os mais velhos e aposentados.
O último episódio dessa história se deu na comunidade do Rio Verde, com a família Prado, que vive na área há pelo menos oito gerações, mantendo, nas palavras de Adriana, uma relação secular com o local, sobrevivendo à base da pesca artesanal e da agricultura de pequenas roças.
Neto do casal mais velho da comunidade, Marcos teve a casa ameaçada de demolição por funcionários da Fundação Florestal, órgão estadual responsável pelo cuidado com parques e reservas, e agentes da Polícia Ambiental, no dia 18 de junho. Após deixarem o local, os funcionários da Fundação Florestal deram um prazo de 72 horas para voltar - o que até o momento não se concretizou.
Ele faz parte de um "processo de retomada". Criado entre a cidade e a floresta, o jovem decidiu se estabelecer no território de sua família, "na tapera onde Nancy nasceu", cuidando dos mais velhos e vivendo do pequeno extrativismo e da pesca.
"Sobrevivemos à especulação imobiliária na década de 1970, ao projeto de Usina Nuclear no fim do governo militar e, desde 1986, resistimos a uma legislação ambiental aplicada seletivamente para restringir nosso modo de vida, desconsiderando nosso papel para a conservação e defesa da natureza e para a manutenção da biodiversidade. O argumento do governo do Estado de São Paulo é de que moramos em Estação Ecológica, área totalmente restritiva à habitação, mas não revelam que a lei criada em 1986 ignorou a presença de 22 comunidades na época, tornado-as ilegais da noite para o dia", diz o comunicado dos caiçaras divulgado após a ação do Estado.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo se manifestou dizendo ser ilegal esse tipo de ameaça e abuso.
Existir para conservar
Segundo Souza, a Estação Ecológica Juréia-Itatins teve seu modelo de conservação importado dos EUA, formulado por ONGs e gestores públicos, sem diálogo com quem ali vivia. Após anos de luta, os caiçaras conseguiram que fossem criadas duas áreas de passassem de "restritivas", ou seja, sem presença humana, para Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS).
A ideia de englobar os moradores de um território em sua conservação, de que as populações tradicionais podem ser agentes de preservação ecológica, tem sido implementada com bastante sucesso em diversos parques do mundo. Segundo Adriana, a criação da estação ecológica fez com que os caiçaras tivessem que se apropriar de temas como legislação e conservação.
"É contraditório que a comunidade não possa fazer manejo e morar quando o governo anuncia que quer ceder os controles do parques para a iniciativa privada explorar por trinta anos. Parques são importantes, eles param a expansão imobiliária, mas precisamos reconhecer como ele afeta a vida de centenas de pessoas e uma existência de gerações", protesta Adriana.
O resultado disso é que, após dois anos de conversas, eles produziram e entregaram à extinta Secretaria do Meio Ambiente, hoje Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente, um Plano de Uso Tradicional Caiçara (PUT).
O PUT, criado em conjunto com grupos de pesquisa da Universidades Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do ABC (UFABC), e contando com a assessoria jurídica da Defensoria Pública, se propõe como uma ferramenta de resolução do conflito histórico e aposta numa "permanência sustentável" através do manejo compartilhado do território, garantindo sua preservação.
Um ano após sua entrega ao órgão estatal, os caiçaras reclamam que não houve qualquer resposta.
"Nós nos debruçamos sobre legislações e tratados, vimos experiência dentro e fora e sabemos que existem experiências que mostram que é possível encarar preservação e modos de vida como questões parceiras, como forma de garantir que a comunidade possa iniciar um processo de cuidar de um lugar que ela depende muito", finaliza a representante das comunidades.
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente para perguntar sobre o incidente envolvendo a casa de Marcos Prado e se há previsão de resposta para o PUT ou perspectiva de mudança na reserva. Segue abaixo a resposta na íntegra.
Uma fiscalização da Fundação Florestal no dia 13 de junho identificou uma obra na área do Rio Verde, na Estação Ecológica Juréia-Itatins (EEJI), e orientou o responsável a interromper a construção. No dia 18 seguinte, em conjunto com a Polícia Ambiental, foi constatado que o embargo da obra não foi cumprido, o que gerou uma autuação por supressão de vegetação nativa de restinga alta em Unidade de Proteção Integral - considerado crime ambiental, conforme previsto na Lei no 9.605/98.
A recuperação ambiental da área e a reparação do dano dependem da desconstrução da edificação. O local estava desocupado, portanto não se trata de remoção de famílias. A Fundação Florestal respondeu que "respeita os direitos das comunidades tradicionais. Por isso, o território da EEJI foi reduzido e foram criadas duas reservas de desenvolvimento sustentável em 2013 para abrigar estas famílias e seus modos de vida, com espaços ainda disponíveis para ocupação".
A área do Rio Verde é declarada patrimônio mundial da humanidade pela UNESCO. Além disso, é uma das maiores áreas de Mata Atlântica preservadas do Brasil e abrigo da biodiversidade do Estado de São Paulo, com aproximadamente 60 estudos em andamento. Nela não há qualquer comunidade caiçara instalada desde 1980".
Caiçaras no Caminho do Telégrafo - conhecida na literatura acadêmica como Trilha do imperador - indo para a reunião com assessoria jurídica após a tentativa de demolição de uma das casas da comunidade (Foto: Comunidade Rio Verde-Grajaúna)
Edição: Rodrigo Chagas
https://www.brasildefato.com.br/2019/06/24/caicaras-lutam-contra-expulsao-por-cansaco-de-estacao-ecologica-da-jureia-sp/
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