Quem está perdendo, até agora, a eleição presidencial é Serra Grande. Não confundir com outro Serra, o "Zé". Serra Grande é um remoto povoado no litoral baiano. Mal passa dos três mil habitantes. E não tem um segundo sequer de horário eleitoral gratuito.
Por isso mesmo, Serra Grande não poderia ser um exemplo mais eloqüente de que esta campanha vai mal, desde que a entrada triunfal dos marqueteiros na disputa transformou o que parecia uma onda de nacional de bem-estar passageiro numa calmaria conformista a perder de vista. Ou seja, naquele tipo de alegria geral que Camões chamou de "apagada e vil tristeza".
À margem dos grandes debates nacionais, mas inseparável das escolhas fundamentais que os brasileiros terão de fazer nas urnas daqui a poucas semanas, Serra Grande faz muita falta na campanha. Pelo que tem que bom agora. E pelo que pode ter de ruim num futuro próximo. E assim, tendo tudo para ser uma solução, virou problema.
É uma amostra ainda viva daquele "país tropical, abençado por Deus e bonito por natureza", como se dizia do Brasil na década de 1970. Tem baleias jubartes passando ao largo de suas praias. Florestas nativas beirando o mar, e tão exuberantes, que os atestados técnicos dos pesquisadores lhes conferem o recorde insuperável de diversidade na mata atlântica. E a modéstia das paisagens tão obviamente nativas que nem precisam de rótulos como eco-resort ou beach-park para mostrar que são genuinamente brasileiras.
Seus riachos se chamam Tiguipi ou Ribeira. Mas não querem dizer com isso que seus trunfos naturais são produtos típicos do atraso social e econômico. Parada no tempo ela ficou só até o fim da década de 1980, quando chegou lá a primeira estrada e, com o asfalto, as promessas e ameaças do desenvolvimento.
Mas lá a estrada tomou a tempo um desvio para o crescimento civilizador. À custa de muita negociação, Serra Grande se cercou preventivamente de uma área de proteção ambiental, a APA de Itacaré-Serra Grande. Aninhou-se num parque estadual, o do Conduru, com 9.300 hectares de florestas, encravados em 100 mil hectares de matas, manguezais e restingas.
Vista dos morros do Conduru, com o Atlântico moldado em contornos mediterrâneos pelas enseadas verdes, dá a impressão de que já nasceu para balneário e mafuá. Mas, na região, os passos foram cautelosos e negociados. A hotelaria teve que hospedar, antes de mais nada, vastas áreas da vegetação original em reservas privadas. Os proprietários de lotes aprenderam a olhar floresta de seus jardins como luxo primordial.
Com eles vieram ONGs, institutos e doadores que bancaram o reflorestamento de matas degradadas, conceberam bairros bairros populares com arquitetura e saneamento, trocaram invasões de morros por reassentamentos agrícolas ligados a feiras de produtos orgânicos. Brotaram assim em Serra Grande programas de pós-graduação para aplicar lá mesmo os derivados práticos das últimas palavras em teoria da conservação.
A cidade tem sonhos e créditos para ser um polo de conhecimento aplicado ao uso racional da terra. Quem sabe, ressuscitar a economia do cacau, transformando sua secular parceria com a floresta na base de uma indústria de chocolates finos, com marca de origem.
Nada disso impediu que o governo Jacques Wagner desse, dias atrás, o passo decisico para sacrificar a APA de Itacaré ao Porto Sul. Em Itajuípe, a 45 quilômetros de Ilhéus, em meados de agosto, po5 15 votos a favor, cinco abstenções e um solitário "não", o conselho gestor da área de proteção tornou quase certa a aprovação do projeto que transforma a região em corredor de exportação para o minério de ferro.
Trata-se de abrir passagem na floresta protegida para a Bamin - ou seja, a Bahia Mineração, um consórcio de empresas da Índia e do Cazaquistão, para vender à China 18 milhões de toneladas de minério de ferro por ano. Baianos mesmo, na Bamin, fora o minério, é a ferrovia de 700 quilômetros que o estado construirá da mina em Caitités até o mar, e o porto. No caminho fica Serra Grande e uma tal de Lagoa Encantada.
Com a largada da corrida final para o licenciamento da obra, Ilhéus amanheceu outro dia sob o letreiro que a declarava "de braços abertos para o futuro". É com esse tipo de futuro que Serra Grande vai sendo empurrada de volta ao passado, sem que ninguém na campanha presidencial se lembrasse de discutir que Brasil será esse que vai às urnas em outubro para decidir se quer ser o que vem sendo a há mais ou menos 510 anos - uma fonte de matéria-prima para o desenvolvimento alheio.
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