FSP, Ambiente, p. B5 - 12/09/2019
Megaoperação em Rondônia faz reintegração de posse em floresta nacional
Invasores disseram que foram estimulados por promessas de Bolsonaro; PF prende quatro líderes
Fabiano Maisonnave
Lalo de Almeida
FLORESTA NACIONAL DO BOM FUTURO (RO)
Faltavam cinco dias para o segundo turno de 2018. Estimulados pelas declarações do então candidato Jair Bolsonaro (PSL) de que havia um excesso de áreas protegidas em Rondônia, centenas de famílias invadiram, em 22 de outubro, a Floresta Nacional (Flona) do Bom Futuro.
Na última terça-feira (10), a aposta de que seriam legalizados sofreu um revés. Cumprindo uma decisão judicial de dezembro do ano passado, após pedido do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), os invasores começaram a ser despejados por uma operação cerca de 200 pessoas, incluindo 50 homens da tropa de choque da PM de Rondônia.
"Com certeza", disseram, quase em coro, um grupo de cerca de dez invasores, quando a reportagem perguntou se eles entraram com a esperança de que Bolsonaro faria a regularização quando chegasse ao Planalto.
O Bolsonaro falou, como o Brasil sabe, que as reservas não iriam existir mais", disse um dos invasores. "Reservas abertas", corrigiu outro, em referência de que parte da área invadida na Flona já havia sido desmatada e convertida ilegalmente em pasto em anos anteriores.
"Eu peço pro Bolsonaro: pelo amor de Deus, cuida de nós. Os brasileiros que dependem da terra não conseguem trabalhar. Nós não temos nada", disse, em lágrimas, o servente de pedreiro desempregado Hélio Guimarães, 46. Pai de dois filhos pequenos, a sua família está em Cacoal (RO) e é beneficiária do Bolsa Família -ganham R$ 213 mensais, segundo ele.
Em visita durante a campanha, Bolsonaro disse que o estado tem um excesso de áreas protegidas. "Aqui em Rondônia são 53 unidades de conservação e 25 terras indígenas. É um absurdo o que se faz no Brasil, usando o nome ambiental", disse o então candidato, em agosto do ano passado.
Presente na ação, o presidente do ICMBio, o coronel da PM-SP Homero de Giorge Cerqueira, negou que as declarações do presidente Jair Bolsonaro contra áreas protegidas tenham incentivado invasões.
Os invasores negam, mas o desmatamento foi ampliado nos últimos meses. Desde janeiro, a Flona perdeu 737 hectares de floresta, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Trata-se da maior perda de cobertura vegetal nessa unidade de conservação em 12 anos.
Segundo levantamento da PM, havia 228 barracos no acampamento, batizado de Boa Esperança, concentrados em uma área convertida em pasto. A maioria dos invasores já havia saído do local no momento do despejo, após notificação feita na semana passada. Os que ficaram não ofereceram resistência e serão levados a Rio Pardo.
Além do ICMBio e da PM, policiais civis e federais participaram da operação. O Exército deu apoio logístico com três caminhões. O desalojamento deve durar três dias e terminará com a derrubada dos barracos por um trator.
Junto com a reintegração de posse, a Polícia Federal prendeu quatro pessoas acusadas de terem organizado a invasão. Elas seriam responsáveis por cadastrar famílias, recolher mensalidades, demarcar lotes e contratar advogados.
Um dos invasores, o agricultor Raimundo de Freitas, 59, disse que eles também foram estimulados por fazendeiros. "Se a gente disser quem, a hora que vocês virarem as costas, eles matam a gente. É melhor não identificar."
Criada em 1988, a Flona Bom Futuro já sofreu em gestões anteriores. No governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), teve início uma invasão em larga escala que culminou na criação da vila do Rio Pardo, com comércio e até posto de gasolina.
Em 2010, no governo Lula (PT), a Flona foi reduzida em dois terços para legalizar os invasores. Tratou-se de um acordo entre o governo federal e o de Rondônia em torno das usinas hidrelétricas Jirau e Santo Antônio.
A Flona, no entanto, continuou sofrendo com invasões. Houve reintegrações de posse em 2013, quando um PM foi assassinado, e em 2017 -nesta, os invasores estavam na mesma região que o atual acampamento.
"O que se vê é que a área continua sob pressão, e o que era ruim se acentua mais ainda. Há um crendice, diante do discurso presidencial, de que você pode invadir que o governo depois vai reduzir as áreas protegidas", afirma Ivaneide Cardozo, da ONG Kanindé, sediada em Porto Velho (RO).
Ela afirma que a reintegração de posse não é suficiente para conter o avanço sobre áreas protegidas. "É preciso que o governo mude o discurso e exerça o papel de proteção desses territórios."
"Uma coisa é esse monte de jornalista do mundo olhando pro Brasil. Aí o governo quer mostrar serviço. Mas como estará daqui a três meses? Haverá um política séria para o meio ambiente? O governo vai fortalecer a Funai, o ICMBio e o Ibama? A ditadura de proibir os funcionários desses órgãos de falar vai acabar?"
EM 30 ANOS, FLONA BOM FUTURO PERDE DOIS TERÇOS DO TERRITÓRIO
1988 Criação da Floresta Nacional (Flona) do Bom Futuro, no governo José Sarney, com 280 mil hectares
1995 No governo FHC, começa a invasão da Flona por grileiros, posseiros e madeireiros, incentivados por políticos da região
2000 Surge uma vila dentro da Flona, com comércio e posto de gasolina. Estimam-se 3.500 invasores
2009 Sob o governo Lula, Ibama faz maior operação de sua história até então, com 367 agentes, incluindo reforços do Exército, do ICMBio e da PM, para retirar 35 mil cabeças ilegais de gado. Desmatamento chega a 28%
2010 Após acordo entre o governo Lula e o de Rondônia, Flona perde dois terços do território, que se tornam Área de Proteção Ambiental (APA) e Floresta Estadual do Rio Pardo (FES), de gestão estadual. Desafetação abre caminho para legalização de grileiros e posseiros
2013 Mesmo reduzida, Flona volta a ser invadida. Nova operação de desocupação deixa um PM morto a tiro
2015 É criado o Conselho Consultivo da Flona, com a participação de posseiros da APA, para elaboração de plano de gestão
2017 ICMBio faz nova desocupação, desta vez sem incidentes
2018 Incêndio criminoso destrói parte de área reflorestada. Roubo de madeira continua. Em outubro, após o primeiro turno, há uma nova invasão
2019 Mais 737 hectares são desmatados ilegalmente. Em 10 de setembro, agentes da PM, do Exército e do ICMBio realizam operação de reintegração de posse, cumprindo ordem judicial
Bolsonaro nunca incentivou invasões, diz presidente do ICMBio
Coronel da PM-SP Homero de Giorge Cerqueira culpou governos anteriores pelo desmatamento em 2019 em unidade de conservação
Fabiano Maisonnave
FLORESTA NACIONAL DO BOM FUTURO (RO)
Presente na reintegração de posse da Floresta Nacional (Flona) do Bom Futuro, o presidente do ICMBio, o coronel da PM-SP Homero de Giorge Cerqueira, negou que as declarações do presidente Jair Bolsonaro contra áreas protegidas tenham incentivado invasões.
No cargo desde maio, Cerqueira culpou os governos anteriores e até seu antecessor no governo Bolsonaro pelo desmatamento de 734 hectares dentro da Flona -a maior devastação nessa unidade de conservação desde 2007.
Em entrevista à Folha enquanto caminhava pela invasão, ele confundiu a Flona Bom Futuro com um parque nacional também de Rondônia, usou "flora" no lugar Flona e, demonstrando irritação, encerrou a entrevista falando para este repórter cortar a barba.
Vários dos invasores chegaram aqui no dia 22 de outubro do ano passado, motivados por declarações de Bolsonaro, de que há áreas protegidas demais. O sr. acredita que essas declarações tenham uma parcela de responsabilidade dessa e de outras invasões em unidades de conservação?
Não, absolutamente. O ministro Ricardo Salles pediu que acompanhássemos a reintegração de posse para cumprir uma determinação legal e preservar a integridade física e moral das famílias.
Em momento nenhum, o presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, incentivou a invasão em unidades de conservação e terras indígenas. Porque aqui há uma sobreposição de unidade de conservação e terras indígenas.
Aqui, não, isso é lá no Parque Nacional Pacaás Novos. Aqui é a Flona Bom Futuro.
Isso, eu estava confundindo Eu estava sobrevoando também Pacaás Novos. Se tiver de acontecer alguma coisa, tem de mudar a lei. E o que o presidente e o próprio Ricardo Salles têm falado é que tem de trabalhar dentro da legalidade, da transparência e do resultado. A gente está cumprindo uma ordem judicial. O governo passado deixou de cumprir, né? Deixou invadir e não fez nada.
A gente veio aqui, deu apoio, fez transferência financeira para os órgãos que estão apoiando, as Polícias Militar, Civil e Federal e o Exército. Estamos aqui pra ver o cumprimento da ordem. Em nenhum momento, o presidente e o ministro compactuam com o desmatamento, o descaso, com o desrespeito à natureza.
Haverá mudanças na política do ICMBio para a Bom Futuro?
A Flona Bom Futuro vai ser o que o decreto preconiza. Para a gente diminuir ou aumentar, é preciso um projeto de lei para que o Congresso aprove. O que a gente vai fazer? No primeiro momento, retirar as famílias que invadiram um terreno que é da unidade de conservação.
Aqui na Flona, houve um desmatamento de ao menos 700 hectares neste ano. Por que não foi possível coibir?
Isso vai antes da nossa entrada. Eu cheguei ao ICMBio em maio. A gente conversou com o Ministério Público Federal pra gente fazer isso aí. Conversamos com o comandante-geral e acertamos pra fazer a reintegração de posse agora dia 10 de setembro.
Então a fiscalização está cada vez mais intensa nas unidades de conservação. Anteriormente, não acontecia. Deixavam o hospital sem doente para não ter doença hospitalar. Ou seja, não tratavam o problema de uma forma mais serena, de frente.
A gente tem combatido desmatamento em unidade de conservação. No Pará, lá na flora (sic) Jamanxim, tem muito garimpo, e o garimpo não foi feito em oito meses. Há muito tempo, as pessoas deixaram. Aqui a gente tem feito fiscalização, operações, o ministro Salles tem falado pra gente fazer fiscalizações próprias.
O que você está falando não prospera. A gente tem feito fiscalização, e o Brasil é grande, são 334 UCs, 9,1% do território brasileiro é de unidade. A gente tem sido eficaz, eficiente, mas os órgãos de imprensa gostam de pautar só nisso. Em oito meses, falando que houve desmatamento.... Quantas vezes você viu um presidente numa unidade de conservação onde teve reintegração de posse?
Eu, como presidente, conversando com outras pessoas, é a primeira vez que a gente vai no lugar. Vocês falam que a gente não está fiscalizando. Eu estou incentivando a fiscalização, o acompanhamento, pra que não haja esse desmando.
Na campanha, aqui em Rondônia, Bolsonaro afirmou que havia áreas protegidas demais em Rondônia. O presidente Bolsonaro tem a mesma avaliação?
Eu, como técnico, estou falando o que estou fazendo. Você, como jornalista, tem de procurar o presidente e perguntar pra ele.
Mas não é o sr. que gere a política para unidades de conservação?
Estou preservando a natureza. Está na Constituição, no artigo 225 [que obriga o poder público a preservar o meio ambiente]. Se mudar o artigo, eu vou seguir. Eu, nos 35 anos de coronel da PM, sempre trabalhei na legalidade. Nem mais nem menos.
Há ONGs que participam de gestão de unidade de conservação, com projetos de extrativismo. A orientação é manter esses convênios?
Vou fazer outra pergunta pra você. Por que na região Norte tem 10 mil ONGs e na região Nordeste não tem nenhuma?
Há muitas ONGs no Nordeste também.
Quantas?
Eu não tenho de cabeça.
Se você me responder isso, aí te respondo.
O sr. é contra projetos de ONGs em unidades de conservação?
Eu não sou contra. Tenho de ver qual é o escopo da ONG, o que ela quer fazer. Sou doutor em educação, conheço um pouco de projeto científico. A gente precisa entender o que ela está querendo dentro de uma unidade de conservação. A partir daí, isso vai melhorar as condições da população que habita os povos tradicionais ou vai trazer problema? Ou vão levar alguma coisa dessas unidades?
Estou há 112 dias no ICMBio. Em São Paulo, a gente conseguiu congelar o desmatamento.
Mas São Paulo é outra dinâmica.
As práticas são boas.
Por que houve a decisão de militarizar o Ibama e o ICMBio?
E por que não? O que você tem contra? Tenho 35 anos de carreira. O que eu tenho feito de ruim em unidades de conservação? A gente descobriu um monte de carro sucateado. Por que não militar?
A crítica é que vocês não têm experiência com a Amazônia.
Crítica é o ponto de vista, vista de um ponto. Por que você, jornalista, usa barba? Eu não gosto de barba. É uma opinião minha.
A crítica é que são pessoas com pouca experiência na Amazônia.
Eu tenho 35 anos de comandar batalhões. Estou aqui ombreado com pessoal, sou doutor em educação, trabalhei dois anos no Ambiental como comandante, com 2.190 homens, 498 embarcações, uma aeronave. Conseguimos congelar o desmatamento.
Por que esse estigmatismo contra o militar? Se você pegar um quartel de polícia, vai ver que está tudo organizado. Tudo com norma. Estou há cem dias. O que fiz de errado?
Houve aumento no desmatamento neste ano, incluindo em unidades de conservação.
Estou há cem dias. Há 20 anos, tem garimpo em unidade de conservação, há 20 anos tem desmatamento. O desmatamento não é só fiscalização. Com tanta pesquisa, tanta ONG, será que nunca pesquisaram isso?
Obrigado, hein, meu. Corta a barba depois.
FSP, 12/09/2019, Ambiente, p. B5
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