OESP, Viagem, p. D1; D4-D5 - 30/01/2018
No embalo do Rio Negro, no Amazonas
Hospedagens simples, passeios conduzidos pelos moradores e muita autenticidade dão a tônica da visitação à Região de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro
Vitor Tavares, O Estado de S. Paulo
30 Janeiro 2018 | 05h00
Com o guarda-chuva na mão - que na verdade guardava o sol -, a moça via seu barco se afastar da margem do Rio Negro. E o tratava como parente: "quem mandou você ir embora?", questionava, enquanto corria para não deixá-lo escapar. Não deu tempo nem de perguntar o nome dela. Só saber que embarcava "para ir na casa da comadre" na comunidade vizinha à sua, no meio da floresta amazônica.
A cena - pessoas em seus pequenos barcos, fazendo o rio de rua na imensidão da mata - ia se repetir diversas vezes ao longo da viagem. Um contraste dos grandes para quem tinha deixado Manaus para trás há pouco, com seu trânsito complicado, de avenidas estreitas e quase sem a presença da floresta no dia a dia. Vale lembrar, estamos falando da sétima maior cidade brasileira, com seus mais de 2 milhões de habitantes, de acordo com o IBGE.
A poucos quilômetros da urbanização da capital amazonense e do município metropolitano de Iranduba, a Região de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro guarda um pedaço preservado, belo e acessível da Amazônia para os turistas. É como se fosse um refúgio e uma aproximação de um Brasil genuíno, que segue vivendo de jeito simples, devagar, conectado com a terra (e a água), no meio das árvores e dos igarapés.
Ser uma RDS significa, em termos gerais, ser uma área de proteção ambiental e, com isso, de regulação no sentido da exploração econômica. Desde 2008, quando a região do Baixo Rio Negro ganhou essa classificação, a vida de muitos "caboclos" mudou. É o caso de Roberto Mendonça, que, como a maioria das pessoas da região, sustentava a família com a retirada ilegal de madeira da floresta. "Foi como se tivessem tirado nosso sustento. As pessoas passaram a ser presas, e a gente, que vivia da floresta, ficou sem rumo. Era o que sabíamos fazer", conta.
Hoje, Roberto é dono de uma pousada na comunidade do Tumbira, a cerca de uma hora de Manaus pelo rio em uma lancha de alta velocidade. O turismo, diz ele, mudou sua forma de enxergar a floresta como sua aliada na criação dos filhos. "Agora eu a acho mais bonita e sei que preciso preservá-la para que ela continue atrativa", destacou o ex-madeireiro da terceira geração da família, que faz parte do programa de apoio ao empreendedorismo da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).
Optar pela hospedagem dentro das próprias comunidades - e não estamos falando aqui de aldeias indígenas, mas de pequenos núcleos com 100, 150 pessoas - é uma forma de vivenciar mais intimamente a vida dos ribeirinhos e a própria Amazônia. A internet e o sinal de celular praticamente não chegam, e as opções de refeição são basicamente restritas à alimentação dos locais, com seus deliciosos peixes tambaqui e pirarucu e as frutas típicas, como cupuaçu e tucumã.
Referência entre as comunidades da região próxima a Manaus, Tumbira é quase um 'coração' da RDS Rio Negro, por contar com estrutura desenvolvida de educação, saúde e geração de energia elétrica - ainda é um luxo ter luz o dia inteiro por lá. Para os turistas, é possível participar, junto aos guias locais, de trilhas aquáticas e terrestres, observação de jacarés e pássaros, passeios de canoa, para cachoeira, além de grupos de artesanato e de produção de farinha, que, por sinal, é uma das grandes delícias da Amazônia.
Dá praia. A melhor época para visitar a região é quando o rio está mais seco, proporcionando o aparecimento de pequenas prainhas que contrastam a água escura do rio com a areia clarinha. Isso acontece normalmente entre setembro e fevereiro, período em que as chuvas são mais escassas. Os meses também são ideais para quem quer explorar Anavilhanas, o arquipélago fluvial que é um dos tesouros do Amazonas. As ilhas formam um verdadeiro mosaico verde em meio ao negro do rio e, quando não há praia para curtir a beleza selvagem por horas, é possível fazer o passeio por entre a floresta e se sentir bem pequeno diante dela.
O passeio para interagir com os botos costuma conquistar os turistas. Possivelmente, você irá vê-los no caminho em direção às comunidades, nadando do lado dos barcos. Mas, se intenção é chegar perto dos animais, os ribeirinhos conseguem proporcionar a experiência em áreas próprias para isso. A dica é conversar com as pessoas que fazem o passeio para saber como é feita a interação e ter a certeza que não é uma atividade que estressa os bichos. Quem mora nas comunidades costuma recriminar passeios mais invasivos.
'Órfãos' do Ariaú e a nova vocação de Acajatuba
Desde que o Ariaú Amazon Towers fechou as portas, em 2016, a vila Nossa Senhora Perpétuo Socorro se encontrou no turismo comunitário - e até virou a fictícia Parazinho, novela da TV Globo
Era quase lei: ao abrir uma revista ou jornal de turismo, estava lá o anúncio do monumental Ariaú Amazon Towers, um dos hotéis de selva mais simbólicos da Amazônia. Localizado na margem de um afluente do Rio Negro, atraía turistas do mundo inteiro, inclusive ilustres como o ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, o bilionários Bill Gates e o elenco do filme Anaconda (1997), gravado na região. Atraía. Desde o começo de 2016, como consequência de um acúmulo de dívidas e de brigas familiares, o empreendimento de 180 apartamentos fechou as portas.
Junto às ruínas do Ariaú, que hoje hospeda somente macacos, insetos e aves, veio a aflição de muitos moradores da região. Os que não trabalhavam diretamente no hotel, em funções como camareiros ou cozinheiros, eram beneficiados pelo fluxo turístico. Visitantes contratavam passeios com os locais e faziam visitas guiadas às comunidades.
Sem este dinheiro circulando, o alerta vermelho apareceu. Foi quando os "caboclos" perceberam a vocação para o turismo comunitário. "Ficou mais claro que, se as pessoas ficassem aqui dentro, seria melhor para a gente. Antes, às vezes parecia que a gente era uns bichos no zoológico", lembrou Marlene Costa, uma das líderes da vila Nossa Senhora Perpétuo Socorro também conhecida como Vila de Acajatuba - e, mais recentemente, como "Parazinho".
O novo apelido veio por causa da recente novela A Força do Querer, na TV Globo, filmada no local. A história de Ritinha trouxe fama à vila, que passou por um processo de "embelezamento" para receber a equipe da televisão. Hoje, turistas visitam a comunidade atrás do artesanato produzido pelas famílias, à base de semente e galhos de açaí. O trajeto do porto de Manaus até lá dura menos de uma hora. Quem quiser se hospedar em Acajatuba tem a opção ficar no redário. Uma pousada está sendo construída no local.
Saboroso encanto. Uma das poucas opções de alimentação na RDS Rio Negro que vai além do que é servido dentro das comunidades é o restaurante Encanto do Saracá, nome da comunidade onde está localizado. A vista alta para o Rio Negro é um desbunde - tente pegar o pôr do sol por lá. As refeições precisam ser acertadas anteriormente com as mulheres que comandam a cozinha. No cardápio, peixes, tapioca recheada com tucumã, galinha caipira, mousse de cupuaçu, cocada com castanha, farofa com banana e sucos das frutas amazônicas.
O discurso de quem recebe turistas nessas comunidades é de acolhimento, para que as pessoas sintam, pelo menos temporariamente, que são parte dali. Os olhares desconfiados somem rapidamente após minutos de conversa ou um aceno. "Eu achava que não tinha como lidar com turistas, com gente de fora. Logo eu, que nem saía aqui da floresta. Foi recebendo as pessoas que descobri que todos somos iguais", disse Roberto Mendonça. Impossível sair imune a esse sentimento.
Dicas práticas para a primeira vez na Amazônia
Fazer turismo na Amazônia requer uma mala um pouco diferente. Você vai precisar de roupas comuns de cidade - leves e frescas, já que o calor é uma constante por lá - para os dias em que estiver em Manaus. E deverá incluir na bagagem itens específicos para se aventurar pela floresta com conforto.
O "kit floresta" deve ter calça e camiseta de manga comprida - por causa da vegetação e também dos insetos. O Rio Negro tem poucos mosquitos, graças à acidez da água, mas ainda assim é importante levar um bom repelente - recomendamos dois frascos, de marcas e composições diferentes, para ter opção. Protetor solar também é importante, além de boné ou chapéu. E uma mochila pequena para carregar pertences durante as trilhas e os passeios de barco.
Leve dinheiro em espécie para comprar artesanato e produtos alimentícios nas comunidades durante os passeios; atenção aos valores necessários para pagar hospedagem e refeições fora da capital. O sinal para máquinas de cartão, assim como no caso do celular, é escasso ou até inexistente nos povoados.
É importante estar com a vacina contra a febre amarela em dia - ela deve ser tomada no mínimo dez dias antes da viagem. A dose fracionada é suficiente. Tire dúvidas sobre viagens e a febre amarela: bit.ly/viagemfebreamarela.
Tumbira. Barcos partem do píer de São Raimundo, em Manaus. O Expresso Sharlotte (92-9-9372-9507) vai sexta-feira, às 15h, e volta domingo, às 16h. São 2h30, R$ 40 por trecho. O barco regional Novo Zanny (92-9-9403-5501) vai às terças e sextas, às 20h, e retorna às quintas e domingos, às 23h. Custa R$ 35 por trecho e a viagem dura 4h30; levar rede e avisar alguém da comunidade para ir buscar no barco. A lancha rápida faz 1h15 por trecho e custa R$ 800, com capacidade de até 10 pessoas com bagagem.
Na comunidade, hospede-se na Pousada do Garrido e Casa da Dona Vera: R$ 130, com refeições; pousadadogarridotumbira@gmail.com. Passeios incluem focagem de jacarés, casa de farinha, interação com botos e Anavilhanas. Passeios em todas as comunidades custam de R$ 16 a R$ 40 por pessoa.
Saracá e Santa Helena do Inglês. Os barcos, valores e condições são os mesmos do acesso a Tumbira. A Pousada Vista do Rio Negro fica em Santa Helena do Inglês. Custa R$ 125; pousadavistarionegro@gmail.com. Trilhas, a Praia do Iluminado, casa de farinha, pesca com malha, canoagem e jacarés são as atrações.
Nsa. Sra. do Perpétuo Socorro (Acajatuba). A lancha rápida parte do Porto Marina do Davi, do Píer Tropical Hotel e do Píer São Raimundo, faz 1h15 por trecho e custa R$ 800, com capacidade para até 10 pessoas (agende em 92-9-9129-9994 e 92-9-9351-7654). A hospedagem é em redário no restaurante Vista do Lago (reserve em 92-9-9239-5239. Custa R$ 60. Passeios: extração da borracha, trilha, botos, jacarés e casa de farinha.
Ao se banhar nas praias do Rio Negro, cuidado com ferimentos no corpo: eles podem atrair piranhas. É importante entrar na água arrastando os pés na areia, para afastar arraias que estejam na praia; se pisar em uma, ela ataca com o ferrão.
Passeios para ver a vitória-régia são vendidos em Manaus e nas comunidades ribeirinhas. O nome da planta é uma homenagem à rainha Vitória, monarca da Grã-Bretanha entre 1837 a 1901. Em latim, "régia" vem de "regina" e significa "rainha"
OESP, 30/01/2018, Viagem, p. D1; D4-D5
http://viagem.estadao.com.br/noticias/geral,no-embalo-do-rio-negro-no-amazonas,70002169996
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