Patrimônio desprotegido

O Globo, Opinião, p. 7 - 02/03/2005
Patrimônio desprotegido

Zuenir Ventura

Nem no dia de seu aniversário o Rio tem sossego, uma coisa do passado, como mostra a primeira página do GLOBO de ontem. Em cima, fotos em preto-e-branco de uma cidade quase bucólica, calma, em paz, dando água na boca de nostalgia. Embaixo, em cores, a imagem de uma cena atual: a polícia ocupando a Avenida Niemeyer, depois de mais um tiroteio no Vidigal, com o balanço de duas mortes. O de sempre.
E para completar, se não bastasse a violência no asfalto, amanhecemos às voltas com o crime no nosso "campo", reproduzindo aqui o que antes se dizia ser coisa do Pará. Por sinal, quem leu as anotações deixadas pelo ambientalista assassinado na Reserva Biológica do Tinguá ficou impressionado com o dossiê, que fala não apenas de uma morte anunciada, mas do descaso com que é tratado um patrimônio que recebeu da ONU a mais alta classificação do ponto de vista da biodiversidade.
Ex-militar da PM, aposentado com honra ao mérito, Dionísio Júlio Ribeiro Júnior unia seu espírito de policial à paixão por aquela Natureza que ele ajudava a preservar por conta própria, fiscalizando e botando dinheiro do bolso até para abastecer carros do Ibama. Daí que os registros deixados formam um precioso mapa daquela mina de caçadores e extratores de palmito: rotas de caça, locais de venda dos animais, nomes, cartas de ameaça. Em uma delas é dito: "se eu te encontrar na mata, só um de nós vai sair".
O dossiê de Dionísio é também o retrato da impossibilidade de proteger, com meia dúzia de fiscais, uma área de 27 mil hectares, ou 270 milhões de metros quadrados, passando por sete municípios. Nada ali é protegido, nem a reserva nem os poucos que dela cuidam. Desde ontem, o agente florestal Márcio das Mercês, outro ameaçado de morte, está sob a guarda da Polícia Federal. Mas até quando? Enquanto a defesa do nosso meio ambiente estiver entregue à iniciativa pessoal e ao heroísmo de figuras como essas, vamos continuar produzindo mártires como Chico Mendes, Dorothy Stang, Dionísio Júlio - e devastação.
Fala-se na formação de uma força-tarefa para atuar ali e em outros lugares. Mas para durar quanto tempo? O país costuma ser movido por impulsos e rompantes, passados os quais tudo volta ao normal, ou seja, à anormalidade, no caso ao domínio dos pistoleiros e seus mandantes. O assassino não entendia a ação de Seu Júlio: "não sei por que nos perseguia, por que vivia denunciando a gente". Faz sentido. É como se dissesse: se na prática as autoridades não se importam que a gente cace, venda a caça e tire palmito, por que um maluco desses é que vai se importar?

O Globo, 02/03/2005, Opinião, p. 7
UC:Reserva Biológica

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