Histórias mal contadas no litoral paraense

OECO - http://www.oecoamazonia.com - 16/03/2011
A mineradora brasileira Vale comprou documentos que lhe dão direito de uso e ocupação sobre três mil hectares na cidade de Curuçá, no Pará. No local, pretende construir o Porto do Espadarte, que pode causar muitos impactos socioambientais, em nome do escoamento de sua produção. A chamada "declaração de ocupação" repassada à Vale por R$ 10 milhões (quantia irrisória a uma empresa que tem lucro líquido na casa dos bilhões) pertencia à RDP Empreendimentos.

De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), esta área - cujas terras estão sob sua responsabilidade e pertencem à União - abrange quatro ilhas. Três delas (Areuá, Marinteua e Romana) ficam inteiramente dentro da Reserva Extrativista (Resex) Mãe Grande de Curuçá. A quarta ilha, Ipomonga (onde foi encontrado um novo tipo de fitopaisagem), ocupa parte do território da reserva. Como e por que a Secretaria de Patrimônio da União (SPU) do Pará permitiu que uma empresa tivesse direitos de uso e ocupação sobre áreas de uma reserva extrativista? Procurado pela reportagem, Lélio Costa da Silva, gerente regional da SPU, não se manifestou.

A transação chamou a atenção do Ministério Público Federal do Pará (MPF), que passou a investigar o caso. O procurador Bruno Valente já acionou os envolvidos, pediu documentos e explica que, se for comprovado que a área de fato fica dentro da Resex Mãe Grande de Curuçá, o MPF pedirá judicialmente a anulação do direito de ocupação. "Esta área foi cedida para o ICMBio no ano passado. A União não pode ceder ao ICMBio e depois para a Vale, é contraditório", afirma. "Reservas extrativistas não podem ser exploradas por empresas. São espaços criados para uso de recursos pelas comunidades. É um contrassenso o descumprimento de princípios pelos quais elas foram criadas", complementa Fabiano Gumier Costa, analista ambiental e coordenador da regional de Belém do ICMBio. No dia 9 de fevereiro, o órgão enviou à SPU pedido de cancelamento do direito de ocupação pela Vale, mas ainda não teve retorno oficial.

"No contrato de compra e venda, a RDP ficou com a obrigação de fazer um estudo de georreferenciamento da região para justamente identificar os limites da Resex", responde a Vale, por meio de sua assessoria de imprensa. Não teria sido mais coerente verificar isso antes de desembolsar 10 milhões de reais? A companhia diz que o porto "ficará" fora dos limites da reserva e que é "pouco provável" que sua construção comece antes de 2015. A empresa afirma, ainda, que "irá fazer os estudos para a viabilidade de construção do porto". "O ICMBio não autorizou e não pretende autorizar estudos de prospecção ou pesquisas para o EIA-RIMA dentro desta área", informa Fabiano. "Um empreendimento não pode ser feito dentro de uma Resex. Isso é totalmente incompatível", finaliza o procurador do MPF.

A Resex Mãe Grande de Curuçá não é a única ameaçada entre as demais reservas extrativistas marinhas do Pará. Em dezembro do ano passado, o ICMBio anunciou a chamada "Operação Peixe & Boi". Só durante a primeira semana do mês, o órgão, com apoio de comunitários, fiscalizou outras reservas como Maracanã, Chocoaré-Mato Grosso e São João da Ponta. Deparou-se com pesca e caça ilegais, criação de gado, ocupação irregular, tráfico de animais silvestres e toras de madeira, que foram apreendidas. Saiu da região depois de aplicar mais de um milhão de reais em multas. Ou seja, não faltam atividades ilegais e predatórias dentro destas áreas, destinadas à exploração manejada de recursos naturais.

Reservas extrativistas marinhas

Reservas extrativistas marinhas são importantes instrumentos de conservação ambiental. A utilização de seus recursos naturais de forma manejada garante a subsistência de populações tradicionais e, teoricamente, mantém girando a roda do desenvolvimento sustentável e cultural. No Pará existem nove unidades de conservação deste tipo: Reserva Extrativista (Resex) Marinha de Soure, Maracanã, São João da Ponta, Chocoaré-Mato Grosso, Tracuateua, Caeté-Taperaçu, Araí-Peroba, Gurupi e Mãe Grande de Curuçá. A soma de seus hectares chega a 255.854, o equivalente a 2.558.54 km².

Tanta área transformada em unidades de conservação tem razão de ser: as reservas extrativistas marinhas do Pará possuem regiões diversas como praias, restinga, dunas e são donas de um dos mais importantes manguezais do mundo. Por lá não faltam diversidade de aves, populações de crustáceos, moluscos, além de outros animais. Como é sabido, manguezais são verdadeiros berçários para a reprodução de peixes e não se deve poupar esforços em protegê-los. "No que se refere à flora, nestas Resex do Pará já encontramos espécies raras e endêmicas", complementa Samuel Almeida, pesquisador do Museu Paraense Emilio Goeldi.

Sem plano de manejo

A primeira Resex marinha do Pará, Soure, foi criada em 2001. De lá para cá outras oito nasceram, mas nenhuma até hoje possui plano de manejo que, nas palavras de Marc Dourojeanni, Presidente da Fundação ProNaturaleza, "é a ferramenta básica, em termos técnicos e legais, para o manejo das unidades de conservação".

Ao invés disso, todas têm o chamado "plano de uso", que consiste em uma espécie de acordo formal entre os comunitários sobre a exploração controlada dos recursos naturais. Em 2009, consultores foram contratados para fazer pesquisas de campo com o objetivo de embasar o plano de manejo. Os recursos vieram de fundos doados pela Noruega para o Projeto Gestão de Reservas Extrativistas Federais da Amazônia Brasileira, implementado pelo ICMBio e executado por meio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

A notícia parecia boa, mas não foi para frente porque os consultores desistiram da empreitada. Oficialmente não se fala por que. No entanto, pessoas ouvidas pela reportagem e que preferem não se identificar garantem que entre as razões possíveis estariam o número grande de demandas e a escassez de recursos. Atualmente o ICMBio também conta com outro projeto para ajudar a financiar novas consultorias, voltado para a conservação dos manguezais brasileiros. Recursos de ambos resolveriam o problema dos planos de manejo necessários às unidades. "Até 2012 queremos que todos os planos estejam prontos e esta não é uma estimativa ilusória", garante Fabiano.


O mistério da Mata Amazônica Atlântica

Em 2009 o Instituto Peabiru, por meio de parcerias com diversas organizações, realizou um levantamento socioambiental em Curuçá para embasar ações de um de seus projetos, chamado Casa da Virada. As pesquisas englobaram a Resex Mãe Grande de Curuçá, local onde existem algumas ilhas, entre elas parte de Ipomonga. Foi lá que, na ocasião, o pesquisador Samuel Almeida encontrou um novo tipo de fitopaisagem, que chamou de "Mata Amazônica Atlântica". "Este nome se deve à proximidade com o Oceano Atlântico e não quer dizer, como muita gente pensa, que na região existem espécies antes encontradas apenas no bioma Mata Atlântica", explica. Ipomonga apresenta semelhanças com a Mata Atlântica e também possui bromélias e orquídeas, por exemplo - "mas a floresta é tipicamente amazônica", esclarece.



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UC:Reserva Extrativista

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