Proteção aos mananciais do Utinga: muitas leis e pouco diálogo

Jornal da Universidade Federal do Pará/Beira do Rio - www.ufpa.br - 29/01/2010
Há 12 anos, Carlos Alexandre Leão Bordalo, professor do departamento de Geografia da UFPA, se dedica ao estudo da questão dos mananciais do Utinga, que abastecem a região metropolitana de Belém. No início de 2006, ele defendeu, no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, a tese de doutorado "O desafio das águas numa metrópole amazônida: uma reflexão das políticas de proteção dos mananciais da região metropolitana de Belém (1984 a 2004)".

Tendo como referencial teórico economistas como David Pierce, Ronald Coese, James O´Connor, Dália Maimon, Ricardo Petrela, Enrique Leff e geógrafos como Maria Célia Coelho, Berta Becker e Wagner Ribeiro, a tese, orientada por David Macgrath, centra seu foco sobre o sistema de abastecimento de água nos mananciais do Utinga, analisando, sobretudo, as medidas de proteção ambiental colocadas em execução pelos poderes federal, estadual e municipal nesses 20 anos. Bordalo parte da contradição segundo a qual, numa metrópole da Amazônia, o abastecimento de água é precário, apesar da riqueza dos recursos hídricos. E também do fato de que a área dos mananciais, principalmente entre as décadas de 1980 e 1990, vem sofrendo forte agressão ambiental em decorrência do crescimento da cidade.

O pesquisador verificou a expansão de Belém no período compreendido pelo estudo, principalmente ao longo das partes norte, nordeste e leste da área de influência dos mananciais. Segundo ele, há ocupações planejada e espontânea próximas às cabeceiras dos mananciais. A cartografia, produzida no Laboratório de Analise da Informação Geográfica do departamento de Geografia da UFPA, tornou evidente essas ocupações e os principais focos de poluição e contaminação.

Durante esse período de expansão acentuado, dois projetos de saneamento deveriam ter sido implantados - o Prosege, na área da Marambaia, e o Prosanear, na área da Augusto Montenegro. O prosege, por exemplo, previa a construção de uma rede de esgoto nos bairros do Curió-Utinga, Marambaia, Guanabara e Castanheira, com estação elevatória de esgoto que conduziria os efluentes a duas estações de tratamento. Se tivessem em funcionamento, Prosege e Prosanear atenderiam a 25% da população de Belém. Nenhum dos dois projetos, porém, está pronto.

"A questão da rede de esgoto é um dos mais sérios problemas de saneamento da cidade", analisa Bordalo. "Sem ela, a população vai continuar jogando resíduos domésticos e industriais na drenagem urbana. Esses resíduos são conduzidos à baía do Guajará e ao rio Guamá. Isso pode comprometer a qualidade da água utilizada no abastecimento da cidade porque ela é captada no Guamá".

Dependendo da época da chuva e do fluxo de marés pode ocorrer a oscilação nos níveis de poluentes das águas do Guamá. À medida que aumenta a poluição, aumenta o custo do tratamento da água oferecida à população. A partir dessas constatações, Bordalo analisou as políticas públicas voltadas à proteção dos mananciais do Utinga, implementadas pelo governo do Estado e pelas prefeituras de Belém e Ananindeua.

As primeiras ações, implementadas em 1984, no governo Jader Barbalho, criaram a Área de Proteção Sanitária dos Lagos Bolonha e Água Preta e a Área de Proteção Especial para Fins de Preservação dos Mananciais da Região Metropolitana de Belém. A lei que criou a área de proteção afirma que a ocupação demográfica deveria ser igual a zero. Naquele mesmo ano, a Prefeitura de Belém criou o Plano Diretor do Parque do Utinga, que não chegou a ser implementado de fato.

Em 1988, a Prefeitura de Belém propôs a criação de uma Zona de Preservação de Recursos Naturais, pela qual a densidade populacional, na área dos lagos, seria igual a zero. Em 1993, a PMB implantou, na área dos lagos, a Zona Especial de Preservação do Patrimônio Ambiental, enquanto o governo do Estado criou a Área de Proteção Ambiental dos Mananciais de Abastecimento de Água de Belém, a chamada APA-Belém, uma extensa faixa que vai do campus da UFPA ao igarapé do Uriboca, em Marituba. Outra medida do segundo governo Jader Barbalho foi a criação do Parque Ambiental de Belém, envolvendo a área dos lagos.

Na avaliação de Carlos Bordalo, tais medidas de proteção não foram eficazes porque adotaram um modelo burocrático de gestão, instituído desde o governo de Getúlio Vargas, que concentra a gestão ambiental apenas sobre os órgãos federais e estaduais, excluindo a participação das prefeituras e, principalmente, da sociedade civil organizada. "Verificamos que, até então, as ações foram implementadas única e exclusivamente pelo governo do Estado e algumas pela prefeitura de Belém, sem discussões, sem debates, sem diálogo com a prefeitura de Ananindeua e com a sociedade", observa o pesquisador.

A partir de 1994, no entanto, a mudança na política nacional para o meio ambiente determinou a implantação de um novo modelo sistêmico e integrado de gestão, com participação de todas as esferas de poder e da sociedade civil organizada. Seguindo orientação da Constituição Federal, o governo Almir Gabriel criou a Política Estadual do Meio Ambiente, que instituiu o Sistema Estadual de Meio Ambiente e o Conselho Estadual de Meio Ambiente. Em 1996 é criado o Plano Estadual Ambiental, que prega desenvolver sem devastar e a democratização da gestão ambiental.

Em 1997, é implementada a Política Nacional de Recursos Hídricos, cujo texto fala da necessidade de descentralizar e tornar participativa e integrada a gestão dos recursos hídricos. Em 2001, o governo do Estado cria a sua política Estadual de Recursos Hídricos, que segue as diretrizes da lei federal. Carlos Bordalo reconhece a importância dessas medidas, mas observa que, na prática, a gestão descentralizada, integrada e participativa continuou muito tímida.

"Apesar das políticas federal e estadual de recursos hídricos apontarem como gestão mais eficaz aquela feita na própria área da bacia hidrográfica, por meio de comitês com maior participação das prefeituras e da sociedade civil organizada, isto não vem ocorrendo", afirma o pesquisador. O governo do Estado voltou a implementar uma série de resoluções e medidas proibindo a presença de moradores na área dos mananciais, inclusive com desapropriação de imóveis.

Por meio do decreto n 4.484/2001, o Estado criou um grupo de trabalho para execução do projeto de proteção dos mananciais do Utinga (Pró-Ambiente Utinga), consolidado em 2003 e organizado pela Sectam, Sedurb, Cohab, Cosanpa e o Batalhão de Polícia Ambiental. O Pró-Ambiente recomendou o remanejamento de famílias residentes na área dos mananciais. Das 1.220 famílias, 934 foram remanejadas até o final de 2003.

Bordalo aponta duas conclusões importantes do seu estudo. A primeira é a inexistência de qualquer ação por parte da prefeitura de Ananindeua, seja por omissão ou pela centralização do Estado. A segunda, explica a ineficácia das ações de proteção em função do afastamento da população dos debates, apesar do caráter participativo das políticas federal e estadual de meio ambiente e de recursos hídricos e da lei de criação da APA-Belém.

Para ele, as políticas são necessárias e precisam ser implementadas, principalmente com maior participação das prefeituras de Belém e Ananindeua e da população localizada na área em questão. Mas é preciso cobrar do governo do Estado a conclusão do Prosege e do Prosanear, que vão diminuir a emissão de efluentes à baía do Guajará e ao rio Guamá. Se isso não acontecer, avisa, Belém não vai enfrentar um problema quantitativo de água, mas grave problema qualitativo.

Moradores do entorno não são os vilões

Exposições no MEP, no Mabe e nas "Onze Janelas", além das intervenções urbanasUma das recomendações do grupo de trabalho Pró-Ambiente Utinga com vista à proteção dos mananciais foi a construção de um muro de 18 mil metros em torno do parque ambiental de Belém. Na avaliação de Carlos Bordalo, o muro está sendo construído para afastar os moradores do seu entorno, como se eles fossem os vilões do processo de poluição dos mananciais. O pesquisador garante, porém, que o entendimento do Estado está errado.

Em relação ao muro, afirma que ele não inibiu a agressão ambiental. Por falta de coleta de lixo, as pessoas continuam jogando lixo por cima do muro ou queimando-o. Por outro lado, enquanto o Prosege não for implantado, grande parte dos esgotos dos bairros do entorno vai para a área dos lagos, passando por baixo do muro. "A poluição não respeita muro. O que precisamos ali é de rede de esgoto, com tratamento, e coleta regular de lixo", assegura.

Bordalo argumenta ainda que a população do entorno dos lagos é bem menor que a população de toda a metrópole. "Se toda a população da metrópole joga seu esgoto na drenagem urbana, que é conduzido para a baía do Guajará e para o rio Guamá, quem está agredindo mais os mananciais não são os moradores do entorno, mas, sim, a população de toda a metrópole", conclui.

O início do controle do Estado

Até a década de 1890, o sistema de abastecimento de água de Belém era muito precário. Enquanto a elite política, militar e religiosa se abastecia de poços cavados nos quartéis, conventos e palácios, a população era atendida pelos poucos chafarizes públicos, localizados na parte mais central da cidade, e pelos "aguadeiros", comerciantes portugueses que vendiam tonéis de água em carroças nas ruas de Belém. Esses comerciantes abasteciam os tonéis no grande aguadeiro chamado "Pau d´àgua", localizado na atual avenida José Malcher, às proximidades do palacete Bolonha.

À medida que a cidade foi crescendo, o "Pau d´água" foi sendo assoreado por meio da ocupação de suas margens, de tal forma que, no final do século XIX, a qualidade dessa água tornou-se imprópria para consumo. A economia do Pará no período da borracha proporcionou a modernização e o embelezamento da capital. A antiga Companhia de Águas do Grão-Pará, contratada no segundo império para fazer o abastecimento de água de Belém, mas que nunca chegou a funcionar em sua plenitude, foi, então, encampada pelo governo do Estado. A história do controle do Estado pelo serviço de abastecimento de água em Belém começou aí.

A partir da encampação, vários órgãos públicos foram responsáveis pelo abastecimento de água - da Inspetoria de Águas de Belém, passando pelo Departamento de Águas e Esgoto, até a década de 1970, com a criação da Cosanpa, a Companhia de Saneamento do Estado do Pará.

Ações ditadas pela política nacional

A intervenção de João Cirilo aproveitou o tapume de um prédio comercial incediadoA pesquisa realizada por Carlos Bordalo revela que todas as grandes intervenções realizadas no sistema de abastecimento público de água do Utinga foram resultados de políticas nacionais.

A encampação do sistema de distribuição de água no período de Antonio Lemos obedeceu à política de modernização das capitais ensejada pela República, proclamada recentemente. Foi com Lemos que a captação de água do Utinga começou efetivamente.

Formados pelos igarapés Catu, Buiuçuquara, Antão, Murutucum e Água Preta, os mananciais estavam localizados nas matas da fazenda Utinga, desapropriada pelo intendente em 1902. A água passou a ser captada nos igarapés e conduzida, por adutora, até o reservatório metálico de São Braz, de onde partia para abastecer as áreas mais centrais da cidade.

O Utinga era uma extensa área de mata fechada, sem a presença de invasores. A água captada era bruta, não tratada, mas de qualidade superior à água comercializada pelos "aguadeiros". Ao implantar a rede pública de abastecimento de água, Lemos pôs fim ao comércio de água nas ruas de Belém.

Cinco décadas depois, impulsionado pela política de saneamento de Getúlio Vargas, o governador Magalhães Barata dá início à captação de águas do rio Guamá. Os lagos Bolonha e Água Preta começaram a ser construídos por meio da formação de barragens e represamento, mas como o volume de água era pequeno para atender à demanda, o governo construiu uma estação de bombeamento para captar água do rio Guamá e a primeira estação de tratamento de água de Belém.

Sob os auspícios do regime militar que havia tomado o poder em 1964, o governo do coronel Alacid Nunes realizou a ampliação dos sistemas de captação e das barragens e a construção novos setores de abastecimento em bairros como Marambaia e Tavares Bastos.

No bojo de um projeto nacional, o governo Jader Barbalho executou, nos anos de 1983/84, o projeto Belém 2000, com ampliação do sistema de abastecimento, duplicação do sistema de captação do rio Guamá, construção de canal superficial Moça Bonita, ligando os lagos Água Preta ao Bolonha, e da estação de tratamento de água do lago Bolonha. O sistema de captação passou a ter três adutoras.

Finalmente, também com recursos do governo federal, o governador Simão Jatene executa ampliação do sistema de abastecimento, com duplicação da estação de tratamento do lago Bolonha.

Todas essas ações são importantes, mas não resolveram um problema crônico da região metropolitana de Belém: a precariedade do abastecimento de água. Nos bairros mais periféricos ou em áreas de expansão da capital, não há um fluxo contínuo. Em municípios da região metropolitana mais distantes da capital, a água não chega a muitas residências.
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