FSP, Ambiente, p. 24-25. - 24/10/2022
Em terras não demarcadas, conflitos entre indígenas ganham força e se tornam insuperáveis
Pano de fundo de disputas envolve conivência com invasores, abandono de identidade e ameaças
Vinícius Sassine
Lalo de Almeida
24/10/2022
Jó está ameaçado de morte. Na ilha Panamim, no médio rio Solimões, os madeireiros agem como se ali não existisse uma terra indígena.
"Vou dar um tiro no seu peito", ameaçou um invasor. "Você vai morrer com um golpe de terçado", esbravejou outro.
Há 20 anos, desde que passou a ser cacique, Jó dos Anjos Samías, 50, denuncia a ação de invasores na Terra Indígena Boará/Boarazinho, na ilha Panamim, em Tefé (AM).
Nos últimos anos, porém, as ações estão mais ostensivas e intimidatórias. Madeireiros e pescadores ilegais se sentem empoderados diante da demarcação cada vez mais distante do território.
Passam pelas casas dos indígenas, ameaçam o cacique e se enfiam na mata ao fundo para extrair madeira ou praticar o "tufa tufa", uma prática predatória de arrastão de peixes numa ilha que tem 38 lagos.
"Por causa da madeira, já tentaram me 'gatilhar'. E as denúncias não adiantam. Os madeireiros ficam atirando para intimidar", diz Jó. "Eles se sentem confortáveis porque a terra não é demarcada."
Boará/Boarazinho tem sete aldeias, com cerca de 20 famílias cada, principalmente do povo kambeba. Em 2016, a Justiça Federal no Amazonas determinou que a Funai (Fundação Nacional do Índio) concluísse em até três anos o processo de demarcação do território.
O MPF (Ministério Público Federal) apontou, na ação que pediu a demarcação, a presença de indígenas na ilha pelo menos desde a década de 60. E afirmou que a Funai, naquele ano de 2016, era omissa há mais de 14 anos.
No governo de Jair Bolsonaro (PL), as chances de demarcação foram reduzidas a zero. O presidente prometeu não demarcar nem um centímetro de terra indígena, cumpriu e renovou a promessa na briga pela reeleição.
Até hoje, o processo de Boará/Boarazinho está na fase de reivindicação, conforme o banco de dados da Funai e o levantamento anual feito pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
Para além da presença cada vez mais constante e agressiva de invasores, uma realidade salta aos olhos de quem visita territórios indígenas não demarcados: a intensificação dos conflitos internos entre lideranças, de forma, muitas vezes, inconciliável. E esses conflitos têm relação com as invasões aos territórios.
Na ilha Panamim, Jó e Francisco travam uma disputa sem tréguas. O primeiro acusa o segundo de ter se apossado de sua aldeia.
Jó liderava a aldeia Boará, que significa cobra mansa, segundo ele. Ele diz que Francisco se apossou da comunidade, o que obrigou o surgimento de uma nova aldeia: Boará de Cima, liderada por Jó.
"Francisco é apoiador dos invasores", afirma Jó. Quando a Folha esteve na terra indígena, a liderança de Boará não estava na ilha. A reportagem não conseguiu contato posterior com ele.
O conflito incomoda as lideranças das demais comunidades, como Vanusa de Barros, 38, à frente de Boarazinho. Os gestos e palavras de Vanusa são favoráveis a Jó. Ela reconhece nele um pioneirismo na região.
"A situação piora a cada ano, esses madeireiros desconheceram a doença na pandemia", diz Jó. "E tem ainda os areeiros e os que roubam nosso açaí, estragando os frutos que não estão maduros."
Em dois anos, Jó fez cinco denúncias a órgãos federais em Tefé, como Funai, PF e MPF. A última denúncia foi feita em 16 de agosto. Na cidade, ele evita percorrer os mesmos caminhos, por medo das ameaças. "Por não ser demarcada, os invasores se sentem seguros e donos da terra."
Em Boará/Boarazinho, os indígenas não falam kambeba, e não há material didático indígena. As escolas oferecem ensino bilíngue, numa tentativa de resgate da língua.
A Terra Indígena Santa União também está profundamente dividida. A comunidade principal gira em torno do casal Alexandre Arantes Carvalho, 104, e Maria Ramos Ferreira, 104. Na aldeia, ele é o único que fala kokama. Um irmão, na comunidade vizinha, também fala a língua-mãe.
"Meus pais eram peruanos e vieram para cá numa jangada, porque ficaram sabendo da abundância de peixe", diz Alexandre, pai de dez filhos, dos quais nove estão na terra indígena, que fica na região do Médio Solimões, a três horas de barco de Fonte Boa (AM).
A comunidade onde vive o irmão de Alexandre, porém, não tem uma relação harmônica com a aldeia principal. "Eles têm preguiça de falar kokama", afirma.
Os conflitos já foram bem profundos, com "quase morte", segundo os relatos dos indígenas.
"Os próprios parentes da outra comunidade não querem atendimento em saúde indígena, não querem ser indígenas. Eles são kokamas, mas acham feio ser índios", afirma o tuxaua (cacique) João Arantes, 64.
Santa União fica ao lado da reserva extrativista Auati-Paraná. Por muito tempo, a comunidade Itaboca, onde vive o irmão de Alexandre, se sentiu mais integrada à reserva do que à terra indígena.
Os integrantes da aldeia principal se ressentem da falta de engajamento dos vizinhos, por dez anos, na briga pela demarcação.
"Aqui tem muita invasão. A terra não é demarcada, e esses madeireiros e pescadores só acreditam no que é demarcado, eles dizem que a gente não tem direito", diz Arantes. "Os invasores agem motivados pela ideia de que a demarcação não vai sair."
Quando falaram com a Folha, no dia seguinte, os moradores de Itaboca afirmaram compreender hoje em dia que a demarcação é importante. "Vimos que não ia ter futuro na reserva extrativista", afirma Luiz Arantes, sobrinho de Alexandre. "Não posso fugir, não posso dizer que não sou isso aí [indígena]."
Os moradores da comunidade passaram a dividir com os demais as cotas do plano de manejo do pirarucu e do tambaqui, a principal fonte de renda do lugar e a atividade que mais envolve os jovens indígenas. Por ano, é permitida a pesca de 2.100 a 3.400 pirarucus, a depender da cota anual.
Desde 2019, a Funai deixou de acompanhar e intermediar a contratação de compradores para esses peixes, o que deixou os indígenas vulneráveis e expostos a golpes, segundo Joel Ferreira Arantes, 38, neto de Alexandre.
"O comprador pegava a liberação da Funai em Tefé, e aí fechávamos o contrato de compra e venda. A Funai participava do contrato. Isso garantia segurança e assistência. Agora a gente se sente só na pesca, sem ninguém do lado para ajudar a resolver os problemas", afirma Joel.
A Funai também abandonou ações de fiscalização na região. Os próprios pescadores organizaram um serviço de vigilância e se revezam no monitoramento de 63 lagos.
O órgão do governo federal não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Em novembro de 2016, a exemplo da terra Boará/Boarazinho, a Justiça Federal no Amazonas determinou que a Funai concluísse o processo de demarcação de Santa União em até três anos. A omissão da Funai já durava dez anos, segundo a ação do MPF.
Os documentos da demarcação, obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação, mostram longos períodos de paralisia do processo. A última paralisia durou de agosto de 2015 a julho de 2019, quando um coordenador da Funai deu encaminhamento aos autos administrativos.
Ele apontou num despacho, direcionado à Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, que os estudos de identificação e delimitação da terra indígena haviam sido autorizados, e que havia prioridade no processo em razão da decisão judicial, cujo prazo venceria em quatro meses.
O coordenador de Índios Isolados, Bruno da Cunha Araújo Pereira, recebeu os autos e deu encaminhamento três dias depois, em 22 de julho de 2019. Foi um dos últimos atos do processo, novamente paralisado.
Bruno foi exonerado do cargo em setembro de 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, em razão de sua atuação por fiscalização de terras indígenas com presença de isolados.
Ele se licenciou da Funai e passou a atuar diretamente com os indígenas do Vale do Javari. Em 5 de junho de 2022, foi brutalmente assassinado por pescadores ilegais, ao lado do jornalista Dom Phillips, num cenário de escalada sem precedentes de conflitos e invasões na região.
FSP, 24/10/2022, Ambiente, p. 24-25.
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/10/em-terras-nao-demarcadas-conflitos-entre-indigenas-ganham-forca-e-se-tornam-insuperaveis.shtml
Terra indígena ganha ares de lugar fantasma após abandono e normalização de invasores
Justiça mandou Funai concluir em três anos demarcação de território no médio Solimões; já se passaram seis
Vinícius Sassine
Lalo de Almeida
24/10/2022
Quem caminha pela Boca do Mucura, na região do médio rio Solimões, tem a sensação de estar andando por uma terra fantasma. Ao menos até chegar à casa do tuxaua (cacique) Franciney Silva de Lima, 35.
"Nem que eu fique sozinho no Mucura, mas não abandono. É daqui que tiro o peixe, a melancia, o meu sustento", diz. Franciney mora com a mulher, Neila, e os cinco filhos na terra indígena, que fica numa ilhota próxima a Fonte Boa (AM), cidade no Solimões acessada somente por água e ar.
A família é uma das seis que permanecem no território. Antes, eram 22. A maioria das casas de madeira e teto de zinco foi abandonada. As carcaças dessas moradias ficaram para trás e foram tomadas pelo mato. Em alguns casos, a madeira usada nas construções foi retirada.
"Somos agora seis famílias. Éramos sete, mas a filhinha de uma professora morreu na última enchente, e a família não aguenta chegar à casa de novo", afirma Franciney.
Os indígenas da terra são kokamas, presentes em distintos pontos do Solimões e alvos de diversos deslocamentos forçados ao longo dos séculos. A relação com as cidades passou a ser mais constante nas últimas décadas. Processos de demarcação tentam assegurar a relação com a terra.
A Boca do Mucura é um dos territórios na fila por demarcação. O MPF (Ministério Público Federal) instaurou um inquérito civil público para investigar conflitos fundiários entre os kokamas do lugar e um criador de gado, que reivindicava a propriedade do espaço.
Uma ação pediu a demarcação do território, a favor dos indígenas, e a Justiça Federal no Amazonas concordou. A Funai (Fundação Nacional do Índio) foi condenada, em novembro de 2016, a finalizar o processo em até três anos. Passados quase seis, a fase não é nem de estudos por um grupo técnico.
A Folha pediu, por meio da Lei de Acesso à Informação, uma cópia do processo, mas a Funai sob Jair Bolsonaro (PL) negou o fornecimento, alegando ser procedimento de acesso restrito. Segundo o órgão, não se trata de "procedimento demarcatório propriamente dito", mas de "reivindicação fundiária indígena".
A Boca do Mucura passou a ser cada vez mais alvo de invasores: pescadores, caçadores e madeireiros ilegais. As ameaças às famílias são frequentes. "Vou pegar a espingarda e atirar em você", dizem a quem resiste ficar ali. "Hoje, passam armados, no canal ao lado de casa, e já não falo nada", afirma Franciney.
A terra não tem energia nem água potável. Os indígenas buscam água, com lata na cabeça, em Fonte Boa, mais especificamente na torneira do porto. Ou represam água da chuva.
A comunidade vive da plantação de melancia, mandioca e milho, mais caça e pesca. Não há mais escola. A casa de Franciney tem uma sala de aula improvisada para oito alunos; ele é o professor.
A igreja católica que existia foi derrubada. O padre não aparece, os festejos de Santo Expedito não ocorrem mais. Franciney e os familiares são, hoje, evangélicos.
Os que se foram tentam a sorte em Fonte Boa. Quem ficou quer permanecer.
"A gente se sente abandonado, mas só saio quando morrer", diz o tuxaua. "Tento chamar as pessoas para voltar. 'Vamos para o Mucura'. Por enquanto, elas dizem que não vêm."
FSP, 24/10/2022, Ambiente, p. 24-25.
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2022/10/terra-indigena-ganha-ares-de-lugar-fantasma-apos-abandono-e-normalizacao-de-invasores.shtml
PIB:Solimões
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