Preservação e renda se unem no Piauí

Valor Econômico, Especial, p. F4 - 24/09/2013
Preservação e renda se unem no Piauí

Por Andrea Vialli
Para o Valor, de São Raimundo Nonato (PI)

São pouco mais de 7 horas da manhã e o ex-lavrador Jocenias Paes Lima, mais conhecido como Guinho, está com as duas mãos mergulhadas na argila. Enquanto o sol sobe escaldante no semi-árido nordestino, o trabalho de Guinho é misturar cuidadosamente dois tipos de argila e lavar a mistura até obter a matéria-prima perfeita para a fabricação da típica cerâmica da Serra da Capivara. A região, que abriga o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Sudoeste do Piauí, reúne sítios arqueológicos com as evidências mais antigas de ocupação das Américas, com pinturas rupestres e vestígios datados em mais de 50 mil anos. As cenas gravadas na pedra por nossos antepassados hoje ilustram pratos, xícaras, moringas e vasos que fazem sucesso principalmente nos grandes centros urbanos do Sul e Sudeste.
Encravada no meio da caatinga, a Cerâmica Serra da Capivara é um exemplo de que é possível atrelar a preservação do patrimônio ambiental e cultural de uma região a alternativas de geração de emprego e renda que respeitem essa vocação. O negócio social, criado no final da década de 1980, fez parte de um plano de desenvolvimento turístico para a região encabeçado por Niéde Guidon - a arqueóloga que fez as primeiras escavações no local e descobriu a riqueza do patrimônio histórico da Serra da Capivara. O negócio começou pequeno, com uma escola de cerâmica voltada aos jovens, prosperou e atualmente gera 50 empregos diretos.
As mãos calejadas pelo trabalho duro no semi-árido moldam com delicadeza o barro e garantem o sustento das famílias, em um processo que começa com a mistura das argilas num período de dez dias, continua com a moldagem e desenho da cerâmica e termina com a queima das peças em dois fornos, em temperaturas que chegam a 1.260 graus centígrados. O processo é respeitoso ao meio ambiente pois não envolve a mineração da argila - a matéria-prima vem da limpeza anual das barragens - nem a queima da madeira das espécies da Caatinga, já que o combustível dos fornos é o gás natural.
Por possuírem uma identidade cultural fortemente associada à região, as peças são muito requisitadas como brindes corporativos e podem ser encontradas em grandes redes do varejo. A cerâmica produz em torno de 5 mil peças por mês, mas tem capacidade para produzir o dobro. Em torno de 40% da produção é comprado pela rede Pão de Açúcar, principal cliente da cerâmica, por meio de seu programa Caras do Brasil, que visa comercializar o artesanato regional brasileiro em 99 lojas, das 150 que o grupo tem espalhado em todo o país. O restante da produção é comprado pela rede varejista de móveis e decoração Tok&Stok, por lojas de artesanato, empresas que comercializam brindes e uma outra parte da produção é vendida diretamente ao consumidor final, em pedidos realizados pela internet.
"Conseguimos erguer um negócio preservando o modo de vida da comunidade em uma região repleta de carências. O maior desafio, hoje, é manter essa estrutura funcionando bem e aumentar a geração de empregos", diz Girleide Oliveira, que há 12 anos administra a Cerâmica Serra da Capivara. Pernambucana de gênio forte, ela é responsável por cuidar de cada detalhe que envolve o trabalho dos ceramistas, todos homens, além de captar novos clientes para as peças, em feiras e eventos de negócios. Também criou um albergue para abrigar os visitantes na cerâmica e um projeto de costura, envolvendo as mulheres da comunidade. Sua principal batalha é manter um portfólio de clientes que façam compras regulares, de modo a evitar a queda na produção nos três primeiros meses do ano, época em que os pedidos caem.
Apesar de bem sucedido localmente e de ter ajudado a evitar a migração das famílias em uma região onde a terra é ruim para a lavoura e a seca é permanente, a Cerâmica Serra da Capivara poderia gerar ainda mais empregos se o restante do plano de desenvolvimento para a região tivesse sido plenamente abraçado pelas autoridades locais.
Os estudos realizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e consultorias da área de turismo, na ocasião da criação do parque nacional, no final da década de 1970, apontaram para um potencial de visitação da região da ordem de 5 milhões de visitantes ao ano.
O difícil acesso à região, no entanto, permite que o parque receba em torno de 15 mil a 18 mil visitantes ao ano. O projeto do aeroporto de São Raimundo Nonato (a maior cidade do entorno do parque, com 30 mil habitantes), recebeu R$ 15 milhões em verbas federais em 1998, mas as obras começaram em 2004 e até hoje não foram concluídas - embora o governo do Piauí, executor da obra, afirme que a obra estará pronta em dezembro deste ano. Hoje o acesso mais rápido é pelo aeroporto de Petrolina, no Estado de Pernambuco, a cerca de 350 km de Coronel José Dias, município no entorno do parque, onde está localizada a Cerâmica Serra da Capivara.
"Todo ano falam que vão terminar o aeroporto e não terminam. A torre de controle não consta no projeto original e não foi licitada, não chegaram a comprar os equipamentos. Ou seja, mesmo se o aeroporto ficar pronto, serão mais dez anos para fazer a torre de controle", diz a arqueóloga Niéde Guidon, cética em relação à conclusão da obra no prazo e orçamento previstos.
A Fundação Museu do Homem Americano (Fundham), centro de pesquisas e de cultura criado para divulgar a riqueza cultural da região e para dar apoio logístico a pesquisas na região, sofre com a falta de verbas federais, em razão dos cortes no orçamento dos Ministérios da Cultura e do Meio Ambiente e atualmente trabalha com a metade do número de funcionários que chegou a ter na época de sua criação.
O ICMBio, gestor do parque, também teve de reduzir pela metade, nos últimos cinco anos, o número de vigilantes. Eram 28 guaritas ocupadas, hoje são apenas 14, o que abre espaço para práticas criminosas, como incêndios e caça nas áreas protegidas. O mesmo ocorreu com as equipes de conservação do parque. Raimundo de Lima Miranda Júnior, morador da região, trabalhou por quase uma década como técnico em conservação de pinturas rupestres. "Eu trabalhava em uma equipe de 12 pessoas. Infelizmente o grupo foi reduzido por causa da escassez de recursos", conta.
O trabalho no Parque Nacional ao longo desses anos, porém, permitiu a ele juntar as economias e abrir um pequeno mercado no povoado Sítio do Mocó, em Coronel José Dias, onde mora a maior parte dos trabalhadores do parque e da Cerâmica.
Apesar da crise atual, Niéde reconhece que a criação do Parque Nacional, declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1991, do Museu do Homem Americano e da Cerâmica Serra da Capivara ajudaram a trazer desenvolvimento para a região e amenizar o quase inevitável êxodo. Mas as questões políticas estão tirando o ânimo da pesquisadora, que este ano completou 80 anos de idade - e 40 anos de pesquisas nos sítios arqueológicos. "Quando eu comecei a trabalhar aqui, essa região era completamente miserável. As pessoas tinham que andar diariamente 15 km pra buscar água", relembra. "Mas a região poderia ser muito mais, imagine 5 milhões de turistas todos os anos aqui", diz.
A repórter viajou a convite do Grupo Pão de Açúcar


Redes varejistas ligam o artesão ao consumidor final

Por De Coronel José Dias (PI)

O caminho percorrido entre a peça de cestaria produzida pelas mulheres do Vale do Jequitinhonha, no Estado de Minas Gerais, ou do mel das abelhas do Xingu, no Norte do Estado do Mato Grosso, até o consumidor final nem sempre é suave.

De um lado, estão as comunidades que produzem itens típicos da cultura regional, ávidas para ver seus produtores distribuídos em todo o país, mas muitas vezes sem estrutura e conhecimento em gestão para acessar esses mercados. Do outro lado, redes do varejo atentas ao potencial de vendas desses produtos, mas que enfrentam o desafio da falta de escala e logística para trabalhar com esses fornecedores.

Para aproximar os consumidores dos artesãos, redes do varejo começaram a investir, desde a última década, em programas de desenvolvimento de fornecedores com essas características. O Grupo Pão de Açúcar, por exemplo, criou há 11 anos o programa Caras do Brasil, com o objetivo de oferecer um canal de vendas, nas lojas da sua rede de supermercados, para produtos oriundos de iniciativas de manejo sustentável, de cooperativas de artesãos e também de pequenos produtores de alimentos.

"Buscamos valorizar a identidade cultural de cada região do país oferecendo esse canal de comercialização nas gôndolas", explica Patricia Santana, assistente social por formação e hoje coordenadora do programa Caras do Brasil. Cerâmica, objetos de decoração, cestarias, redes e produtos alimentícios, como mel e geleias, fazem parte do leque de produtos que podem ser encontrados em 99 das 150 lojas mantidas pela rede do Pão de Açúcar.

Calcula-se que em torno de 60 fornecedores fazem parte desse programa. Patricia Santana percorre o país para participar de eventos e feiras de negócios com o objetivo de encontrar novos fornecedores que integrem o perfil do Caras do Brasil. Em muitos casos, as jornadas são longas e envolvem horas de deslocamento de barco no meio da selva amazônica - caso do mel produzido pelos índios do Xingu.

Com a Cerâmica Serra da Capivara, no Estado do Piauí, o programa estabeleceu uma parceria que já dura seis anos e envolve também o desenvolvimento de novos produtos. Atualmente as lojas do Pão de Açúcar comercializam seis diferentes peças desenvolvidas pelos produtores da Serra da Capivara, e compram 40% da produção mensal da Cerâmica. Em contrapartida, os artesãos da cerâmica estão envolvidos no processo de criação de novas peças, como uma caneca com design exclusivo.

"A entrada da cerâmica no programa Caras do Brasil possibilitou um fluxo de caixa mais contínuo, tendo em vista que os pedidos são constantes. Isso ajudou a dar maior estabilidade financeira ao nosso negócio", explica Girleide Oliveira, administradora da Cerâmica Serra da Capivara. As peças que trazem a pintura rupestre dos paredões rochosos do Piauí como inspiração estão entre os itens mais vendidos do programa Caras do Brasil.

Também compradora de peças da Cerâmica Serra da Capivara há dez anos, a varejista de móveis e decoração Tok&Stok comercializa as peças com inspiração rupestre, mas com a diferença de apresentar um design próprio - as peças como pratos e tigelas são assinadas pela designer brasiliense Cristiane Dias.

A rede de lojas mantém há duas décadas um setor dedicado às compras de artesanato regional brasileiro, que inclui 80 fornecedores. A maior parte deles vem está nas regiões Norte e Nordeste do país. "Percebemos que, com a globalização, o consumidor está valorizando os produtos artesanais produzidos no Brasil. Ele busca essa diferenciação, e não quer mais a peça feita na China, que pode ser encontrada em qualquer lugar", diz Ademir Bueno, gerente de design e tendências da Tok&Stok.

A principal dificuldade, diz Bueno, ainda é encontrar fornecedores que tenham condições de realizar a logística dos produtos - uma das maiores dificuldades é que os fornecedores produzam e entreguem as mercadorias no centro de distribuição da empresa, em São Paulo, dentro do prazo combinado. Outro requisito para os fornecedores de artesanato é que observem padrões de embalagem e etiquetagem dos produtos, diz Bueno.

Além dos grandes varejistas, existem iniciativas que se dedicam a fortalecer as comunidades artesãs para que possam encontrar condições de comercializar seus produtos nos grandes mercados consumidores. A Raízes Desenvolvimento Sustentável, empresa criada pelas turismólogas mineiras Marianne Costa e Mariana Madureira, começou em 2009 como um e-commerce de artesanato típico do Vale do Jequitinhonha, considerada a região mais pobre de Minas Gerais.

No início, o trabalho envolvia 20 comunidades produtoras de artesanato da região, a maioria formada por mulheres. Mas as dificuldades de encontrar empresas dispostas a pagar o preço justo pelo artesanato local obrigou as sócias a mudar a estratégia de negócios. "Recebíamos pedidos de orçamento para brindes corporativos, mas no final as empresas optavam por outro tipo de produto e as artesãs do Jequitinhonha ficavam frustradas com isso", conta Marianne Costa. A empresa continua apoiando as artesãs, mas o projeto evoluiu e hoje envolve o turismo de base comunitária - comercializa viagens à região, onde os visitantes podem conviver com as artesãs, se hospedar na casa delas e, por fim, comprar o artesanato produzido lá. "Essa estratégia tem possibilitado um impacto maior nas comunidades", diz Costa.

A Artesol, rede de apoio a comunidades artesãs criada pela ex-primeira dama Ruth Cardoso, também aposta no caminho de revitalização e geração de renda por meio do artesanato tradicional. O trabalho da organização consiste em mapear regiões que possuam um artesanato local típico e as principais fragilidades dessa cadeia, além de capacitar grupos e cooperativas e promover uma articulação para encontrar canais que valorizem o trabalho das comunidades. "O trabalho começou com 26 grupos, e nos últimos 15 anos conseguimos trabalhar com mais de 100 iniciativas em todo o Brasil", diz Josiane Masson, coordenadora executiva da Artesol. (AV)

Valor Econômico, 24/09/2013, Especial, p. F4

http://www.valor.com.br/brasil/3280258/preservacao-e-renda-se-unem-no-piaui

http://www.valor.com.br/brasil/3280260/redes-varejistas-ligam-o-artesao-ao-consumidor-final
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