O Globo, Brasil, p. 16 - 30/04/2023
Turismo em comunidades indígenas cresce e tem até bangalôs com banho quente e ar-condicionado
País já tem 28 visitas guiadas em áreas ocupadas por indígenas no Cerrado e na Amazônia
Por Cleide Carvalho - São Paulo
30/04/2023 05h00 Atualizado há uma semana
Maior ilha fluvial do mundo e santuário ecológico há mais de seis décadas, a Ilha do Bananal, no Tocantins, é uma espécie de paraíso entre a Amazônia e o Cerrado. Abriga o Parque Nacional do Araguaia, um dos mais antigos do país, de 1959, e terras indígenas onde vivem pelo menos 4 mil pessoas. Na década de 60, o então presidente Juscelino Kubitscheck fez ali um hotel cinco estrelas que sucumbiu ao tempo. Agora, os indígenas mapeiam trilhas, praias de água doce, lagoas e pontos de observação de pássaros para criar a operadora de turismo indígena Karajá.
- Quando o homem branco chegou, veio aqui descansar e está descansando até hoje nas nossas terras. Agora incentivamos os jovens a estudar para ajudar o nosso povo a ter mais resistência. Queremos ser o ator principal da nossa história - afirma Samuel Karajá, da aldeia Kuriala, que articula com outras três aldeias da Terra Indígena Parque do Araguaia o Projeto Casa de Cultura Karajá.
Além de levar visitantes aos lugares mais belos, os indígenas querem contar suas histórias e mostrar seus rituais, como a festa Hetohoky, uma celebração da iniciação dos meninos na vida adulta que reúne diversas aldeias. O ápice ocorre em março, com música, cantos, danças, lutas corporais e comidas típicas à base de peixe, tartaruga, milho, mandioca e frutas nativas, como murici, mangaba e buriti.
Bangalôs e banho quente
O líder da Kuriala diz que as operações, previstas para o início de 2024, vão gerar renda direta a cerca de 300 indígenas, principalmente mulheres e jovens, que estão em treinamento. Além disso, a atividade turística deve ajudar a manter os jovens nas aldeias, dando continuidade à cultura e à preservação da ilha.
Mas eles querem também melhor condição de vida. A maioria das casas ainda é de palha, falta saneamento e serviço de saúde. Placas solares chegaram há pouco tempo para que possam ter geladeiras e conservar alimentos. Algumas aldeias têm internet, outras não.
Primeira terra indígena a fazer um plano estratégico, no ano 2000, a TI Sete de Setembro, em Rondônia, começou em 2022 a operar o turismo paiter suruí. Dois bangalôs, com ar-condicionado e banho quente, recebem turistas do Brasil e do exterior. Mais de 500 pessoas já visitaram a aldeia e ficaram, em média, três dias. O refeitório serve pratos da culinária brasileira, mas também a comida típica dos indígenas, com muito peixe, mandioca, batata, milho e cará.
- Sou a terceira geração de contato com os brancos. Nasci e cresci enfrentando o desafio de preservar e garantir nosso modo de vida - afirma Almir Suruí, líder dos paiter suruí, um dos primeiros povos a ter acesso à internet, ainda em 2007.
Além das culturas de subsistência, o povo paiter suruí cultiva café especial e a plantação é um dos roteiros de visita. Busca agora parcerias para vender banana e agências de turismo para ampliar o número de visitantes.
- Queremos mostrar a floresta e a nossa cultura para influenciar a luta contra as mudanças climáticas. Queremos conscientizar, mas também ouvir o que as pessoas têm a dizer - afirma Suruí.
O turismo em terras indígenas foi regulamentado pela Funai em 2015, mas boa parte do apoio aos projetos vem de organizações não-governamentais (ONG). O povo Karajá, por exemplo, teve sua ideia selecionada por meio de um edital do Projeto Ceres (Cerrado Resiliente), que reúne entidades como WWF e Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). Na TI Sete de Setembro, os recursos para a infraestrutura vieram do Fundo Amazônia e outros parceiros.
No Brasil, as experiências em terras indígenas são diversas. Vão desde caminhada pela floresta para escalar o Pico da Neblina, o mais alto do país, da Associação Yanomami do Rio Cauaburis e Afluentes (Ayrca), à subida ao Monte Roraima, via Venezuela, com apoio de indígenas da TI Raposa Serra do Sol. Na Bahia, na famosa Porto Seguro, os pataxós da Reserva Indígena Jaqueira deixaram de só vender artesanato na estrada para levar turistas para conhecer seus rituais e modo de vida. Na capital paulista, o povo guarani leva os visitantes por trilhas até cachoeiras escondidas na Mata Atlântica, na TI Tenondé Porã, no extremo sul da cidade.
Atualmente, existem 28 projetos de turismo ativos em terras indígenas no país. Marcio Santilli, um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), afirma que este tipo de turismo nunca será de alta escala. É naturalmente limitado à capacidade de receber das comunidades, mas vem se tornando importante fonte de renda para indígenas, ribeirinhos e quilombolas, por exemplo.
PAC pode dar impulso
Santilli defende que parte da verba do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), reativado pelo governo Lula (PT), seja aplicada em pequenas obras de infraestrutura em comunidades que preservam o meio ambiente, como melhoria de acessos, ancoradouros de barcos, galpões de armazenagem, instalação de painéis solares e internet. Somados, diz ele, esses pequenos investimentos eliminariam gargalos que travam as atividades sustentáveis na floresta:
- Nos planos de infraestrutura, nunca consideraram as comunidades da floresta, onde a logística é naturalmente mais difícil. É um PIB invisível que precisa entrar no debate nacional.
O que sempre se vê, diz Santilli, são obras que causam grandes impactos ambientais, mas, na maioria das vezes, atendem a interesses de quem não vive na Amazônia. Não é raro que comunidades vivam no escuro ao lado de empreendimentos hidrelétricos.
Nos últimos anos avançaram acordos para pesca esportiva em terras indígenas. Nem sempre, porém, há contato com os povos originários. Muitos grupos ficam nas próprias embarcações.
Segundo Rafaela Lehmann, coordenadora de Sustentabilidade e Ações Climáticas do Ministério do Turismo, de nove projetos de turismo comunitário indígena catalogados na pasta, oito são de pesca esportiva.
Brasil profundo
Este ano foi lançado o projeto-piloto Experiências do Brasil Original, que envolve quatro ministérios, a Funai, a Universidade Federal Fluminense e a Agência Alemã de Cooperação Internacional (GIZ). A proposta é dar apoio não financeiro a quatro roteiros - dois indígenas e dois quilombolas - e treinar as comunidades para que elas possam gerir a atividade. Ao mesmo tempo, dar visibilidade à sociodiversidade brasileira.
- É um turismo crescente, onde o visitante busca experiências únicas, rituais e se envolver com as comunidades - explica Rafaela.
A Braziliando foi criada para atuar com turismo comunitário após a experiência de suas duas sócias - mãe e filha - na Amazônia. Depois de fazer pacotes de visitas virtuais para universidades, do Brasil e do exterior, durante a pandemia, a agência tem impulsionado as visitas à comunidade indígena Baré. São 40 famílias da etnia que vivem na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Puranga Conquista, a sete horas de barco de Manaus, às margens do Rio Negro.
Ana Taranto, uma das sócias, conta que os visitantes buscam contato com a natureza e transformações pessoais.
- Ainda há uma imagem muito estereotipada da cultura indígena, e quem busca conhecer a realidade são pessoas que querem gerar impactos positivos, sociais e ambientais - diz Ana.
A Funai não atendeu aos pedidos do GLOBO para falar sobre o tema.
O Globo, 30/04/2023, Brasil, p. 16
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/04/turismo-em-comunidades-indigenas-cresce-e-tem-ate-bangalos-com-banho-quente-e-ar-condicionado.ghtml
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