As comunidades quilombolas querem direitos à terra regularizados e um papel ativo nas políticas de conservação, defende Lúcia Andrade, da Comissão Pró-Índio de São Paulo. Em entrevista ao Blog do Observatório de UCs, a coordenadora executiva da organização mostra o papel das comunidades quilombolas como agentes de preservação ambiental na região da Calha Norte do rio Amazonas, no noroeste do Pará.
Apenas nesta porção da floresta amazônica, há 23 áreas protegidas que somam dois milhões de hectares. Criada em 1978, a Comissão Pró-Índio de São Paulo trabalha com índígenas e quilombolas na defesa de seus direitos territoriais, culturais e políticos. A entidade começou a atuar na região no final da década de 1980. Lá existem 35 comunidades quilombolas, que somam oito mil pessoas.
No município de Oriximiná, existem sete terras quilombolas sobrepostas à Reserva Biológica do Rio Trombetas e à Floresta Nacional Saracá-Taquera. Segundo Andrade, são comuns os casos de territórios ocupados por povos tradicionais, cujos limites foram cortados pelas fronteiras de Unidades de Conservação posteriormente criadas.
Também em Oriximiná, a terra quilombola Moura ainda espera sua criação oficial. Ela está sobreposta à Flona Saracá-Taquera. Outra terra, a Ariramba está em processo no Instituto de Terras do Pará (Iterpa) desde 2005. Uma das comunidades que vive em seu interior, a Nova Jerusalém, está sobreposta à Floresta Estadual (Flota) Trombetas. Já a terra Cachoeira Porteira ainda não teve ao menos o nome oficializado. O processo data de 2004 e sua comunidade de Vila Nova de Cachoeira Porteira também está sobreposta à Flota Trombetas.
Também localizadas em Oriximiná, as terras quilombolas Alto Trombetas I e II tiveram uma vitória recente na justiça. No dia 24 de fevereiro, uma decisão judicial determinou o prazo de 2 anos para as suas delimitações oficiais. A decisão foi tomada no âmbito de Ação Civil Pública proposta em 2013 pelo Ministério Público Federal. Este caso foi levado pelo ICMBio em 2007 à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Advocacia Geral da União (AGU), pois as terras estavam sobrepostas a duas Unidades de Conservação. Somadas, Alto Trombetas I e II têm quase 80 mil hectares e parte delas já foi regularizada pelo Iterpa, desde 2003. Lá vivem 5 comunidades sobrepostas à Rebio Trombetas e a Flona Saracá-Taquera.
Na entrevista a seguir, Andrade fala dos impactos que geram esses casos de sobreposição de limites de UCs. Sem contar que parte da expansão da mineração, como a de bauxita, está em áreas consideradas terras quilombolas, sobrepostas à Flona Saracá-Taquera.
Observatório: Qual é o trabalho que a Comissão Pró-Índio desenvolve na Calha Norte?
Lúcia Andrade: A Comissão Pró-Índio começou a sua atuação nessa região em 1989 em razão de uma campanha sobre hidrelétricas. Iniciamos uma parceria com as comunidades quilombolas em Oriximiná. Naquela época, o direito à titulação das terras dos quilombolas havia acabado de ser aprovado na nova Constituição Federal, mas ninguém sabia como colocar em prática esse direito. Há 35 comunidades quilombolas [na região] , onde vivem 8 mil pessoas. Trabalhamos na linha de fortalecimento da organização dos quilombolas, além de influenciar em políticas públicas, regularização fundiária e ajudar em alternativas de geração de renda e desenvolvimento sustentável.
Observatório: É possível aliar as comunidades quilombolas à preservação ambiental?
LA: É possível aliar sim. Esta é uma região muito particular onde estão as maiores terras quilombolas em extensão já tituladas, 42% das terras tituladas em todo o Brasil estão em Oriximiná. Não há vizinho melhor para as UCs que os quilombolas e indígenas ali na região. Mas há uma situação delicada, as UCs foram criadas sobrepostas a terras que os quilombolas e indígenas já habitavam. A relação [entre as comunidades tradicionais e as UCs] não é tranquila. No final de 1979, foi criada a Rebio do Trombetas e, naquela época, simplesmente expulsaram as pessoas de forma violenta. Muitos quilombolas veem a Rebio como um problema, pois foram expulsos e vítimas de violência do IBAMA e da Polícia Federal. Hoje não há essa postura, mas existe a memória nas comunidades.
Observatório: Como essas comunidades tradicionais ajudam na conservação?
LA: Numa foto de satélite da região, é possível ver claramente que as terras quilombolas e indígenas fazem um limite verde para o desmatamento que sobe da direção leste de Oriximiná. Os índios e quilombolas são os guardiões dessas áreas e os órgãos ambientais têm o papel de ajudá-los nesse desafio. O caminho natural seria de parceria, temos de empoderá-los. As comunidades têm conhecimentos e podem contribuir.
Observatório: Quais são os casos de terras habitadas por quilombolas que se confundem com os limites de UCs?
LA: As terras quilombolas sobrepostas às UCs são: duas do Alto Trombetas que foram parcialmente tituladas pelo Iterpa (Instituto de Terras do Pará) em 2003 e retificadas em dezembro de 2010, atingindo uma área total de 79.095 hectares. Lá vivem as comunidades Abuí, Paraná do Abuí, Tapagem, Sagrado Coração de Jesus e Mãe Cué. A Alto Trombetas tem sobreposição com a Rebio Trombetas e a Flona Saracá-Taquera.
Já as terras Jamari e Último Quilombo estão para serem tituladas. Lá estão as comunidades de Juquirizinho, Juquiri Grande, Jamary, Curuçá, Palhal, Último Quilombo do Erepecú e Nova Esperança. Elas estão sobrepostas à Rebio Trombetas e à Flona Saracá-Taquera. A terra Moura ainda espera ser titulada e está sobreposta à Flona Saracá-Taquera. Além disso, a terra Ariramba, com processo no Iterpa desde 2005, espera ser titulada. Sua comunidade Nova Jerusalém está sobreposta à Flota Trombetas. A terra Cachoeira Porteira ainda está para ser titulada com processo no Iterpa desde 2004. A comunidade de Vila Nova da terra Cachoeira Porteira também está sobreposta à Flota Trombetas.
Observatório: Quais impactos geram esses casos em que os limites de UCs se misturam com os territórios quilombolas?
LA: A sobreposição impacta negativamente na região. Uma relação que poderia ser de mais cooperação. A história de arbitrariedade no passado ainda é muito presente na memória. A princípio, a categoria de reserva biológica não poderia receber nenhuma atividade humana, apenas pesquisa. Porém, os maiores castanhais estão dentro da Rebio e a castanha é a principal atividade extrativa das populações quilombolas.
Há também uma situação que deixa os quilombolas perplexos. Dentro da Floresta Nacional Saracá-Taquera é permitido retirar bauxita. A mineração compromete a parceria que deveria ser mais natural entre quilombolas e os gestores das UCs. Há uma contradição que precisa ser acertada. Parte da expansão da mineração está em pedaços de terra sobrepostas às terras quilombolas como as de Alto Trombetas I e II.
Observatório: No dia 24 de fevereiro, uma decisão judicial determinou o prazo de 2 anos para a titulação das terras quilombolas de Alto Trombetas I e II, em Oriximiná. A decisão foi tomada no âmbito de Ação Civil Pública proposta em 2013 pelo Ministério Público Federal. O que significa esta decisão?
LA: Em 2007, o ICMBio levou o caso de Alto Trombetas para a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Advocacia Geral da União (AGU), pois as terras estavam sobrepostas a duas UCs. Desde 2007, pouco se avançou. Até hoje órgãos de governo como o INCRA, o Ministério do Meio Ambiente, a Fundação Palmares e o ICMBio não conseguiram chegar a um consenso e a uma proposta concreta para ser apresentada aos quilombolas. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação elaborado pelo Incra está pronto desde 2013, mas não é publicado em função da ausência de um acordo. A decisão judicial de fevereiro ainda é passível de recurso, mas já é algo importante. Enquanto a titulação das terras quilombolas não vai para frente, a expansão das mineradoras avança dentro de UCs.
Observatório: Quais são as implicações destas disputas?
É preciso abrir a discussão de alternativas de desenvolvimento sustentável para a região. Índios, quilombolas e atores não governamentais questionam a mineração como a única opção de desenvolvimento para a região. Não me conformo que o único destino da Flona Saracá-Taquera seja o de retirar bauxita. A concessão foi dada nos anos 80, eram outros os tempos, mas estamos agora pensando em um novo parâmetro de desenvolvimento. Os quilombolas querem ter protagonismo nesse debate. Eles estão sendo acusados de impedir o progresso, a sensação é um pouco de desânimo. Para cada medida administrativa do governo federal, como a expansão da mineração, as comunidades impactadas precisam ser consultadas. Mas apenas há um ano conseguimos dar efetividade à consulta prévia.
http://observatorio.wwf.org.br/blog/2015/03/25/na-calha-norte-quilombolas-sao-os-melhores-vizinhos-das-ucs/
UC:Geral
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