Comunidades tradicionais atuam na defesa da maior floresta de manguezais do planeta; veja vídeo

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/ - 31/03/2024
Comunidades tradicionais atuam na defesa da maior floresta de manguezais do planeta; veja vídeo
Ecossistema na amazônia, pressionado pela pesca predatória, é essencial para subsistência da população da costa norte do Brasil

Tayguara Ribeiro
Ana Bottalo

31/03/2024

Frequentemente nas notícias em todo o mundo pela sua imponente floresta, a amazônia é um bioma diverso, com vários ecossistemas distintos. Dentre eles, os mangues são pouco conhecidos, mas não menos importantes para o meio ambiente: é no norte do Brasil que se encontra a maior faixa contínua de manguezais do mundo.

Além de mais extensos, os manguezais amazônicos também são os mais bem preservados. Menos de 1% de toda a área de mangues na região, que é de cerca de 7.800 km2, sofreu devastação nos últimos anos. Os manguezais se estendem do Amapá até o Maranhão, passando pelo litoral paraense. E boa parte dessa conservação se deve à presença de comunidades tradicionais.

Manguezais são, por definição, áreas estuarinas onde há o encontro da água doce dos rios com o mar. Em geral, a água é salobra, e a vegetação, composta predominantemente por espécies de mangue branco ou vermelho, capazes de expelir o excesso de sal por meio de estruturas nas suas raízes.

Neles também vivem diversas espécies de animais, tanto invertebrados quanto vertebrados, como aves, peixes e crustáceos, como o caranguejo-uçá.

Os manguezais fornecem alimentação e renda para quilombolas, ribeirinhos, pescadores e indígenas. Além disso, os manguezais são um importante local de captação de dióxido de carbono (CO2), o que ajuda a combater o aquecimento global e diminuir a crise climática.

"O mangue é o nosso alimento. Aqui é área de mato, e a gente se alimenta porque o mangue está muito próximo. Tiramos nossa comida, nossos remédios [plantas medicinais]. No mangal, tiramos o caranguejo, o sururu [um tipo de mexilhão], o turu [molusco], e ainda tem o camarão, o peixe", diz Roseti do Socorro Melo de Araújo, presidente da Arquia (Associação Remanescente Quilombola do América), em Bragança (PA).

Segundo ela, na comunidade todos sabem trabalhar com o caranguejo, com peixe e com os mariscos, inclusive as crianças.

"O mangue é muito importante para a gente. Hoje esse caranguejo está cada vez mais longe, mais difícil de pegar. Estão aterrando o mangal, jogando lixo. Grandes empresas vêm tirar pau do mangue para fazer andaime", diz.

Não são raros os relatos de escassez de peixes na região. Isso tem ocorrido em razão da pesca predatória, praticada sem respeitar o ciclo reprodutivo dos animais, e da sobrepesca, com os animais sendo retirados do mar, vendidos em grande quantidade, muitas vezes para suprir mercados externos.

Os moradores do quilombo têm de ir cada vez mais longe -em direção ao oceano- para conseguir o pescado, conta Roseti.

"As grandes embarcações pegam até o peixe pequenininho em grande quantidade, para fazer isca. [Eles] não se preocupam como vai ser o amanhã", afirma ela, que é também agente comunitária de saúde no quilombo.

As comunidades tradicionais estão na linha de frente na proteção dos manguezais, já que dependem deles para seu sustento -uma cambada, nome dado ao conjunto de 14 caranguejos adultos, é vendida por R$ 10, segundo Roseti.

Os moradores da região têm sido ameaçados e perseguidos por conta da sua atuação, relata ela. A líder quilombola diz que a defesa da floresta de mangue vai desde cobrar os órgãos públicos por direitos básicos, como o reconhecimento da comunidade, até bater de frente com empresários.

"Queriam fazer criadouro de camarão no mangal. A gente se mobilizou porque sabia que isso iria nos prejudicar. Não íamos conseguir pegar o camarão, fazer o arrasto."

A carcinicultura, ou a criação de camarão em cativeiro, é uma fonte de renda para empresários na região Nordeste, onde grande parte dos manguezais já foi devastada. Para a construção dos tanques, é necessário destruir áreas intactas de manguezais. Essas e outras atividades, como a exploração da madeira dos mangues, ameaçam as comunidades tradicionais e o ecossistema.

"A gente quer fazer uma casa, não usa o pau do mangal, usa madeira do cerrado. Ela tem uma forma de cortar que vai brotar novamente, a do mangue, não. Porque se a gente tirar a madeira no mangal o caranguejo não vai ter alimento para ele. E quem é que vai sofrer? O empresário [no restaurante] não sabe de onde veio o caranguejo, ele só vai comer, mas alguém fez o sacrifício de pegar."

Uma das dificuldades para as comunidades ocorre no início do ano. Nos meses de janeiro, fevereiro e março é tempo do defeso do caranguejo. O período serve para que o animal possa se reproduzir, por isso, existem datas nas quais não é permitido coletar. As comunidades concordam que é importante proteger, mas cobram apoio financeiro.

Além do Quilombo do América, outra comunidade que depende dos manguezais para sua sobrevivência é a de Mangueiras, que fica no município de Salvaterra (PA), na Ilha do Marajó. Por lá, os moradores também atuam na proteção e manutenção do espaço.

Jéssica Melo de Oliveira, presidente da associação quilombola, conta que a comunidade e o manguezal vivem em harmonia, um dependendo do outro. No local, além do caranguejo, os habitantes retiram o turu, tipo de molusco que tem como hábito se enterrar próximo aos troncos de árvores mais altas, o açaí e também plantas usadas na medicina tradicional.

"A floresta faz parte da nossa cultura. Quando a gente vai no posto e não tem uma medicação, buscamos no conhecimento dos [moradores] mais velhos. Temos indicações para picadas, dor de barriga, tudo que você imaginar. Fulano está com dor de barriga? Pega ali uma folha de boldo, ou uma folha de amor crescido ou de sucuriju para fazer um chá", conta ela, rindo.

É por isso que em muitas comunidades que vivem perto dos mangues, a fome não é um dos muitos problemas enfrentados. Acesso à saúde, disputas de terra, falta de oportunidades de emprego, violência, disponibilidade de escolas, transportes -são vários os desafios e necessidades. Mas, a grosso modo, a alimentação costuma ser uma área menos problemática.

"Essas famílias vão ao mangue buscar o seu alimento. Você está em São Paulo, vai a uma feira ou a um supermercado comprar a sua comida. Já as famílias quilombolas vão ao mangue buscar o seu almoço, a sua janta", resume Flávio Bezerra, etnobiólogo e pesquisador da UFPA (Universidade Federal do Pará).

Segundo ele, esse processo tem, além do ato de buscar a comida, uma importância cultural, por ser símbolo do conhecimento das comunidades tradicionais.

"Qual é a hora mais apropriada? Qual é o movimento da maré nesses mangues? Qual é a fase lunar? Como se aprende a colher o turu? Isso é um trabalho que envolve observação, que envolve um aprendizado dos jovens com os mais velhos daquela família" destaca.

"Esses elementos se juntam a toda uma complexidade social, cultural, simbólica e cosmológica, para compreender a importância que esses territórios têm para essas famílias."

Com foco na manutenção dos mangues, o governo federal criou neste mês, em 21 de março, duas novas unidades de conservação na região do Salgado Paraense.

Uma delas é a Reserva Extrativista Filhos do Mangue, nos municípios de Primavera e Quatipuru, com 4.000 famílias. A outra é a Reserva Extrativista Viriandeua, em Salinópolis e São João de Pirabas, com 3.100 famílias.

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Amazônia:Manejo e Conservação

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